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Gaddafi, o dublê e a escrava

Durante o Festival do Rio deste ano, assisti um filme divertido e assustador. Divertido porque eu estava confortavelmente instalado numa sala de cinema, cercado de gente amiga, e dentro de um país que, tirante o esporte nacional de derrubar ministros, está em paz consigo mesmo.

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Durante o Festival do Rio deste ano, assisti um filme divertido e assustador. Divertido porque eu estava confortavelmente instalado numa sala de cinema, cercado de gente amiga, e dentro de um país que, tirante o esporte nacional de derrubar ministros, está em paz consigo mesmo. Assustador porque a história tem laivos de realismo e verossimilhança, afinal contava as peripécias, embora em forma de caricatura, de um personagem real, o filho do ditador do Iraque, Uday Saddam Hussein.

Por uma associação fácil, eu não paráva de pensar que o Saddam do filme era na verdade Gaddafi, o ditador líbio. E que Uday era um dos filhos de Gaddafi, ou o próprio Gaddafi.

O filme narra a história de um soldado iraquiano, Latif que, por um acaso trágico, tem uma grande semelhança física com Uday Saddam Hussein.

Uday vinha procurando, há algum tempo, através do serviço secreto, um sósia para si, depois que descobrira que seu pai tinha um. Com isso, aumentava sua segurança pessoal e ainda ganhava uns dias de férias, ao mandar o sósia executar tarefas desagradáveis, como visitar bases distantes do exército.

A história começa a ganhar contornos de tragédia conforme Uday vai revelando seu lado monstruoso, sobretudo em relação às mulheres. Ele literalmente as caça na porta dos colégios, manda seus homens sequestrarem-nas, leva-as para casa, onde as obriga a beber álcool e drogar-se, depois as estupra, espanca e mata. Seus corpos são jogados no deserto.

Minha associação deste filme com Gaddafi voltou forte, tanto que tenho de me concentrar para não confundir os nomes, ao ler matéria publicada na Folha, intitulada Nas garras de Gaddafi, com base numa entrevista publicada hoje pelo jornal francês Le Monde. A jovem Safia revela ao jornal como foi sequestrada por homens do ditador líbio e transformada em sua escrava sexual, aos 15 anos, sendo violentada sistematicamente por cinco anos, até conseguir escapar do país.

Quando terminou o filme, eu fiz algumas reflexões, que gostaria de partilhar:

O filme é pró-americano. Então às razões estéticas e dramáticas próprias de um filme caricatural, que ordenam a criação de uma situação maniqueísta, com um personagem completamente vilão, somam-se razões de ordem política e comercial. Falado em inglês, o filme destina-se naturalmente ao público ocidental, sobretudo o maior de todos, o norte-americano, para o qual uma história sobre Saddam só teria sentido através da vilanização absoluta do personagem.

Mesmo exagerando, a caricatura tem uma verossimilhança fundamental. Tanto o Iraque como a Líbia eram regimes fechados, sem liberdade de expressão, que não admitiam críticas ao regime. Nesse ambiente de segredo, florescem as histórias mais terríveis, e tanto mais terríveis porque podem ser verdadeiras.

Uma coisa são as atrocidades cometidas pelos EUA, denunciadas pela própria imprensa americana e por intelectuais americanos, sem que estes sofram qualquer retaliação por parte do governo; outra sao atrocidades mantidas em segredo por décadas, por regimes e ditadores que brutalizam impiedosamente qualquer crítico.

Nesta equação, os EUA e o Ocidente, embora ao cabo promovam a morte de muito mais gente, acabam vencendo a guerra da propaganda, pois permitem que a informação flua com liberdade. A obsessão pela transparência na cultura americana é tão grande que deu razão até ao surgimento do maior vazamento de informação da história, como foi o caso dos bilhetes diplomáticos repassados à organização Wikleaks.

Impressionou-me, por fim, o poderio da cultura, essa arma final com que os EUA costumam selar o caixão de seus adversários. Mesmo quando perdem a guerra, como foi o caso do Vietnam, produzem em seguida uma sequência tão prolixa de filmes sobre o tema, que o resultado acaba sendo positivo para os EUA em vários sentidos.

Aliás, esse é o poder mais incrível de um objeto cultural: transformar a derrota em vitória.  Sempre foi algo comum na poesia e na música, quando o autor converte o fim de um relacionamento ou qualquer outro revés sentimental em inspiração para criar um poema ou canção de alto valor estético. Nunca tinha pensado, porém, como isso também pode valer para geopolítica.

Os EUA ganharam a guerra contra o Iraque, mas em termos morais, sofreram uma dura derrota, pois sua imagem saiu muito arranhada do episódio. No entanto, através do poder do cinema, eles vão aos poucos transformando a história. Os líderes iraquianos vão sendo caricaturizados. O Iraque é descrito como um país ridículo, praticamente sem história ou povo, apenas um rebanho de idiotas passivos submetidos aos caprichos da família Hussein. A mesma coisa vale para a Líbia.

À violência física seguem-se décadas de violência simbólica. É nesse ponto que vemos a importância, em qualquer situação, de um ambiente democrático de liberdade, com a existência de relatos independentes, críticos, que evitam exageros e manipulações posteriores. E, sobretudo, vemos a importância, para qualquer país, de investir em cultura, para inventar e dominar a sua própria história.

 

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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clairrosenthal

11/06/2013 - 13h09

muito bom o filme,mostra o perigo de um psicopata no poder,e eles chegam la facilmente,e matam,destroem


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