Heróis e Bandidos além dos Quadrinhos

Entrevista com o escritor e cartunista Alfredo Karras

Acostumado a desenhar heróis e bandidos nas mais variadas performances das histórias em quadrinhos, o escritor e cartunista, Alfredo Karras, 39 anos, nunca pensou que suas ilustrações tomassem uma dimensão tão real como aconteceu na sua vida. Ele, um herói! Mas, por amor a própria vida não pode se salvar da crueldade dos bandidos.

“Eu havia deixado a redação do jornal Acontece ( Cubatão, SP ) onde trabalho como chargista free lancer, por volta das 03: 15h do dia 21 de dezembro de 2007 ( trabalhar até madrugada é comum no jornalismo ). Fechada a edição da semana, eu voltava para casa. Estava a pé. Apesar de exausto, o meu gosto por caminhadas me fizera recusar uma carona. Ironicamente, essa recusa fez daquela rápida caminhada a minha última.

Eu tinha apenas umas míseras horas de sono antes de encarar outro jornal, o Reação Popular. Minha vida era uma correria e é claro, eu adorava.

Estava com uma dor-de-cabeça terrível. Minha única preocupação era saber se teria ânimo suficiente para tomar um banho ou se cairia na cama daquele jeito mesmo. Não podia imaginar que em alguns minutos eu estaria caído, não em minha cama, mas numa poça de sangue.

Charge política
Eu já estava na esquina de minha casa quando eles apareceram – dois rapazes numa moto. O que estava na garupa saltou rapidamente e me abordou. Os movimentos foram rápidos e precisos. Ele me emboscou quase embaixo de uma árvore, o canto mais escuro da rua, pois é sob a proteção das trevas que os maldosos e covardes se mostram audaciosos. Mal consegui enxergar seu rosto, devido às sombras e ao capacete que usava. Ele me apontava alguma coisa.

Era uma arma.

Foi tudo muito rápido, como sempre é nesses casos.

Ele exigiu minha pasta furiosamente; havia tanto ódio, tanta maldade emanando de sua voz, de sua figura, que foi como se uma espécie de sufocante fossa espiritual me envolvesse. Eu nunca havia testemunhado uma fúria assassina como aquela; não era uma pessoa que me acuava e sim algum tipo de besta-fera que caminhava sobre duas patas.

Expliquei àquela coisa que vestia pele humana que não havia nada de valor na pasta, eu apenas levava o meu material de desenho. Era uma simples pasta de plástico verde. Em seu interior apenas pincéis, canetinhas, lápis, essas coisas. Poderia ser a pasta de uma criança que voltava da escola primária.

Ele pareceu não acreditar e ficou ainda mais enraivecido; então, sem qualquer aviso, como um relâmpago de ódio, golpeou-me na testa com a coronha da arma. O impacto foi tão violento que, ao por minha mão sobre o corte que se abriu, ela voltou lavada em sangue. A pancada deixou-me momentaneamente tonto. Não pensei em reagir; apesar de sua postura ameaçadora e de ser mais ou menos da minha altura, eu havia retornado para a musculação e era visivelmente muito mais forte. Embora pudesse quebrá-lo ao meio como um palito-de-dente, eu sabia que não conseguiria ser mais rápido do que uma bala. Não era o momento de bancar o herói. Provavelmente ele não tinha nada a perder, ao passo que eu carregava em meu coração um tesouro de realizações e de esperanças. Minha vida era preciosa para mim e para aqueles com quem eu a partilhava.

A invenção da pólvora transformou todos os frangotes em perigosos assassinos e não há mais combates limpos hoje em dia. Ciente de que a coisa mais sábia a fazer era obedecê-lo, estendi a pasta para que ele a apanhasse. Não valia a pena morrer por um punhado de pincéis e tintas.

Então, aconteceu.

Auto retrato
Tenho a impressão de que a pasta tocou a arma de relance ( havia apenas um metro ou menos de distância entre nós ) mas não tenho certeza por causa da tontura. É claro que isso teria parecido uma reação de minha parte, uma tentativa de desarmá-lo. Ou ele fez o que fez porque talvez estivesse drogado. Ou talvez ele quisesse apenas fazer com que aquilo parecesse um assalto, como dizem algumas pessoas por aí. E o mais provável talvez entre tantos que existem neste caso: talvez jamais venhamos a descobrir o quê se passou naquela mente doentia no instante seguinte ao meu gesto de rendição.

O fato é que, ao invés de pegar a pasta, ele puxou o gatilho.

Eu estava tão desnorteado pela coronhada recebida que nem o vi o clarão do disparo; meu cérebro apenas registrou o estampido. Minha mente não formulou nenhum pensamento, tudo o que experimentei foi uma sensação da mais completa incredulidade. Não podia acreditar no que tinha ouvido. Ele puxara o gatilho? Ele realmente puxara o gatilho? Eu havia sido baleado? Não era possível!

Ainda permaneci de pé por um ou dois segundos, atônito. Não senti dor alguma, o que aumentou minha confusão. Então, antes que meu aturdido cérebro assimilasse o que realmente havia acontecido naquele minúsculo e fatídico vácuo de tempo, minhas pernas desapareceram. A queda fez com que minha cabeça ricocheteasse na calçada como uma bola de basquete, abrindo outro corte sobre o supercílio direito.

Os dois supostos assaltantes fugiram sem levar nada.

Tentei me levantar e meu corpo não obedeceu; imediatamente compreendi que a bala atingira a coluna cervical, embora ainda não fizesse idéia da altura da lesão e nem por qual parte do corpo a bala entrara. Quando gritei por socorro para um homem que passou minutos depois, percebi, pela diferença em minha voz ( parecia mais aguda e fraca ) que havia sido baleado no pescoço. Deus, minha voz estava saindo não só por minha boca mas por um buraco no meu pescoço!

Isso não era nada bom. Um ferimento no pescoço poderia ser fatal e eu corria o risco de morrer em poucos minutos.

Lamento decepcionar os que me consideram algum tipo de guru ou herói mas quando me vi esvaindo-me em sangue numa calçada, com uma bala atravessada no pescoço, não tive nenhum pensamento grandioso – tudo o que senti foi raiva e medo. Vocês precisam saber disso.

Sim, muita raiva! Eu estava na melhor fase de minha existência: decidira retomar os estudos e minha saúde era perfeita: era doador de sangue, praticava musculação e caminhadas, alimentava-me bem, não fumava e raramente bebia. Não dava um espirro, não importava se estava sob chuva, sol ou vento. Havia conseguido mais um emprego como chargista free-lancer. Semanas antes, eu e minha namorada havíamos percorrido alguns shoppings de Santo André, abraçados, à procura de um par de alianças de noivado. Além disso, ela iria se formar na faculdade e nós havíamos passado o ano inteiro falando sobre o baile de formatura.

Eu, que já era conhecido por cruzar apressadamente as ruas da cidade ( uma vez chamaram-me de “Passolargo” ) estava ainda mais elétrico e entusiasmado com a vida do que o habitual. Ah! VIDA! Sim, eu sentia-me vivo e motivado, eu sentia que, apesar de todas as dificuldades e contratempos, de todos os erros, eu era senhor de meu caminho e boas perspectivas abriam-se diante de mim. 2008 prometia ser, até então, o melhor ano de minha vida.

Eu estava feliz como nunca antes estivera.

Então, com que direito aquele indivíduo saltava da escuridão e com total indiferença pelos meus sonhos, por tudo o que eu amava e por todos os que me amavam, destruía o meu mundo de um golpe só, com o simples gesto de puxar um gatilho? Deus, em nome de quê ele fazia isso?! O que justificava, aos olhos dele, a minha morte e a dor insuportável daqueles que receberiam esse “presente” de Natal? Alguns trocados que ele ia tirar de mim ou como dizem os boatos, que alguém pagou pela minha cabeça?

Senti um medo terrível me invadir. Eu tinha tanto a viver, tanto a fazer! Eu ainda nem sentira o prazer de ver brilhar em meu dedo a aliança de noivado! Não queria morrer naquele momento, abatido covardemente por um João-Ninguém, uma criatura para quem a VIDA não significava nada…alguém que preferia matar do que trabalhar…uma máquina de ódio e destruição, capaz de assassinar friamente alguém que ele nunca vira antes e que nunca lhe fizera mal algum… e isso às portas do Natal! Eu não podia aceitar um final tão…tão absurdo.

Eu não queria ir naquela hora nem daquele modo.

Não tive nenhum pensamento nobre antes de perder a consciência. Não vi minha vida inteira passar diante de meus olhos. Também não vi a ambulância chegar. Minha namorada disse que pedi para avisarem-na sobre o que havia acontecido mas não me lembro disso”.

O trecho acima foi extraído e adaptado do próprio livro que Karras está concluindo: “O Manual do Revolucionário”. Hoje ele continua desenhando. Trabalha para quatro veículos como freelancer. Desenhar para ele é uma habilidade que veio de berço. E como escritor, foi o primeiro brasileiro a publicar um livro virtual por uma editora estrangeira. Isso aconteceu em 2003. O livro chama-se “Ser” e foi publicado pela Smink Works Books, em Inglês e Português. “Tenho outros livros ainda inéditos. Sou discípulo de Richard Bach ( Fernão Capelo Gaivota ) e Antoine de Saint-Exupéry ( O Pequeno Príncipe, Terra dos Homens ). No momento estou à procura de editora para relançar o “Ser” e também colocar no mercado o restante de minha produção literária. No momento as versões em Inglês e Português do “Ser” estão disponíveis no www.4shared.com. É só digitar Alfredo Karras em “busca”.
Aproveitem pois assim que ele for reeditado essas versões serão obviamente retiradas da net”, explica ele.

Quanto ao ocorrido, “Eu não chamo de “acidente” o que me aconteceu. Acidente é quando você escorrega numa casca de banana e cai de bunda no chão. Quando alguém te aponta uma arma e puxa o gatilho deliberadamente, é “atentado”. Aliás muita gente acredita que o assalto no qual fui baleado e no qual os agressores não levaram absolutamente nada foi na verdade uma tentativa de assassinato. O meu trabalho altamente crítico contra a corrupção em Cubatão, através de minhas charges, angariou-me muita antipatia da parte de gente poderosa.

A lesão e suas terríveis sequelas não o impediram de continuar a trabalhar e de aprimorar como profissional. “E se o que me aconteceu foi realmente uma tentativa de assassinato, foi uma péssima idéia; não se deve meter uma bala no pescoço de um taurino com ascendente em leão e deixá-lo vivo. Voltei mais mordaz do que antes”, declara o cartunista.

Porém para ele o que ganha hoje está longe de ser o suficiente para uma vida tranquila, tamanha a gravidade das sequelas.

O disparo à queima roupa no pescoço de uma 9mm ( equipamento de uso exclusivo das Forças Armadas ) provocou lesão completa na C6 e C7.

“Embora minha cabeça tenha permanecido milagrosamente sobre o pescoço, as sequelas foram terríveis: desenvolvi dor neuropática e calcificação heterotópica no quadril. Essa dor crônica é excruciante e leva muita gente à loucura, ao suicídio ou ao vício em analgésicos. No meu caso, parece que meus ossos dos braços e das costas estão quebrados e que estou com queimaduras de sol de terceiro grau.

Crítica política

No momento estou tentando controlar a dor com Gabapentina, mas o resultado não está sendo lá muito satisfatório; no entanto, estou tentando evitar passar para remédios mais fortes, viciantes e obviamente mais caros.

Mas o meu grande problema é a calcificação que se formou na articulação do fêmur esquerdo com a bacia. Essa calcificação envolveu toda articulação e limitou terrivelmente meus movimentos.

Como minha perna esquerda quase não dobra na altura da bacia, você pode imaginar o quanto é complicado para eu sentar. Eu não consigo sentar-me a noventa graus e isto está atrofiando a parte superior do meu tronco e reduzindo drasticamente minha capacidade respiratória. Eu não consigo passar sozinho da cadeira para a cama e vice-versa.

Não há como ficar confortável em cadeira alguma e depois de uma ou duas horas sentado eu já não consigo mais respirar direito e tenho de me deitar. A postura incorreta também está entortando minha coluna; ela está parecendo uma daquelas escadas em caracol.

Estou praticamente preso à cama desde que isto me aconteceu, há três anos. Como é extremamente penoso para mim deslocar-me com esta calcificação, só saio em caso de extrema necessidade. Eu poderia estar levando uma vida muito mais normal, no entanto sou prisioneiro desta calcificação. Mas o grande perigo é o fato dela estar começando a comprimir veias e artérias que descem pela perna esquerda, o que significa que eu posso perder a perna.

O tempo de espera para esta cirurgia, na AACD, era inicialmente de dois anos e meio, o que no meu caso já estava completamente fora de cogitação; recentemente esse tempo dobrou para CINCO anos.

Com um quadro tão grave, eu não posso me sujeitar a ficar em uma fila de espera que aumenta ao invés de diminuir (coisas de Brasil).

Essa é uma cirurgia de grande risco devido a quantidade de vasos sanguíneos presentes no local e consequentemente, muito cara.

Tenho de levantar cerca de R$ 30.000,00 para realizá-la particular e ainda assim, muitos médicos recusam-se a correr o risco de executá-la. Recorrer ao SUS, então, é suicídio. O que eu estou fazendo é iniciar uma campanha para a arrecadação dessa quantia. Vou preparar um blog ou site contando minha história e divulgá-la para o mundo antes que seja tarde demais para mim. Os interessados já podem entrar em contato comigo pelo email karrasmidia@gmail.com. Mas não peço apenas doações, peço trabalho; a possíveis empregadores ( jornais, revistas etc ) eu recomendo que visitem minha página do Flickr.

Também recomendo que assistam ao meu portfólio no YouTube: basta digitar Alfredo Karras e se divertir”.

Mais Vilões?

O impacto psicológico foi terrível. Eu era dono de uma saúde invejável: praticava musculação, caminhada, doava sangue. Na academia, conseguia fazer agachamento com 150 kg. É como pôr uma moto sobre os ombros, descer e levantar-se outra vez. Podia colocar uma porta abaixo só com uma “patada”.

De repente eu estava preso à uma cama e mal conseguia respirar sozinho. Minha namorada, que eu pedira em noivado um mês antes de ser baleado, foi a primeira a me abandonar: no mesmo mês em que terminamos, ela marcou o casamento com o amante que providenciara enquanto eu ainda lutava por minha vida.

Pouco tempo depois minha mãe faleceu de um câncer súbito e agressivo. Como eu morava com ela, fiquei praticamente sozinho. E é aí que minha história, já terrível, tomou proporções surreais sobre as quais ainda não posso falar.

É um herói?

Superar-se é não se entregar e seguir em frente? Bem, isso eu estou fazendo. Eu não me deixei abater pelo abandono e por nenhum dos problemas que surgiram de lá para cá, por mais terríveis que fossem.

No entanto, não aceito a idéia de permanecer para sempre numa cadeira de rodas. Não devemos confundir “aceitação” com “comodismo”.

Christopher Reeve jamais aceitou o que lhe aconteceu e graças a ele, as pesquisas com células-tronco deram um grande avanço. Tenho certeza de que quando o primeiro paraplégico finalmente levantar-se de sua cadeira de rodas ninguém o chamará de revoltado; será chamado de herói.

Não são as pessoas acomodadas que fazem o mundo girar; são as que questionam, as que não aceitam passivamente toda sorte de desgraças, as visionárias e teimosas. E eu sou teimoso como uma mula rs.

Conquistas?

Voltar a andar. Sentir outra vez a areia molhada da praia espremendo-se através dos dedos dos meus pés. Publicar meus livros. Continuar a trabalhar como ilustrador. Ganhar sozinho na Mega Sena rs.

Minhas realizações?

Não ter me entregado apesar de toda sorte de atribulações. Mas a maior realização de todas, sem dúvida, é estar hoje vivendo um amor nunca sonhado, nunca imaginado; um romance de cinema, daqueles que se desenrolam por entre guerras e perigos.

Pouco tempo depois de ser covardemente traído e abandonado, encontrei alguém que me ama pelo que eu sou, pelo meu espírito, alguém que não se importa com o que fizeram ao meu corpo.

Entrevista realizada pelo Guia do Deficiente e enviada por Alfredo Karras

http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/herois-e-bandidos-alem-dos-quadrinhos.html

http://goo.gl/K9z4J

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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