Sobre guerras civis e democracia

Ontem assisti, quiçá pela quinta ou sexta vez, ao filme Gangues de Nova York, de Martin Scorcese. Vendo os choques sangrentos entre imigrantes irlandeses e nativistas americanos, lembrei-me, por uma associação automática, do livro Retrato de um Artista Quando Jovem, do irlandês James Joyce.

No romance, que é assumidamente autobiográfico, há uma cena que me marcou. Alguns tios do protagonista, o jovem Stephen Dedalus, reuniam-se a uma mesa, e rolava, como sempre, uma forte tensão política no ar. Em certo momento, alguém comenta que a Igreja Católica não estaria a favor da independência da Irlanda, ao que, um dos homens bate o punho na mesa e afirma algo como: então que se dane a Igreja! É uma cena bonita, descrita com muito zelo por Joyce, e se nota que sua simpatia vai mais para a corajosa assertividade do personagem, que nega a religião para defender a Irlanda, do que para o patriotismo em si, que tanto autor como personagem desprezavam.

O filme de Scorcese se passa numa Nova York convulsionada por conflitos sociais, raciais, e acossada pela guerra civil americana, que lhe consumia milhares de vidas por semana. Diariamente, eram despejados no porto de NY centenas de caixões das vítimas da guerra. A população se rebelava contra aquela carnificina decidida, como todas as guerras, por almofadinhas endinheirados.

Pensei em como as guerras intestinas costumam ser ainda mais brutais, sangrentas, e custar mais vidas, do que guerras externas. Quando estudamos a história das grandes civilizações antigas, como o império grego e romano, vemos que o primeiro perdeu mais vidas com a guerra entre Atenas e Esparta, ambos gregos, do que se defendendo dos persas; e Roma por muitas vezes quase foi destruída de dentro, em função das convulsões sociais terríveis que sacudiam regularmente o império: plebeus, escravos, imigrantes, contra aristocratas e seus aliados.

Quando alguém reclamar da violência na política brasileira, do fla-flu brutal entre petistas e tucanos, lembre-o que podia ser muito pior. Ambos os times poderiam estar brigando com facões e machados no parque do Ibirapuera.

Onde há homens (e, sobretudo, mulheres), haverá conflito, porque a própria razão humana é palco de guerra. Em Paraíso Perdido, de Milton, a história começa a partir do fim de uma sangrenta batalha entre os exércitos de Deus, chefiados por Jesus, e os de Lúcifer. E quem é Lúcifer, senão o princípio da subversão, da desobediência, do orgulho, da vaidade, que nos faz cometer todos os pecados, mas que também nos faz independentes, altivos, valentes – que enfim nos torna homens?

A democracia não extingue o conflito, mas ela o institucionaliza. É besteira, e absurdo, pretender, no entanto, que haverá algum dia em que não haverá mais cisão política na sociedade, ou seja, que petistas e tucanos irão concordar, ou que não haverá mais oposição. Nem poderia, nem deveria, nem jamais acabará. O que não significa que esses conflitos não possam amadurecer institucionalmente.

Não conseguindo ganhar pelas urnas, a oposição continua apostando onde transita com mais desenvoltura: nas grandes empresas de mídia, todas elas consolidadas durante a ditadura. Em toda a América Latina, há movimentos mais ou menos similares. A pressão sobre o judiciário também é muito parecida, e não é por outra razão que setores da mídia acusam Venezuela e Equador de terem “aparelhado” e “controlado” o Judiciário de seus países. É que, após crises profundas, houve algum tipo de oxigenação política no judiciário desses países, e foram substituídas lideranças golpistas, comprometidas com a oposição, por outras, mais ligadas à estabilidade democrática no continente.

No Brasil, temos um Ministério Público e um Judiciário conservador e flexível às pressões da mídia. O procurador geral da República, Roberto Gurgel, que mandou arquivar a operação Monte Carlo, que trazia centenas de provas concretas contra Demóstenes Torres, Cachoeira, Marconi Perillo e outros graúdos, transformou o mensalão, que se caracterizou pela ausência de documentos, na grande arma da oposição.

E agora, a mídia volta a dar poder de chantagem a Gurgel. Ele já deu mostras do prejuízo político que pode causar ao governo, pois tem apoio da mídia e a simpatia acovardada do STF. Se o governo insistir, por exemplo, em aprofundar investigações que liguem o esquema Cachoeira a Gurgel, o mesmo pode dar o troco perseguindo Lula, por exemplo. Provas não são mais um problema. Basta uma testemunha e uma garrafa de ilações.

Estudar a história, de fato, é ler a versão dos vencedores. Mas nem sempre isso é mau. Quando se pesquisa a queda da Bastilha, evento que marcou o início da revolução francesa, veremos que, por trás daquele feito que mudaria a história do mundo, havia uma mulher simples, que achara uma carta de um preso, clamando por justiça. A senhora, embora não conhecesse o sujeito, comoveu a nação ao abordar os mais poderosos notáveis da França com pedidos de clemência e liberdade. E mais tarde, quando o povo se rebelou e tomou a mais famosa prisão política do Medievo, novamente veríamos mulheres simples do povo à frente das linhas de batalha. Furiosas, guerreiras, implacáveis. Elas venceram a revolução francesa.

As rebeliões populares, em verdade, constituíam uma espécie de manifestação democrática. Sangrentas, brutais, terríveis, mas nascendo no seio do povo, e tendo como objetivo ampliar o poder do povo. Se buscássemos as raízes mais profundas do anseio democrático do homem, talvez tivéssemos que sondar inclusive nossos ancestrais genéticos, porque não é implausível que tenhamos impressas na mente, assim como as formigas, formas rudimentares de organização nas quais se vislumbre as origens da doutrina democrática.

Quem sabe, então, se os valores democráticos não são o nosso natural, e a tendência autoritária não é uma forma de corrupção, acentuada na modernidade, que dá ao indivíduo, quando dono de capital e conhecimento, poderes quase sobrenaturais?

O sistema de informações do qual depende a nossa democracia assenta-se sobre um monopólio privado, controlado a mão de ferro por meia dúzia de famílias, as quais são extremamente unidas politicamente, conformando uma espécie de cartel corporativo e político. É o famigerado PIG, e esta situação não me parece muito democrática. Não quer dizer que o PIG seja incompetente, ou que seus jornais sejam mal diagramados, mal escritos, que seus cadernos culturais não tragam colaborações inteligentes. Há dois ou três grandes jornais brasileiros que, não fossem tão ideologicamente comprometidos com o atraso, poderiam ser excelentes publicações. Mas a ideologia dos jornais não é o problema. Eles são livres, e às vezes é até prazeiroso ler uma publicação com linha diferente da sua. O problema é quando há falta de pluralismo, sobretudo para setores estratégicos, como juízes. O Judiciário deveria refletir sobre a influência dos meios de comunicação sobre a sua maneira de pensar, agir e reagir. Nos romances do John Grisham sobre julgamentos, o júri não pode sequer ler jornais, para não ser influenciado pela publicidade opressiva. Aqui é o contrário. Os juízes não conseguem nem dar uma caminhada do lado de fora do STF sem serem importunados por hordas de jornalistas enfurecidos.

O quarto poder, a mídia, deve ser incorporado às regras democráticas. Certamente haverá soluções criativas para que tenhamos um jornalismo independente, ético, sólido financeiramente, porém regulado por leis que garantam o amplo direito à defesa da honra para todos os cidadãos, homens públicos ou não, que não podem ficar mais à mercê das diatribes alucinadas, totalitárias e paranóicas dos barões da mídia.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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