EUA e Reino Unido tentam conter uma indústria bilionária de fraudes online que mistura tecnologia, escravidão e impunidade em nome do lucro global
Em tempos de economia globalizada e tecnologia sem fronteiras, o crime também se globalizou — e se sofisticou. A recente ofensiva conjunta dos Estados Unidos e do Reino Unido contra a poderosa indústria de fraudes online na Ásia expõe não apenas o tamanho do problema, mas também as contradições de um sistema que permitiu que o golpe se tornasse um negócio multibilionário.
A apreensão de cerca de US$ 15 bilhões em criptomoedas, o maior confisco da história dos EUA, parece uma vitória retumbante. No centro da operação está Chen Zhi, bilionário cambojano e presidente do Prince Group, apontado pelo Departamento de Justiça americano como líder de “uma das maiores organizações criminosas transnacionais da Ásia”. As sanções contra Chen e seus associados — incluindo o bloqueio de propriedades de luxo em Londres — sinalizam um esforço conjunto do Ocidente para dar um basta na economia paralela dos golpes digitais.
Mas a verdade incômoda é que essa repressão, embora necessária, atinge apenas a superfície de um fenômeno muito mais profundo: a transformação do crime em indústria — e do desespero humano em mercadoria.
A engrenagem do lucro sobre a vida
A fraude digital é hoje uma das atividades ilícitas mais rentáveis do planeta. Movimenta meio trilhão de dólares por ano, competindo de igual para igual com o tráfico de drogas. No Camboja, epicentro dessa economia sombria, o mercado de golpes online movimenta US$ 12,5 bilhões anuais, superando o setor têxtil — o principal motor econômico legal do país.
Parece ironia, mas não é. O mesmo país que abastece o mundo com roupas baratas produzidas por trabalhadores explorados agora se tornou também o berço de uma indústria do engano, construída sobre uma nova forma de servidão. Estima-se que 200 mil pessoas trabalhem nessas “fábricas de golpes”, muitas mantidas em regime de escravidão moderna, presas em complexos cercados por arame farpado, vigiadas por câmeras e seguranças armados.
Essa é a face mais cruel de um capitalismo global que transforma tudo — inclusive o crime — em negócio. A fronteira entre a exploração legal e a ilegal se dissolve quando ambos os sistemas têm o mesmo objetivo: extrair lucro sem limites, custe o que custar.
O império da impunidade
Os Estados Unidos e o Reino Unido, que agora posam de defensores da moralidade digital, não são alheios a esse sistema. Durante décadas, alimentaram as condições que permitiram que conglomerados como o Prince Group prosperassem: desregulação financeira, paraísos fiscais e o fetiche da “inovação tecnológica” sem controle.
As criptomoedas — celebradas como símbolo da liberdade individual e do empreendedorismo digital — se transformaram em oásis da impunidade, onde fortunas ilícitas se movem em segundos sem passar pelos mecanismos tradicionais de fiscalização. Quando o mercado pede liberdade absoluta, o crime apenas ocupa o espaço que o Estado abandona.
No Camboja, o governo mantém-se silencioso e inerte. Nenhuma das propriedades associadas aos esquemas de Chen Zhi foi alvo de ações policiais após as sanções internacionais. A mensagem é clara: o lucro fala mais alto que a lei. É a lógica da dependência colonial moderna — países ricos exploram, países pobres lavam, e o povo paga o preço.
A nova face da exploração global
Os “golpes de abate de porcos”, que destroem economias pessoais em minutos, são apenas a ponta visível de uma cadeia de exploração que atravessa continentes. Por trás da tela, há jovens asiáticos enganados e escravizados em complexos industriais, forçados a aplicar golpes contra vítimas de todo o mundo. É a tragédia da globalização: trabalhadores explorando trabalhadores, num ciclo infinito de desespero.
Enquanto os bilionários digitais acumulam fortunas, as vítimas — tanto os enganados quanto os explorados — são tratados como danos colaterais. E mesmo a repressão mais dura dificilmente atinge os verdadeiros beneficiários: os bancos, as plataformas de tecnologia, os intermediários financeiros e os governos que lucram com a circulação desse dinheiro sujo.
A falsa vitória do Ocidente
A prisão de Chen Zhi e o confisco bilionário são importantes, mas insuficientes. Como alertam os especialistas, a indústria do golpe é altamente adaptável. Mesmo sob pressão, ela se realoca — de Mianmar para Laos, de Camboja para Timor-Leste, de lá para os Emirados Árabes e a Geórgia. Onde houver brechas, corrupção e miséria, o crime encontrará um novo lar.
Enquanto isso, as potências ocidentais celebram sua “vitória moral”, sem reconhecer que o mesmo sistema financeiro que permite lavar bilhões também mantém milhões na pobreza. A ofensiva policial é o curativo; a ferida é o próprio capitalismo digital desregulado.
O que está em jogo é a soberania social
Combater o crime digital não é apenas uma questão de segurança, mas de justiça econômica. Não bastam prisões e sanções — é preciso enfrentar as estruturas que sustentam essa indústria: a desigualdade, a exploração do trabalho, a falta de regulação financeira e o domínio das big techs sobre a vida social.
Enquanto os governos do Sul Global permanecem submissos aos interesses de elites corruptas e corporações estrangeiras, a população continua presa entre dois predadores: o Estado ausente e o mercado voraz.
O verdadeiro desafio é construir uma governança digital solidária, onde a tecnologia sirva à coletividade e não ao lucro. É preciso democratizar o acesso à informação, fiscalizar as transações financeiras internacionais e, sobretudo, proteger os trabalhadores — tanto os enganados quanto os explorados.
Porque, no fim das contas, a indústria dos golpes online é apenas o espelho mais nítido de um mundo onde a ganância virou modelo de negócio. E enquanto a impunidade for a língua oficial do capitalismo global, o crime continuará fluente.


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