Impressões da sabatina

Minha principal impressão da sabatina promovida pelos jornalistas de Folha & UOL & Jovem Pan é que Dilma está enferrujada para entrevistas. Ela se engasga com frequência, enrola a língua, comete pequenas, mas feias, confusões sintáticas.

O que é uma pena, porque o desempenho da presidenta não me pareceu de todo mal.

Ela tem mais carisma do que eu pensava.

É uma pessoa original, com olhar expressando, alternadamente, ironia, ternura, indignação.

Seu pior momento na entrevista foi quando se falou de Pasadena. Os repórteres a pouparam de constrangimento maior, porque ela estava se enrolando toda.

Naquele momento, eu entendi uma coisa sobre a presidenta. Ela tem medo. Não se julgue açodadamente, contudo, as pessoas com medo: são elas que se revelam, com frequências, as mais destemidas, justamente porque aprenderam a conviver, por muito tempo, com suas próprias fobias.

Ela mesmo confessou terrores herdados do tempo da ditadura: dormir de sapato, guardar dinheiro em cash, estar sempre preparada para uma fuga alucinada.

A essas manias, eu acrescentaria o terror de se envolver num escândalo público.

É um medo que deve apavorar todos os servidores que trabalham com grandes responsabilidades (construção civil, obras, financiamentos, etc). O cidadão comum não pára para pensar sobre isso, e a mídia se encarrega de desinformá-lo o tempo inteiro, mas existe um fator risco no serviço público. Mesmo sem cometer nenhum deslize ético, sempre pode ocorrer uma falha administrativa, ou alguém abaixo ou acima de você pode lhe passar a perna.

E quando vierem com a cruz para você carregar, seus amigos todos vão desaparecer imediatamente, inclusive – ou principalmente – os de seu próprio partido.

Quanto mais alta a função, maior a quantidade de documentos que você tem de assinar, e maiores os riscos de assinar uma bomba que irá estourar em seu colo, meses ou anos depois.

Imagino que um diretor de estatal deve sentir calafrios ao lembrar da quantidade de documentos que assinou durante o dia.

Honesto ou ladrão, sentirá calafrios.

Por isso as campanhas de terrorismo midiático podem até ajudar a reduzir a corrupção na máquina estatal, mas igualmente costumam promover momentos de verdadeira paralisação. A burocracia, apavorada, faz uma greve branca. Não assina nada.

Vendo o papelão ridículo, surreal, que o TCU fez no relatório sobre Pasadena, sugerindo que ex-diretores arcassem, de seus próprios bolsos, com um prejuízo de 2 bilhões de reais, entende-se o pavor que assola os servidores de áreas politicamente vulneráveis, Dilma entre eles.

Ora, Pasadena está aí, dando lucro, oferecendo experiência e tecnologia à Petrobrás. Quem deveria ser condenado é o próprio ministro do TCU, José Jorge, responsável, enquanto ministro de Minas e Energia do governo FHC, pelo afundamento da plataforma P-36, a maior do mundo.

Agora se entende a reação meio intempestiva de Dilma. Ela intuiu que o TCU, apoiado por mídia e oposição, tentaria um golpe, como efetivamente aconteceu. Criaram-se duas CPIs e o TCU de José Jorge e da mãe de Eduardo Campos, sem condições de atingir Dilma, dispararam contra cabeças importantes de um PT que já enfrenta escassez de cérebros.

A mídia não consegue decepar a cabeça do rei  ou da rainha do tabuleiro, mas vai derrubando peça por peça, com foco nos melhores quadros. Se Dilma não reagir a isso, vai terminar um eventual segundo mandato com um governo e um partido totalmente devastados pela mídia de oposição.

Dilma enfrenta o tema Pasadena com medo, mas não deveria, porque não falamos de um aeroporto feito para promoção pessoal. Estamos falando da decisão estratégica de uma petroleira nacional de adquirir uma refinaria nos Estados Unidos!

Uma refinaria que hoje dá lucro e está situada no corredor petrolífero do principal consumidor de petróleo do mundo. Do país que possui as tecnologias mais avançadas, a infra-estrutura mais desenvolvida, a civilização do petróleo!

Se Pasadena pertencesse à China, o presidente chinês responderia às perguntas sobre o preço da refinaria com uma resposta cortante: é um ativo estratégico, vale mais que dinheiro. Ponto final.

Mas não estamos na China, graças a Deus. Temos democracia, liberdade de imprensa e tribunais de conta.

Refinarias, porém, permanecem estratégicas para qualquer país, com ou sem democracia.

No futuro, quando analisarem nosso crescimento baixo, moderado, embora constante e firme, deverão levar em conta que estamos avançando, à diferença de tantos outros países emergentes, com um sistema democrático completo: TCUs, Ministério Público, legislação ambiental rígida, imprensa hiper-livre.

A liberdade tem um preço alto, que devemos pagar, porém, com orgulho.

Acho incrível que depois de tanto falarem que o Brasil deveria aprofundar suas relações comerciais com os Estados Unidos, que não deveríamos ser “ideológicos”, nem ficar apenas estabelecendo acordos com países de terceiro mundo, depois de tudo isso, quando surge a oportunidade de ingressar com pé direito no mercado americano, através de uma refinaria de petróleo, a imprensa finge que não vale nada?

Que é só prejuízo?

Que tipo de acordos comerciais eles querem que façamos com os EUA? Aumentar a quantidade de café verde exportado?

Ora, se o Brasil quer aumentar sua presença nos EUA, porque Pasadena não pode ajudar?

A nossa imprensa não informa, por exemplo, que petroleiras do mundo inteiro, públicas e privadas, já investiram em refinarias nos Estados Unidos, porque é um mercado grande e aberto, que oferece imensas oportunidades de lucro e aquisição de tecnologia.

Só recentemente descobri, através de um site norte-americano, que a PDVSA, a estatal venezuelana de petróleo, está sendo pressionada pelos chineses a vender menos petróleo para os EUA e mais para a China. Os EUA vivem um momento de abundância de petróleo, porque descobriram reservas de xisto recentemente, no Texas.

Em função disso, a PDVSA tem interesse em vender suas refinarias nos EUA, reunidas na Citigo, refinarias que, durante anos, ela usou para vender seu próprio petroleo, já refinado, no mercado americano.

Pensa que o mercado esnobou? Nada disso. Há empresas do mundo inteiro interessadas, com ofertas de até US$ 15 bilhões.

US$ 15 bilhões, por três refinarias!

E a nossa mídia ainda tenta nos vender a história de que a Astra comprou Pasadena por 42 milhões de dólares… Depois da Petrobrás mostrar que a belga pagou quase meio bilhão de dólares por Pasadena, a mídia mantém os 42 milhões e sequer menciona que, segundo a Petrobrás, o valor foi outro.

Entretanto, se não queria falar de Pasadena, Dilma teve a oportunidade de falar sobre as conquistas da Petrobrás. Seria a coisa mais fácil do mundo, pular dos supostos problemas de Pasadena para os novos recordes da estatal: de produção, de refino, de lucro, de investimento.

Dilma não falou nada!

Há algumas semanas, a presidenta esteve no Rio, fazendo as honras numa cerimônia para festejar a superação da marca de 500 mil barris diários de petróleo produzidos nos campos do pré-sal.

A presidenta fez um discurso protocolar, em tom melancólico. Parecia o texto escrito por estagiário de uma empresa de cerimonial.

O mais irônico é que ela estava ali apresentando a maior vitória do povo brasileiro em séculos!

Dilma anunciou que o pré-sal iria render mais de um trilhão de reais em investimentos para educação e saúde.

Era como se Julio Cesar informasse ao povo romano que havia conquistado a Gália. E o fizesse em tom triste!

Dilma, por favor, jamais esqueça de falar na Petrobrás de novo! A oposição vai falar mal. Por isso mesmo você tem a obrigação de defender as conquistas da nossa principal empresa.

O ressurgimento da indústria naval, o aumento da produção, a construção das refinarias, as perspectivas brilhantes de futuro!

Outra ironia é que Dilma, apesar de todos esses jupiterianos problemas de comunicação, que geram graves consequências políticas, é a única em quem podemos confiar.

A quem mais poderíamos entregar as chaves do pré-sal, senão a esta senhora de 66 anos, de gestos e gostos clássicos, cheia de vicios idiomáticos?

“Veja bem”.
“Vou lhe dizer uma coisa”.
“Deixa eu falar uma última coisa”.

Aliás, outra surpresa foi a idade. Dilma quase nunca dá entrevistas, ou seja, é raro a vermos sob ângulos não controlados por sua equipe de comunicação.

Ela envelheceu. Quando foi eleita em 2010, tinha 62. Agora é uma senhora de 66 anos.

Sua fala se tornou mais lenta. Mais pausada. Às vezes com pausas em tempo superior ao que o espectador nervoso está acostumado.

Mas isso não gera um problema de carisma.

Eu assisti, há alguns meses, uma palestra de Ziraldo, que tem 82, na qual ele começa a se esquecer de nomes e confundir fatos, e passar bruscamente de um assunto para outro; aí ele pára e diz ao público:

“Vocês me desculpem, eu estou velho e esclerosado, e fico mudando de assunto, e depois esqueço o que estava falando antes.

Todo mundo riu loucamente, e todo mundo percebeu que estavam diante de uma mente mais lúcida do que todas ali.

Velhice não é problema quando há sabedoria e humor.

Ao contrário, acho que a idade deu mais elegância à presidenta.

Ela tem cara, jeito, reputação de uma boa senhora de família, que sofreu muito na vida e que só quer o melhor para seus filhos e seus netos, os quais, no caso de uma presidenta da república com seu perfil maternal, incluem todo o povo brasileiro.

Até descobri, em parte, uma das causas da rejeição à Dilma. Ela tem jeito de mãe chata, daquelas que não deixam o filho brincar antes de terminar seu dever de casa.

A entrevista, volto a frisar, não foi de todo má.

O que me leva de volta a velha suspeita de que Dilma foi selvagemente sabotada internamente, por sua própria equipe de comunicação.

Além da inexplicável violência de terem abandonado suas redes sociais assim que ganhou as eleições, o entourage da presidenta a escondeu do mundo durante quase todo seu mandato. Ela é boa de entrevistas, porque não as deu em maior quantidade?

Daí que todo o tensionamento se volta para a propaganda eleitoral na TV, aceita como a última munição do governo para ganhar as eleições.

Ora, mais uma vez, arriscou-se um projeto popular por conta de uma comunicação mesquinha.

Há tanto tempo que não a via numa entrevista, que às vezes eu tinha pesadelos de que escondiam Dilma porque ela havia ficado doente.

Não. Ela está ótima, de mente e corpo. Só está enferrujada. Como se tivesse sido trancada num quarto há muito tempo, e agora estivesse desacostumada a falar com estranhos.

E tem o mistério.

O terrível mistério da sua juventude.

O mistério que ela, Dilma, cultiva da melhor maneira possível: como quem não quer, jamais, usar isso como arma política.

Mas que, provocada, se tentarem roubar a sua dignidade, por assim dizer, militar, ela a defenderá impiedosamente, como fez com Agripino Maia.

De certa maneira, ela fez um pouco isso, ao final da entrevista, quando reivindicou a liberdade de fazer o que quisesse com seu dinheiro. Era uma mania sua, derivada de uma experiência ruim, e ponto final. Seu interesse, disse ela, não é ganhar mais. Sou de outra geração, completou, onde se aspirava não o sucesso, mas transformar o Brasil.

Ela guarda dinheiro em cash, em casa, para confortar um espírito ainda atormentado por pesadelos do passado. Ou talvez, como especulou Paulo Nogueira, a presidente esteja tentando, à sua maneira, empreender uma viagem rumo aos anos dourados de sua juventude.

Deixando de lado os aspectos pessoais da presidenta, e focando apenas no conteúdo da entrevista, vale destacar o alerta de Dilma sobre as consequências do discurso pessimista da mídia: economia é diferente de Copa do Mundo. Economia vive de expectativa. Quando se produz uma atmosfera de medo, mesmo que baseado em fantasias, ninguém mais investe, e a economia desacelera e pára.

O pessimismo se torna uma profecia auto-realizável, que é exatamente o que está acontecendo. De tanto invocar uma crise, a crise acaba aparecendo. Eu guardei um box editorial do Globo do último sábado, que é um exemplo magnífico de chorume em matéria de economia. Respirem fundo antes de ler.


Quanto aos jornalistas e ao conteúdo das perguntas, creio que Fernando Brito disse o bastante sobre eles.

Mas eu seria um pouco mais generoso. Eles falaram o que estava no script. Josias de Souza e Kennedy Alencar, por exemplo, são jornalistas inteligentes e não integram a turma dos loucos furiosos de suástica tatuada no traseiro.

A pauta dos jornalões, contudo, é pobre. Miserável. Fala-se sempre dos mesmos assuntos, todos os dias. A ladainha não muda. O Brasil vai acabar no dia seguinte, inflação, corrupção, mensalão, ai que saudades de FHC.

Eles tem que seguir essas pautas.

Quem era o sujeito da Jovem Pan? Achei-o especialmente despreparado. E o digo no sentido de que poderia, se quisesse, até ser mais duro ou mais malicioso com Dilma. Ele preferiu falar em aumento do desemprego… o que é simplesmente uma dessas alucinações midiáticas. Dilma devorou o cara vivo, com facilidade. Não sobrou nem as unhas.

Concordo também com a análise do Paulo Nogueira: eles jogaram pesado e Dilma respondeu tudo.

Não foi bem sempre, mas enfrentou todas as armadilhas.

Um erro de Dilma, por exemplo, é que ela é muito orgulhosa quando fala de seu combate à corrupção. Seu orgulho se mistura ao medo de ter a reputação atacada e ela acaba se enrolando. Pior, entrando no jogo da mídia. Dilma tem que contra-atacar com um pouco de história. Basta lembrar as campanhas moralistas da imprensa contra Vargas e contra JK. A imprensa continua a mesma há quase um século. É uma coisa até meio mórbida. São os mesmos jornais, pertencentes às mesmas famílias, atacando sempre os governos mais progressistas.

Já os presidentes amigos, aí incluindo os generais, nossa imprensa sempre os deixou em paz; e eles foram, de longe, os que promoveram os maiores assaltos aos cofres públicos.

Nas entrevistas com suas figuras amadas do PSDB, o entrevistado figura como um heroi a ser protegido. Entrevista recente de Campos (que é um tucano no PSB) para a Band, por exemplo, ganhou um teaser na TV UOL, que parece propaganda eleitoral, com direito a musiquinha e tudo.

Enfim, pese estes erros, estou mais seguro de que ela enfrentará galhardamente seus adversários ao longo da campanha, sejam os adversários no pleito, sejam os da mídia.

A experiência lhe permitirá ter um melhor desempenho na próxima vez, e quanto mais os entrevistadores baterem na presidenta, mais terão que bater em Aécio também, para não se desmoralizarem.

E se Aécio já está quase chorando e pedindo para sair por causa de um aecioporto, imagine quando escândalos maiores vieram à tôna?

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Primeira parte

 

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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