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“O paralelo com a Palestina é muito forte”: entrevista exclusiva de Ducca Rios, diretor de Revoada

Ducca Rios é um cineasta baiano que acaba de lançar seu segundo longa-metragem, Revoada – Versão Steampunk, baseado na obra de José Umberto Dias. O filme tem sua premiere na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece de 16 a 30 de outubro. Sua primeira obra, Meu Tio José (2021), finalista em […]

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Ducca Rios, diretor de Revoada, versão Steampunk. Divulgação

Ducca Rios é um cineasta baiano que acaba de lançar seu segundo longa-metragem, Revoada – Versão Steampunk, baseado na obra de José Umberto Dias. O filme tem sua premiere na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece de 16 a 30 de outubro. Sua primeira obra, Meu Tio José (2021), finalista em Annecy, o principal festival de animação do mundo, contava a história de seu tio, um jovem militante de esquerda assassinado pela ditadura militar. Em Revoada, Ducca usa a estética steampunk para reinterpretar a mitologia nordestina do cangaço e contar uma história de resistência. O cineasta conversou com Miguel do Rosário, editor do portal O Cafézinho, e respondeu algumas perguntas sobre o filme, suas referências e as conexões entre o cangaço e a luta palestina.


Qual é a sua relação pessoal com o cangaço e como isso influenciou Revoada?

Minhas referências principais são as de quem nasceu e foi criado aqui no Nordeste do Brasil. Claro que é um tema bastante conhecido de todo o país, a questão do cangaço, mas aqui no Nordeste é diferente, porque a gente cresce com essas histórias, cresce com lendas, cresce com histórias contadas dos mais velhos para os mais novos sobre quem foi Antônio Conselheiro, sobre quem foi Lampião, sobre quem foi Corisco, Dadá. Isso faz parte da nossa cultura.

E uma coisa que fica evidente com o tempo é a gente entender que o cangaceiro é um bandido, um bandido sanguinário, um bandido que fez muitas coisas horrorosas onde passou. Mas nunca é só isso. Ele é resultado de alguma coisa. O fenômeno do cangaço surge como reação à opressão dos coronéis, dos grileiros que queriam ser donos de terras em quantidade inimaginável e que forçavam pequenos produtores e agricultores a saírem de suas terras, a se tornarem empregados vivendo com pouco. Matando, estuprando. São bandidos também. Aliás, os piores bandidos são esses coronéis. E o cangaço surge como reação a isso.


Quais foram suas principais referências cinematográficas e gráficas para o filme?

Do ponto de vista de animação e referências gráficas, eu tenho o Joe Sacco, que é um artista gráfico, quadrinista e jornalista muito importante. Inclusive ele acaba de lançar um trabalho fantástico chamado A Guerra em Gaza, e é uma referência importante. Como referência de animação temos, lógico, a Persépolis, que fala também de opressão, de ditadura e de resistência.

Fora do âmbito da animação, tem uma série de outros filmes importantíssimos. Tem o Duna — que eu me refiro aqui é o de Jodorowsky, que é o Duna original — que também fala de resistência, fala de deserto, fala de tecnologia rudimentar contra a tecnologia militar. E o filme Revoada é basicamente isso.


O filme constrói heróis ou apresenta uma visão mais complexa do cangaço?

A gente não constrói heróis no filme, não. Quem assistir vai entender. A gente tem um retrato bastante verossímil do que era o cangaceiro. Mas fica também muito presente essa ideia que eu acho que é a principal que deve ficar: o opressor cria uma resistência. Ele é responsável por aquilo que ele imprime no povo. Ninguém fica muito tempo esperando, recebendo as pancadas sem reagir. A reação vai acontecer. Pode ser de primeira, pode ser depois. E o cangaço é isso.


Você traça um paralelo entre o cangaço e a situação na Palestina. Como surgiu essa conexão?

O paralelo com a Palestina é bastante forte, sobretudo nesse período que a gente está vivendo. Você tinha aqui no Nordeste um povo completamente desprovido de recursos, inclusive muito mais do que hoje, porque na época não existia mídia social. Então as pessoas morriam aqui e ficavam mortas. Tem muitos cadáveres enterrados pelo Nordeste, de gente pobre, de gente simples, de pessoas honestas que foram mortas pelo poder dos coronéis, pelo poder da opressão, pelo poder da ganância.

A questão das terras aqui no Brasil foi muito cruel. O primeiro golpe de Estado brasileiro foi contra um imperador que pensou em fazer distribuição de terras e depois acabou se rendendo e ele mesmo assinou a Lei das Terras, que é uma lei que privilegia o coronelismo, que cria o coronelismo a partir disso. As vítimas desse movimento são as pessoas pobres, as pessoas simples. Sobretudo aqui no Nordeste, naquele período, que era uma terra meio terra de ninguém.

Eu faço também um paralelo com o western, com o velho oeste norte-americano, que também era uma terra sem lei, em que grileiros chegavam e se impunham a partir da força contra pessoas que não tinham recursos.

A Palestina acaba sendo isso. O Estado de Israel, o Estado sionista de Israel, chegou como convidado, como refugiado, e aos poucos esse pensamento sionista tomou conta do Estado de Israel e se tornou hoje algo que é um câncer do mundo. Eles dominam a relação, inclusive, com os Estados Unidos. Eles têm políticos, eles têm talvez o próprio presidente, de várias formas, por via financeira, por outras vias também. E o filme Revoada toca, se conecta com essa nossa realidade atual em relação a Gaza.


Como você vê a política mundial atual e a ascensão da extrema-direita?

A política mundial hoje é… alguém vai fazer um filme sobre isso, sobre a conexão que existe entre o que acontece no Brasil, o que acontece nos Estados Unidos, o que tem acontecido em alguns países europeus, e a reação que tem acontecido também. Essa guinada da extrema-direita é uma guinada do autoritarismo, uma guinada do lado opressor. Eu posso aqui falar em termos até mais bíblicos: é uma guinada do mal. É o mal hoje que tenta tomar conta do mundo através dessas pessoas.

E eles têm iludido muita gente justamente a partir da religião, a partir do culto ao líder, que é uma coisa muito fascista, é a base do fascismo praticamente — o culto cego ao líder. Isso você teve aqui no Brasil com o bolsonarismo, você tem hoje nos Estados Unidos com o Trump. E isso tem se espalhado por outros países, essa coisa da ultradireita. Eu acho perigosíssimo, mas eu tenho ao mesmo tempo bastante esperança, porque eu tenho visto a reação que tem acontecido.


Gaza mudou alguma coisa na percepção mundial sobre Israel?

Gaza é um exemplo bastante forte. Israel sempre foi visto, pelo menos a visão geral sobre Israel era de que eles eram vítimas de um holocausto — e os judeus foram, isso é inegável. Mas isso não tem nada a ver Israel, com o judaísmo, inclusive. É algo que ficou muito claro. O Estado de Israel não tem nada a ver com a religião judaica. Eles é que tentam juntar uma coisa com a outra.

Gaza acabou sendo o estopim de um conjunto de reações que desmascararam muitos mitos. Esse mito de Israel ser vítima o tempo inteiro — eles não são, na verdade, eles são agressores. A gente está vendo cada vez mais isso. A maneira como eles se comportam, a maneira como eles enxergam outras religiões, a maneira como eles se enxergam como povo eleito, é algo ridículo e muito perigoso.

Outro mito que foi desmascarado foi a questão do islamismo, que sempre foi olhado com desconfiança por muitos países, sobretudo na Europa. Aqui no Brasil não existe tanto isso, mas na Europa é algo muito estrutural, nos Estados Unidos também. Isso foi desmascarado e isso tem mudado para melhor, no sentido de se enxergar esses povos árabes, esses povos do Oriente Médio, como vítimas. Essas são realmente as vítimas em muitos aspectos.

Fica também muito claro que Israel é uma manobra geopolítica da Inglaterra e dos Estados Unidos pós-segunda guerra para ter domínio sobre aquela região do Oriente Médio. Isso hoje está muito claro para muita gente, para muito mais gente. Eu sempre pensei sobre isso, mas está mais claro para mim e, sem dúvida, ficou muito claro para muita gente que tinha uma visão completamente oposta.


Você vê mudanças na ordem mundial?

A política no mundo também está sendo redesenhada no sentido do sul global. O que sempre aconteceu foi os países do Norte — Europa, Estados Unidos — sempre dominaram, sempre tiveram os meios de produção e sempre tentaram manter, através de dívidas, através de influência política, através de patrocínio de golpes de Estado, os países do sul global como submissos, como vassalos.

Isso está mudando radicalmente. A ordem do mundo está sendo redesenhada. A China hoje é uma potência inegável, e eu já posso aqui arriscar dizer que é a maior potência do mundo, não os Estados Unidos. E com outro approach, um approach mais no sentido do respeito à multilateralidade, do respeito à ordem vigente de cada país.

A ordem do mundo está sendo reorganizada. E não no sentido de que o Sul agora vai mandar no Norte. Isso não é esse propósito que eu enxergo e não é esse o futuro que eu enxergo.


Qual é a sua esperança para o futuro?

Eu enxergo, na verdade, um mundo multilateral no futuro. Espero estar vivo para ver isso de forma pujante daqui a uma década ou um pouco menos, se for possível. Espero ver esse mundo finalmente florescer e acabar com o autoritarismo, e todos se respeitarem e interagirem de forma igualitária.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Luciano Silva

14/10/2025 - 15h34

Grande artista Ducca Rios. Realmente o cangaço representa a luta dos excluídos. Muito pertinente a comparação atual com a luta dos palestinos.


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