Enquanto o Norte lucra com algoritmos, a juventude africana reinventa o uso da tecnologia como forma de resistência e emancipação
No coração de Budondo, uma pequena vila em Uganda, onde as estradas são de terra batida e a eletricidade falha mais do que funciona, um jovem de 18 anos desafia o destino. EIlly Ntonde, estudante de química, tenta entender como os metais reagem ao ácido — uma questão simples nos grandes centros urbanos, mas um desafio enorme em uma região onde escolas carecem de laboratórios, professores e até luz constante.
Sem biblioteca e sem livros, Ntonde recorreu à única ferramenta que lhe resta: um celular barato e 100 megabytes de dados. Bastaram alguns toques e, em segundos, ele tinha diante de si as explicações detalhadas de um tutor que nunca dorme: o ChatGPT, símbolo mais recente da revolução digital.
Essa cena sintetiza uma mudança histórica. Pela primeira vez, a juventude africana, tantas vezes deixada à margem da globalização, encontra na inteligência artificial (IA) não apenas um recurso tecnológico, mas uma oportunidade concreta de emancipação. O que antes parecia um privilégio reservado a poucos — o acesso ao conhecimento — agora cabe no bolso e custa centavos.
Mas a pergunta que se impõe é: a IA vai realmente democratizar o saber ou apenas reproduzir as desigualdades que a criaram?
O potencial de uma revolução popular
A experiência de Budondo não é isolada. Em Nairóbi, no Quênia, um projeto entre a OpenAI e a rede de clínicas Penda Health mostrou que médicos auxiliados por IA reduziram erros de diagnóstico em 16%. Na Nigéria, estudantes que usaram o Microsoft Copilot tiveram ganhos equivalentes a dois anos extras de aprendizado em inglês. São resultados concretos que revelam o poder transformador da tecnologia quando usada com propósito social.
Essa transformação ecoa a revolução dos celulares nas décadas passadas. A África, que tinha menos de uma linha telefônica por 100 pessoas nos anos 1990, saltou diretamente para a era móvel, tornando-se um dos continentes mais conectados do mundo em duas décadas. Agora, a IA promete um novo salto — o salto do conhecimento.
Mas, como toda revolução, essa também corre o risco de ser sequestrada pelos interesses de sempre.
O abismo digital e a nova face da desigualdade
Enquanto nove em cada dez pessoas em países ricos estão conectadas, nos países pobres apenas uma em cada quatro tem acesso à internet. Mesmo onde há sinal, o preço dos dados é uma barreira intransponível. E sem conectividade, a IA é apenas um mito distante — uma promessa feita para os outros.
A boa notícia é que conversar com uma IA consome menos dados do que uma simples busca no Google. O problema é que ainda assim, para milhões, o custo é proibitivo. As grandes operadoras de telecomunicações continuam cobrando caro, transformando a informação — bem público essencial — em mercadoria de luxo.
A esquerda deve ser clara nesse ponto: sem políticas públicas robustas de conectividade universal, a inteligência artificial apenas reforçará o apartheid digital entre ricos e pobres.
Não se trata de caridade tecnológica, mas de justiça social. O acesso à IA deve ser entendido como um novo direito humano — tão essencial quanto o direito à educação ou à água potável.
A barreira invisível da linguagem
A IA também traz uma nova forma de exclusão: a linguística. A maioria dos modelos é treinada em inglês e outras línguas dos países ricos, ignorando as centenas de idiomas africanos falados por milhões de pessoas. Isso cria um abismo cultural que vai muito além da tradução: trata-se da negação de identidade.
Projetos como Masakhane, Ghana NLP e Kencorpus surgem como resistência — iniciativas comunitárias que desenvolvem IA em idiomas locais, reivindicando o direito à palavra, à compreensão e à representação. São movimentos políticos, ainda que travestidos de tecnologia. Quando uma criança pode aprender ciência em sua própria língua, ela não está apenas estudando — está reivindicando lugar no mundo.
O desafio institucional: IA sem política é só um brinquedo
Mas nenhuma ferramenta muda o mundo sozinha. O economista Iqbal Dhaliwal lembra que muitas “tecnologias milagrosas” fracassaram por não se integrarem às estruturas locais. Foi assim com os MOOCs — cursos online que prometiam democratizar o ensino e acabaram beneficiando apenas quem já tinha capital cultural para aproveitá-los.
A IA corre o mesmo risco. Sem professores preparados, sem escolas equipadas e sem políticas públicas que a tornem parte do sistema, ela será mais um luxo tecnocrático vendido como salvação.
Um estudo da Universidade Columbia mostra como isso acontece: um sistema de IA na Índia identificou milhares de empresas fraudulentas, mas nada mudou. O Estado não tinha meios — nem vontade política — para agir sobre os dados. Inteligência sem ação é impotência.
O progresso como construção coletiva
A verdadeira revolução da IA só ocorrerá quando ela mudar a forma como as pessoas vivem e trabalham — quando for integrada à economia real, à saúde pública, à educação básica. Quando deixar de ser ferramenta de lucro e se tornar instrumento de emancipação.
Para isso, é preciso investimento público, infraestrutura, formação docente e soberania tecnológica. Os países africanos não podem ser apenas consumidores de IA feita no Norte Global; precisam ser produtores, criadores, autores do próprio futuro digital.
Um futuro escrito nas telas de Budondo
EIlly Ntonde, com seus 100 MB e sua curiosidade infinita, representa mais do que um estudante curioso: ele é o retrato de uma geração que não quer esperar pela benevolência do mercado ou das potências estrangeiras. Quer aprender, quer criar, quer transformar.
A esquerda deve enxergar nessa juventude um farol. O potencial da inteligência artificial é imenso, mas sua realização depende de um projeto político que coloque o conhecimento acima do lucro, a inclusão acima da eficiência, e a dignidade acima da produtividade.
Enquanto o mundo corporativo enxerga a IA como oportunidade de negócios, os jovens de Budondo a enxergam como oportunidade de vida. E é nessa diferença que reside o verdadeiro sentido do progresso.
Afinal, quando um estudante em uma vila africana consegue aprender química com a ajuda de um chatbot, mesmo sem luz elétrica, o que está em jogo não é apenas tecnologia — é justiça social em sua forma mais pura.
Porque, no fim das contas, a revolução da inteligência artificial não será medida em linhas de código, mas em quantos EIllys conseguirão, enfim, escrever o próprio futuro.


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