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Reinaldo Moraes – Tarde amara na avenida Santo Amaro

Deu-se que alguém no Rio de Janeiro decidiu que este modesto escriba deveria ser fotografado em estúdio por um fotógrafo profissional.

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Tarde amara na avenida Santo Amaro

Por Reinaldo Moraes, escritor

Dedico este texto aos infelizes paulistanos que trafegam por ela. Seus 8 km roubam horas, e um horrível Borba Gato de botas espera os sobreviventes

Dedico a história que eu vou contar aos infelizes munícipes paulistanos que transitam diariamente pela avenida Santo Amaro.

Deu-se que alguém no Rio de Janeiro decidiu que este modesto escriba deveria ser fotografado em estúdio por um fotógrafo profissional. Não por meus duvidosos atributos físicos, mas porque queriam minha foto numa publicação, junto aos textos meus que saíam ali -e que, curiosamente, deixaram de sair em seguida, mas essa é outra história.

O carioca encarregado de agendar a foto me perguntou por e-mail se eu estava em São Paulo ou no Rio. “Em Sampa”, respondi, usando a velha gíria inventada, ao que consta, por músicos cariocas, há décadas.
Num e-mail subsequente, esse contato carioca me enviou o endereço da sessão de fotos. Depois de um Google rápido, estremeci ao constatar que a tal rua ficava quase no final da avenida Santo Amaro, uma das campeãs de engarrafamentos em São Paulo. Engolindo a contrariedade, marcamos dia e hora.

Com quase 8 km, a avenida Santo Amaro sai do bairro do Itaim, contíguo aos Jardins, e caminha para o sul com seus corredores centrais para ônibus e duas estreitíssimas faixas para carros em cada direção, seguindo até o bairro homônimo de Santo Amaro. A região já foi reduto de imigrantes alemães, o que explica a grande oferta de kassler, einsbein e bratwurst em seus restaurantes típicos. Tudo regado a muita cerveja e steinhager, claro.

Joelhos de porco e salsichões de vitela à parte, o fato é que é um monumental pé no saco trafegar pela Santo Amaro de cabo a rabo, um teste extremo de autocontrole emocional até para os mais iluminados bodhisattvas do Nepal.

Cortada por inúmeras transversais e zebras de pedestres, todas com semáforos não sincronizados, se você se mete nela desde o início às 14h30 de uma quarta-feira, como eu fiz, é bem capaz que acabe gastando no trajeto total mais tempo do que levaria para ir, digamos, até Campinas, a 100 km da capital.

Sem contar que, ao chegar no trecho final da avenida -como eu, às 16h!-, você ainda é recepcionado, na confluência da Santo Amaro com a avenida Adolfo Pinheiro, pela polêmica estátua do bandeirante Borba Gato de botas e chapelão, segurando um fálico bacamarte.

O mostrengo, de dez metros de altura e 20 toneladas de concreto recamado de ladrilhos coloridos, é apodado por seus detratores como o “maior anão de jardim do mundo”. Caetano sabia do que estava falando quando, em “Sampa”, cantou: “Chamei de mau gosto o que vi”.

Já suficientemente aperreado por ter de enfrentar a insana avenida (sem contar a volta!) só pra tirar uma bendita foto, achei por fim a transversal que eu procurava lá nos cafundós da avenida Santo Amaro. E nela o número do tal lugar.

Não acreditei no que vi: ali se abrigava não um estúdio fotográfico, mas um modesto chaveiro, anunciado por uma vistosa placa amarela em forma de chave. Já em desespero, parei o carro onde era possível -isto é, a quatro boas quadras de distância-, e fui lá assuntar.

A moça que atendia atrás do balcão do chaveiro desatou uma gargalhada quando indaguei sobre o fotógrafo e a empresa. “Ih, amigo,” respondeu ela, “você não é o primeiro que me vem aqui perguntar isso. Esse lugar aí parece que fica numa rua de mesmo nome -só que no Rio!”

Desatento à informação de que eu estava em São Paulo, meu contato carioca dera um endereço guanabarino idêntico ao de Santo Amaro.

Rilhando os dentes de raiva hidrófoba, voltei pro carro planejando assassinatos e outras providências que julgava cabíveis contra as estultas potências que me haviam feito perder a tarde toda em vão.

Ao passar de novo pela estátua do Borba Gato, abordando o ilustre bandeirantes de costas pra mim agora, tive ímpetos de ir dar um bom chute nos fundilhos dele, para desabafar um pouco. Mas desisti ao avaliar a impossibilidade da manobra -eu precisaria ter uns cinco metros de perna e um pé de chumbo.

Parado no trânsito, com mais 8 kms de lentidão pela frente, tive ganas de subir no banco, botar meio corpo pra fora do teto solar e extravasar ao mundo, no mais sórdido calão, toda a minha cólera santa. Mas, para grande sorte do industrioso e pacífico povo de Santo Amaro, meu carro não tem teto solar.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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