Dirceu e o touro de Wall Street

Sobre a minha mesa, alguns objetos queridos: uma pequena torre eiffel, um boizinho colorido do Maranhão, um trabalho conceitual de Nilton Pinho, um desenho de Juliano Guilherme. Há também um “Charging Bull”, lembrança da viagem que fiz à Nova York ao final do ano passado. Figura curiosa, esse touro, miniatura de uma estátua famosa de bronze exposta nas imediações de Wall Street, centro financeiro de Manhattan. Com músculos retesados, ele recua entre o medo e a fúria, como se houvesse um leão diante de si. Ou como se resistisse à tentativa de levá-lo a um matadouro.

Assistindo à entrevista de Dirceu a jornalistas da Folha, não pensei imediatamente no touro de Wall Street. O ministro fala com muita calma, e seus comentários transmitem antes um controle firme da razão do que a ferocidade apavorada de um animal…

Mas se observarmos bem, notaremos que a sua calma talvez seja o correlato do retesar de músculos de um bicho acuado. Fernando Rodrigues e Monica Bergamo são jornalistas razoáveis, mas Dirceu não está apenas diante deles, ele está diante de todos os seus adversários, que se esforçam diuturnamente para conduzi-lo ao matadouro.

A situação, todavia, produz resultados curiosos. Em primeiro lugar, vemos a emergência, cada vez maior, de um sentimento de injustiça. Que não deve se confundir com a indignação vazia do udenista. Não é uma indignação de botequim contra “a safadeza” dos políticos. Quando vemos as tertúlias entre Merval Pereira, Ayres Britto e João Roberto Marinho, posando de vencedores. Quando vemos Joaquim Barbosa incensado pela mídia até o ponto de tê-lo quase enlouquecido. Quando vemos a sucessão de mentiras sendo repetidas ad infinitum em grandes meios de comunicação, os mesmos meios que drenam para si a maior parte dos recursos públicos em publicidade. Quando vemos tudo isso, e assistimos José Dirceu se defendendo com tranquilidade, objetivamente, tendo como única arma a sua razão e a lógica dos fatos, a nossa indignação está muito longe daquele sentimento depressivo, negativo e apoplético de um udenista de botequim.

É uma indignação viril, que nos faz sentir homens, ou mulheres. Em algum momento dos últimos meses, entre o resultado do julgamento do mensalão e os debates duros, tristes, mas corajosos, que levamos adiante neste palco anarquicamente livre que é a blogosfera política brasileira, houve uma mudança de ânimos. A mídia e seus tentáculos no STF podem ter sido vitoriosos em seu golpezinho judiciário contra os “mensaleiros”. Mas a sensação de vitória moral está começando a virar para o outro lado. Até mesmo em relação às figuras que não conhecíamos tanto, como Pizzolatto, e os executivos arrolados no mensalão, hoje vemos que, mesmo que não sejam inocentes de todo, certamente não tem culpa num esquema totalmente fictício inventado pela Procuradoria, por Barbosa, por Ayres Britto, e por toda a espiral de loucura acusatória que envolveu o julgamento.

Possivelmente este seja o significado daquele misterioso touro de Wall Street. Ele sempre estará lá, com sua fúria e seu medo. Ele jamais será levado ao matadouro, porque não é um touro comum, ele é um símbolo. Na entrevista, José Dirceu confessou, em dado momento, que não é de ferro, e chegou a pensar que seria melhor ter morrido a passar pelo que está passando. No entanto, ele está aí. Não é um santo, não é um demônio. É um homem lutando por justiça. Não tem a presunção de possuir a inocência de um anjinho pelado de Aleijadinho. Sua convicção é a inocência em relação à inverossímil e ridícula farsa criada por Joaquim Barbosa!

Todas as arbitrariedades cometidas hoje voltar-se-ão, mais dia menos dia, contra seus autores. Assim como o sensacionalismo provocado pelo escândalo do mensalão forçou Lula a se aproximar dos movimentos sociais e fazer um governo melhor, o escandaloso julgamento político e de exceção feito pelo STF pode ser um tiro pela culatra. Aqueles que colaboraram, mesmo que indiretamente, nesta vergonhosa página da nossa história, que tentaram manchar a nossa democracia e nossa corte suprema com um julgamento farsesco, midiático e de exceção, pagarão por muitas décadas com o ostracismo político – que talvez não sofressem caso não apelassem para este tipo de tapetão.

Talvez não haja nenhum medo no touro de Manhattan. O seu nervosismo refletiria apenas tensão diante do perigo. Quando chegar a hora do ataque, ele terá a força acumulada em todos os anos em que retesou os músculos. O contra-ataque virá pela voz soberana das urnas. Se numa democracia, os assassinos são julgados por um júri popular, a desonestidade política, por sua vez, é julgada pelo sufrágio universal. Serra tentou usar Dirceu para ganhar a eleição contra Haddad. Perdeu. Será a maior ironia de todos os tempos: o mensalão, inventado para destruir o PT, poderá se tornar um símbolo do mau caratismo de seus adversários.

Assista à entrevista de José Dirceu:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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