As batalhas judiciárias de Montesquieu

(William Turner)

Na sexta parte do Espírito das Leis, Montesquieu fala nos combates judiciários que se davam na França, nos gloriosos tempos da cavalaria. Quando alguém apresentava uma testemunha de acusação, e o réu trazia uma outra para sua defesa, as duas tinham de combater – fisicamente – em prol da verdade. Costume bárbaro, evidentemente, mas que o sábio francês descreve carinhosamente, por se tratar de um esforço – ingênuo e brutal – para se obter uma decisão justa. Mais tarde, depois que foram descobertos os textos de Justiniano, o judiciário francês foi reformado e:

“Por fim, fizeram a famosa ordenação que proibiu que se admitisse a prova por testemunhas (…)”

No julgamento de José Dirceu, os ministros embasaram sua condenação num testemunho sem credibilidade, porque inimigo político do réu. E mascararam a enorme ficção que montaram com uma discursos políticos raivosos. Na falta de provas, Ayres Britto citou Kandinsky! Celso de Mello, ao invés de julgar Dirceu, combateu Caio Verros, um cidadão romano que viveu há mais de dois mil anos! Nunca o termo “pernóstico” me pareceu tão apropriado.

Reitero o que já disse em outros posts. Acho que o Supremo Tribunal Federal, assim como todas as outras instituições, deve combater duramente a corrupção. Uma coisa, porém, é fazer isso, outra é montar teorias escalafobéticas sobre “compra de votos”. Esse é o problema que algumas pessoas não estão entendendo. Não há provas de compra de votos, porque os votos dos parlamentares pertencem à sua esfera íntima. A comparação com a compra de uma sentença judicial é equivocada, porque são realidades diferentes. Os parlamentares vivem a realidade dura das campanhas eleitorais, que os obrigam a caçar recursos de dois em dois anos, para si mesmos, para seus correligionários e para seu partido. Se um juiz recebe recursos ilicitamente de alguém ligado ao réu, configura-se obviamente corrupção passiva. Como se pode comparar esta situação com a de um deputado que recebe recursos da própria tesouraria de seu partido?

Os combates judiciários podem ter sido extintos na idade média, mas o espírito da lei permanece. Essa é a razão pela qual Montesquieu narra a evolução do judiciário na Antiguidade e na Idade Média, para mostrar que a justiça humana está sempre associada aos embates políticos de sua época. Jamais é perfeita. O julgamento do mensalão, mais uma vez, serviu para nos mostrar que a história está viva, ou seja, sujeita aos altos e baixos da subjetividade humana, com seus preconceitos, interesses e jogos secretos.

Um fato, por exemplo, ficou evidente para todos: a mídia influenciou o julgamento. Agendou-o, apressou-o, não só ameaçou os juízes como atacou-os violentamente. Ainda não temos estudos suficientes para avaliar o poder da violência midiática sobre os indíviduos que detêm cargos públicos, mas o simples bom senso nos basta. A mídia joga pesado com as vaidades, usa seus artistas de aluguel para brutalizar seus adversários. As charges de Chico no Globo, desde o início do processo, foram violentíssimas. Mostrou os réus pelados. Jamais o Globo faria algo assim com partidos aliados. Com petista ou juízes insurrectos, vale tudo.

Entretanto, ao abusar de seu poder, a mídia comete um erro. Ela se expõe. Expondo-se, torna-se um alvo, não apenas dos cidadãos atingidos direta ou indiretamente por suas violências simbólicas, como para toda a classe política. É claro que precisamos de uma imprensa independente, forte, viva. Assim como precisamos de um judiciário, de um legislativo, de um executivo, vivos, fortes e independentes. Mas assim como essas instituições, a imprensa precisa ser estritamente regulada, para que a sua liberdade não se converta em arbítrio, e sobretudo, para garantir a liberdade das instituições e cidadãos que ficam à mercê de suas violências.

É complicado tudo isso. Mas tudo é que bom, livre e democrático é mesmo complicado. Precisamos, sobretudo, de mais pluralidade na mídia, para que o país não fique à mercê da força de uns poucos. Todavia, essa pluralidade não nascerá espontaneamente. Se esperássemos apenas pelo que brota espontaneamente da terra, morreríamos de fome milênios atrás.

Deixemos a mídia velha se afogar em seu próprio arbítrio. Mas criemos outras, através de leis que obriguem o Estado a investir em veículos alternativos. Os governos precisam ter coragem, porque é evidente que a mídia não irá querer mudanças. Falo por interesse próprio. O Cafezinho morre de fome, à míngua, enquanto os tubarões corporativos engolem 80% ou 90% dos recursos públicos. Isso é injusto, e gera malefícios culturais. A blogosfera, que poderia abrigar uma nova geração de escritores, perdeu terreno, e eles foram todos cooptados pela grande mídia, que lhes joga migalhas. Resultado: o país se empobrece culturalmente, cada vez mais, enquanto os artistas esperam, ansiosos, aquela prometida resenha na Ilustrada…

Os governos petistas fizeram muita coisa pela democracia brasileira, mas se quiserem estabelecer, realmente, paradigmas duradouros, e inscrever alguns valores políticos realmente progressistas no mármore eterno da nossa história, terão que encarar com mais inteligência (e mais modéstia) a luta ideológica que ora se trava nessa gigantesca e caótica ágora da internet. Como blogueiro, não quero esmolas, nem dinheiro público, nem publicidade institucional, e sim leis que me proporcionem dignidade e independência profissional. O problema hoje na mídia brasileira não é o conservadorismo político. Em vários sentidos, a nossa mídia até que é liberal. O problema é o arbítrio, que torna nossa mídia mau-caráter e violenta, sobretudo em período eleitoral. Ela usa seu poder descaradamente para influenciar as eleições, e com isso, o nosso destino, e isso não podemos permitir. O povo brasileiro não merece correr o risco de ser governado por marionetes da Globo.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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