Freixo e o messianismo na política

Nem acho que Freixo seja o candidato preferido do Globo, mas certamente seus colunistas podem defendê-lo com uma desenvoltura que nunca teriam com qualquer outro candidato. As colunas de Caetano Veloso, no domingo, e de Franscico Bosco, hoje, provam isso.

O que espanta é o tom de messianismo, além do lacerdismo mais puro e radical.

Antes de continuar, uma ressalva. O fato d’eu não considerar Freixo a salvação do mundo, não quer dizer que eu não respeite suas boas intenções, suas e de todos que votam nele. Tampouco significa que eu acredite que a salvação está em Eduardo Paes. Simplesmente não acredito em salvadores. Acredito na política como construção coletiva, democrática. Ou seja, melhorando nossos legislativo e executivo, que por sua vez devem tomar medidas de transparência e administrativas de aprimoramento do judiciário e  ministério público.

Eu, inclusive, sempre fui cético àquelas manifestações na Espanha, dos “indignados”. Foram pra rua, fizeram discursos contra a política e depois elegeram um presidente da direita, que só está aprofundando a injustiça e o neoliberalismo.

Manifestações são parte fundamental da democracia moderna. Aprendi isso com Wanderley Guilherme dos Santos. Os partidos tem a representação política, mas é a sociedade civil que hoje protagoniza a participação política direta. Mas uma coisa não pode excluir a outra. Temos de ir às ruas sim, mas não contra a política, e sim a favor. Politizar o povo e eleger melhores representantes.

Não concordo com a ideia de governar sem apoio de nenhum partido, sem apoio do legislativo, e ainda por cima fazendo guerra à todos os empresários da cidade. Até concordaria em fazer guerra a alguns setores mafiosos do empresariado carioca, mas com um mínimo, um mínimo, repito, de base política. Admiro muito Dom Quixote, mas esta é a hora em que Sancho Panza diria a seu patrão: senhor, acho que o senhor está meio confuso. Aliás, este é um ponto raramente bem compreendido na obra de Cervantes: quem representa ali o povo, a inteligência popular, o bom senso, é Sancho Panza.  É ele quem salva a vida do aristocrata decadente e senil, apesar de maravilhosamente sonhador e bem intencionado.

O que uns chamam de governar “sem rabo preso”, eu chamaria de governar sem rabo; um ser inofensivo, um protoditadorzinho “esclarecido” isolado num palácio, com uma gestão altamente instável, o que traria danos políticos sérios à esquerda, enquanto ideologia, e à economia carioca.

Esse delírio isolacionista levou à queda de Fernando Lugo, no Paraguai e de Manuel Zelaya, em Honduras. É abrir a guarda para o golpe, para as oligarquias. A maior salvaguarda da justiça social é a politização do povo e a eleição de seus representantes. Assim fizeram Lula, Chávez, Morales, Cristina e Rafael Correa. Nesses países, não há possibilidade de golpe porque se construiu uma base partidária sólida. Não é invencível, claro. A luta é diária, mas sem força no Congresso, jamais Lula ou Chávez conseguiriam aprovar as reformas que mudaram seus respectivos países. Dilma mandou os bancos reduzirem spread e juros, vai anunciar semana que vem uma queda acentuada na conta de luz. Não tivesse base política para isso, seria derrubada no dia seguinte.

A questão não é ser contra os interesses privados de maneira geral, o que hoje em dia nem a China comunista faz, e sim ter a inteligência política de jogar com as contradições dentro do próprio capitalismo, em prol do bem comum.

Sem contar que, ao ficar na mão da “sociedade civil”, entregamo-nos ainda mais alegremente aos desmandos da mídia, que detêm controle sobre boa parte dessa “sociedade civil”.

Quanto ao lacerdismo, esse é um mal especialmente nocivo no Rio de Janeiro. Não boto a mão no fogo por nenhum político, quanto mais por Eduardo Paes, mas quem condena é a Justiça, o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas. Eu defendo o voto politizado, que pensa na cidade, mas também no país. É o voto Carlos Prestes, que apoiou Getúlio Vargas, mesmo com o histórico de Vargas na perseguição aos comunistas, e na deportação de sua própria esposa. Naquele momento histórico, Vargas encabeçava um movimento político que mais convinha ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Principalmente, não acho prudente se deixar levar por denúncias bem no meio de uma campanha eleitoral, como uma amiga, ao me mandar uma contra Paes e Cabral assinada por ninguém menos que Anthony Garotinho!

Não sou filiado a partido nenhum, mas em 2014 já sei em quem vou votar: de novo na Dilma ou Lula, e portanto não vou ajudar a eleger alguém que irá fazer da prefeitura do Rio uma plataforma de oposição.

Especulação imobiliária? Não foi Paes que a inventou, nem será Freixo que terminará com ela.

Ademais, estou ficando meio puto com a falta de respeito no debate. Os militantes do Freixo xingam quem não vota com eles. Petista que não vota em Freixo? Vendido. Povão que não vota em Freixo? Ignorante. Lula, Dilma, Oscar Niemeyer e Martinho da Vila são vendidos?

Ninguém é melhor que ninguém porque vota em Freixo ou Paes. Tem gente boa em todo lado. Cada um tem suas ideias, suas razões, seus argumentos. O mundo não acaba nem será salvo no dia 7 de outubro.

Abaixo, o texto do Bosco que serviu de mote à análise de hoje. Intercalo alguns comentários, entre colchetes e em itálico, em meio ao texto.

Freixo – Francisco Bosco
No Globo

O acontecimento político mais importante para a história recente do Brasil foi a eleição de Lula para presidente, em 2002. Não preciso lembrar aqui as consequências sociais positivas desse fato; elas foram sólidas o suficiente para garantir a continuação do projeto até hoje. Mas é preciso lembrar o que custou de resignação ao país esse projeto. Sob alguns aspectos, o lulo-petismo tem sido a continuação da modernização conservadora do Brasil. Já sabemos as virtudes e os limites desse projeto.

Marcelo Freixo, candidato a prefeito do Rio, representa a possibilidade de avançar lá onde o projeto lulo-petista, por suas características estruturais, não pôde e não poderá fazê-lo. O preço que a profunda reforma do governo PT cobrou à sociedade brasileira é alto: nada menos que a resignação à política como atividade em larga medida suja, feita de alianças oportunistas, em nome de interesses de grupos particulares, feita também de práticas ilícitas, tudo em nome da famigerada governabilidade, que é apenas um eufemismo para chantagem.

[Concordo que temos um problema de “sujeira” na política, mas ele tem 20 mil anos, acontece até na Suíça. São problemas inerentes ao poder e à democracia, não à política brasileira. Não se pode culpar sequer a política representativa. Em Atenas antiga, no tempo da democracia direta, havia um mercado, ao lado da ágora, onde cidadãos vendiam seu voto a quem pagava mais.]

Eu votei nesse projeto; pareceu-me, e continuo pensando assim, que era o melhor que se poderia realizar nas condições históricas daquele momento. E muito se fez. Mas é hora de dar um passo à frente.

Freixo representa a chance de uma transformação radical da mentalidade política não apenas do Rio, como do país. Sua proposta, no fundo, é bem simples: fazer política de verdade, isto é, orientada por interesses republicanos, e não pela manutenção dos privilégios dos eternos donos do poder. Isso significa refundar a política em todos os seus níveis, da campanha à prestação de contas. Para Freixo, o financiamento de campanhas deve ser público e transparente (pois, como lembra o deputado federal Chico Alencar, “não é da natureza das empresas fazer doações, e sim investimentos”); as alianças partidárias, orientadas por princípios ideológicos (ele já recusou de antemão o eventual apoio dos patéticos Garotinhos); e, principalmente, as decisões de sua gestão deverão ser orientadas no sentido da justiça social e da garantia de cidadania aos desprotegidos.

[Freixo não muda a questão das alianças. Ele simplesmente não faz aliança com ninguém. Assim é fácil. Quanto às doações, se o PSOL realmente é contra, se o colunista é contra, então deveriam ser consequentes e defender o financiamento público de campanha, conforme defendem PT e PCdoB e maioria das legendas de esquerda e centro-esquerda. Do resto, é hipocrisia.]

Uma candidatura assim, se vence uma eleição, tem um efeito análogo ao da lei da ficha limpa, só que em sentido positivo. Enquanto a lei da ficha limpa impede os políticos infratores da lei de se candidatar, colocando um freio na política tradicional à brasileira, uma eventual vitória de Freixo provaria que é possível fazer política verdadeira no país. Se isso acontecer, o argumento resignado que sustenta as alianças espúrias sofrerá um forte abalo. Muitos cidadãos de espírito republicano, hoje desencorajados pela sujeira da política nacional, poderiam se engajar na política institucional. E o que hoje parece utópico — que a política no Brasil não seja um negócio de canalhas — provaria ser realizável.

[Nenhuma vitória à prefeitura muda nada. Já tivemos vários prefeitos muito bons de esquerda e as coisas não mudaram. Erundina em São Paulo, Saturnino Braga, no Rio. Sem força nas câmaras de vereadores, sem uma base partidária sólida, não se  consegue fazer nada. E isso não é conceitualmente ruim, isso é democracia. Para isso existem legislativos e partidos, para evitar concentrar poder na mão de algum louco, seja de esquerda, seja de direita.]

Alguém a essa altura dos meus argumentos poderia evocar a repetida objeção: “Mas você está falando de ideias e princípios; política é feita de ações concretas. Que experiência administrativa tem o Freixo?” Essa objeção tornou-se inaceitável depois de Lula, sobre quem ela incidia com força. Mas a melhor resposta a ela tem sido dada pelo próprio Freixo: é preciso sempre desmascarar esse discurso do gerente, pois ele pressupõe uma oposição entre política e administração, ideologia e práxis, enquanto na verdade toda e qualquer ação administrativa é politicamente orientada. Não existe essa figura do gerente não ideológico. Concretamente falando, essa figura apenas perpetua a situação presente. Qualquer pessoa inteligente tem capacidade administrativa (basta delegar as funções para as pessoas tecnicamente competentes para desempenhá-las) — o que distingue os políticos é a política, ou seja, de que valores suas ações estarão a serviço.

[A comparação com Lula é descabida. Decida-se, Bosco! Ou Lula é um pragmático cuja época já passou, ou ele é um modelo a ser seguido? Lula não tinha experiência administrativa, mas o PT tinha, os partidos aliados tinham. Repito: comparação bisonha e contraditória.]

Vim falando em termos nacionais porque penso ser essa eleição do Rio a mais importante do país, aquela que apresenta uma alternativa real num momento decisivo. No contexto da política carioca, a dobradinha Paes-Cabral também já mostrou seus limites; é hora de trocar o modelo de cidadebutique, de megaeventos, que pode se tornar megaexcludente, por um projeto que não faça da população de baixa renda moeda de troca barata, a ser “realocada”, “desapropriada” ou convidada a se retirar pela gentrificação.

[A eleição mais importante do país, de longe, é a de São Paulo, onde há possibilidade de uma derrota do mais importante bastião do conservadorismo nacional. Francamente, duvido que um colunista do Globo tenha liberdade política para dizer isso. Freixo se tornou o orifício pelo qual o Globo permite que a esquerda carioca respire um pouco. Mas é como brincar de bola de gude no carpete da sala. Por isso a candidatura Freixo não passa da zona sul. O povo não quer aventureiros solitários. O povo quer exatamente aquilo que Bosco diz abominar: pragmatismo, alianças, enfim, mudanças concretas em sua vida. ]

Se um homem como Freixo vence as eleições, fica provado que não somos obrigados a andar um passo para trás a fim de dar outro à frente; não somos obrigados a engolir os velhos crápulas da velha política em nome da governabilidade. Seria uma mudança, sem precedentes, da mentalidade política. O Rio tem a chance de iluminar o país. Não a desperdicemos.

[É realmente tocante uma declaração de voto assim tão livre no Globo. O voto em Freixo se tornou uma espécie de pedigree platinado. Sou do Globo e voto em Freixo. Pois é, Bosco, mas se você fosse tão interessado assim em mudanças nos hábitos políticos, podia começar fazer alguns textos sobre a manipulação política pesadíssima que vemos diariamente em seu próprio jornal. Freixo vai mudar isso? Não vai, então não venha com demagogia. O Rio tem a chance de iluminar o país? Delírio! Mais humildade, por favor. Política é conjuntura! Na verdade, Freixo representa a mais absoluta antipolítica, ou seja, é o candidato “técnico” por excelência, pois se não tem aliados em lugar algum, nem no governo do Estado, nem no governo federal, nem na própria câmara dos vereadores terá de conduzir uma administração puramente técnica.  Ademais, vemos aí uma dose de ingenuidade para matar elefantes. Ela pressupõe que a corrupção no poder acontece porque os políticos são maus, então a gente tem que eleger um político bom. Não é tão simples. O problema da corrupção não está nas pessoas, mas no poder, que corrompe. A partir do momento que o PSOL assumisse o poder, estaria exposto à corrupção, aos dilemas ideológicos, etc. Quer um exemplo? Freixo é a favor da remoção das famílias que moram há mais de 50 anos no Jardim Botânico. Temos aí um dilema ideológico. Haverão outros, sempre. Política é a arte de contornar esses dilemas, buscando a solução mais justa, dentro das circunstâncias. É preciso ter uma visão mais humilde, menos messiânica, e mais nobre da política. Nenhum messias vai nos redimir, não agora em 2012, e sobretudo não na qualidade de prefeito do Rio de Janeiro. Um governo sem alianças é um governo fraco, instável, e a instabilidade se reverte, necessariamente, em prejuízo para os segmentos mais vulneráveis. Os ricos que podem pagar R$ 360 para assistir ao show do Caetano podem enfrentar essa instabilidade, podem brincar de fazer política, e usarem o Rio como cobaia de suas utopias burguesas. O povo, não. O povo não pode e não quer enfrentar esse risco. Até poderia fazê-lo, mas se o candidato tivesse apoio de forças importantes do conjunto nacional. Não tendo apoio nenhum, o candidato apenas conduz sua multidão de seguidores à beira de um precipício, como o mágico da flauta. Vamos ver como se comportam quando perderem a eleição. Vamos ver se vão respeitar a democracia, educadamente, ou sairão xingando todos de ignorantes, vendidos, para baixo, como aliás já fazem agora tantos dos seus, negando totalmente qualquer pretensão de fazer uma campanha diferenciada.]

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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