As falácias do moralismo antipolítica

Rudá


 

Reproduzo abaixo post que publiquei há pouco no Tijolaço.

Eu fiz questão de responder porque achei a entrevista infeliz. Além de jogar água no moinho da criminalização da política, Ricci tratou com um moralismo tolo a dialética necessariamente dura de uma campanha eleitoral.

A campanha de Dilma venceu aquela que talvez seja a mais poderosa e mais inescrupulosa máquina midiática do mundo, e Ricci vem com críticas bobinhas sobre o fato da campanha petista ter sido “planejada, racional” e conduzida por pessoas “frias e calculistas”.

Fica parecendo que, do outro lado, tanto com Marina quanto com Aécio, havia polianas da política.

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Sociólogo respeitado, Rudá Ricci ganhou destaque na Folha de hoje com asserções bombásticas que fez numa entrevista sobre a campanha eleitoral deste ano.

Tenho respeito pelo professor, com o qual tenho muitas ideias afins, mas discordo veementemente de quase tudo que ele disse na entrevista.

Acho que ele cometeu o erro de jogar moinho na campanha midiática para criminalizar e desmoralizar a política.

Não vejo melhor maneira de polemizar com o professor senão reproduzindo a entrevista e encaixando, entre colchetes e em negrito, meus apartes. Não é 100% justo, porque sempre há o risco de descontextualização, mas é o que melhor posso fazer no momento.

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Folha – O senhor falou que a campanha da Dilma fez uma manipulação profissional da opinião. Pode elaborar?

Rudá Ricci – A campanha formou 2.000 militantes virtuais. Havia o debate na TV à noite e, no outro dia, a campanha replicava nas redes sociais, por meio desse exército, informações, interpretações que no dia seguinte eram corroboradas no programa de TV e de rádio. E criava uma rede.

[O termo “manipulação profissional” é uma criminalização ridícula. Qualquer partido no mundo forma militantes, virtuais ou não. No caso do PT, o número de 2.000 me parece até modesto. Isso é uma coisa boa e democrática. Me parece que o professor não deixou isso claro.]

Várias vezes, o PT conseguiu fazer isso. Tanto no primeiro turno, com a Marina Silva, como no segundo. O PT não foi formador direto de opinião, mas mobilizava pessoas que começavam a ter informação, falavam no dia-a-dia para outras, formando opinião.

[Asserção meio sem lógica, ao dizer que “O PT não foi formador direto de opinião, mas mobilizava pessoas”. Ora, é assim que se forma opinião: mobilizando pessoas. É a maneira mais democrática. Também faltou deixar isso claro.]

O PT tinha um comando, por meio do Franklin Martins e do João Santana, com uma fartura de dados qualitativos e quantitativos. Pela primeira vez, isso dava informações para a coordenação da campanha estabelecer um roteiro, em que pensava o eleitor como alguém a ser formado, ao invés de pensar o eleitor como alguém que define o que a campanha de fazer.

[Qualquer campanha no mundo tem comando. PSDB tinha. PT tinha. PSB tinha. Agora, não é verdade que se “pensava o eleitor como alguém a ser formado, ao invés de pensar o eleitor como algúem que define o que a campanha deve fazer”. Se a campanha de Dilma foi mais dinâmica nas redes, é justamente porque foi mais flexível à opinião das redes.]

Ou seja, a campanha inoculava na pessoa da rua que tal candidato agredia mulher. E por que fazia isso? Porque tinha um levantamento dizendo que a maioria dos indecisos era mulheres acima de 45 anos, várias com histórico familiar de agressão. Ora, a agressão que uma mulher sofre está inoculada na sua história de vida.

[O professor está certo, mas aí ele começa a enveredar pelo pantanoso terreno do moralismo, onde se afundará cada vez mais. A campanha não “inoculava” na pessoa de rua que tal candidato agredia mulher. Corria nas redes, há anos, um post do Juca Kfouri segundo o qual Aécio Neves havia batido em sua mulher, numa festa num hotel no Fasano. Não foi a campanha que disse isso, nem ela é responsável, por esse boato, verdadeiro ou não. O fato é que o nível de agressividade dos militantes tucanos ajudou a criar esse clima. Militantes petistas mulheres foram agredidas, por militantes homens tucanos, em todo o Brasil. Há uma denúncia de uma militante de Dilma que foi agredida e depois violentada, no Rio. Há muitos casos assim. Então o clima de violência contra a mulher existiu sim, foi real. ]

É um novo paradigma de campanha, que não pensa como cativar o coração do eleitor numa linguagem que ele gostaria de ouvir. A questão agora é: como criar no eleitor uma imagem sobre o outro.

[Aí o professor inverteu os valores. Em primeiro lugar, esses “paradigmas” não existem a não ser em cabeças acadêmicas. Política é algo vivo, terrivelmente vivo, e, portanto, em mutação constante. Não existe paradigma em campanha eleitoral. Nunca existiu. Em segundo lugar, “cativar o leitor numa linguagem que ele gostaria de ouvir” me parece uma maneira bonita de elogiar a mentira. Já “criar no eleitor uma imagem sobre o outro” me parece um resumo exatamente do que é honesto e desejável numa campanha. Tem alguma coisa errada nisso? O que me incomoda na entrevista do professor é que ele, todo o tempo, vê maldade onde eu apenas vejo política e democracia. Suas próximas palavras confirmarão que ele realmente teve um surto moralista.]

É um tipo de campanha melhor do que a do passado?

Não. É uma campanha empresarial, organizada, com subdivisões, extremamente cara, com muita tecnologia. São pessoas frias, calculistas, que sabem medir a situação com precisão e tomam decisões arriscadíssimas.

Não há um diálogo efetivo com o eleitor. Estamos falando de um tipo de ação planejada, racional, em que os valores não contam. Isso vem dos grandes partidos.

[Surto moralista, de uma ingenuidade que beira a má fé. “Campanha empresarial, organizada, com subdivisões”, “pessoas frias, calculistas”. Como Rudá Ricci acha que deveria ser uma campanha presidencial na sétima economia do mundo, num país com 140 milhões de eleitores. Com bicho grilos? Qual o contrário de pessoas “frias e calculistas”? Pessoas “quentes” e que “não calculam”? Em seguida, ele fala que não há diálogo efetivo com o eleitor. Certo. Pode até ser. Embora este seja um problema muito mais grave no próprio governo, e por isso fiz tantas profundas críticas ao apagão de comunicação do governo, do que numa campanha, onde o tempo é curto e a guerra, declarada. Daí ele fala em ação “planejada, racional, em que valores não contam”.

Como assim? Planejado e racional é o oposto do que é virtuoso? Acho um tanto incoerente um cientista falar tão mal de coisas como planejamento, racionalidade e cálculo.]

O sr. afirma que o Brasil está dividido entre a “ética do trabalho” e o “Estado providência”. O que isso quer dizer?

No primeiro e no segundo turno, os mapas de investimento do BNDES e do Bolsa Família foram justapostos ao voto. Foi mais de 650% de aumento de volume de desembolso no BNDES para o Nordeste no período entre 2002 e 2012.

Ali também tem um mapa que não é exatamente, portanto, um setor de baixa renda. São empresários que viram o consumidor chegar até a sua porta e tiveram capacidade pra gerar produtos. Mudou a face do Nordeste. Mudou o eleitorado cativo, não é só o Bolsa Família.

Mas temos o Centro-Sul, principalmente São Paulo, onde Aécio Neves [PSDB] atingiu mais de 60%.

[A informação fica truncada aqui. Dá a entender que Aécio teve mais de 60% no Centro-Sul. Ele teve mais de 60% em São Paulo. Só. Essa confusão facilitará a conclusão da entrevista, que é de um país dividido. Ora, Dilma ganhou em Minas Gerais e Rio de Janeiro, que ficam no Centro-Sul. Então não há essa divisão toda.]

No Nordeste, tivemos de 67% a 78% votando na Dilma, em todos os Estados. Então o país está dividido.

[No Rio, Dilma teve 54% dos votos. Em Minas, ganhou também. Não há, repito, essa divisão geográfica.]

Nestes Estados com força do agronegócio, mas principalmente do Centro-Sul para baixo, ficou muito claro, nas redes sociais, o discurso de que o Estado brasileiro nos pune com impostos para dar aos pobres.

O conceito de meritocracia aparece como elemento central da honra.

O argumento não é correto. Temos o livro “Vozes do Bolsa Família”, que deixa claro que não existe o não trabalho com o Bolsa Família.

Mas essa visão existe. E o outro lado é: o país tem uma dívida social comigo porque os meus pais e avós sempre foram pobres. E quando me deram alguns recursos, sobressaí. Então temos os dois polos em termos de visão de mundo sobre o Estado.

[Ok, concordo. Houve essa polarização meio tola. Só faltou ao professor dizer de onde parte essa campanha sistemática de desinformação: da mídia. O agronegócio, as indústrias paulistas, ganham dinheiro vendendo para os novos consumidores do Nordeste. Hoje, os pobres consomem mais que os ricos.]

Trata-se da polarização PT contra PSDB?

Essa polarização talvez tenha chegado ao fim. O senador Aécio Neves não sai como líder nacional. Pelo contrário, foi derrotado três vezes em seu Estado em menos de um mês. Perdeu o governo do Estado, perdeu o primeiro turno, perdeu o segundo turno. É acachapante.

[Como assim a polarização chegou ao fim? A eleição mostrou justamente o contrário. Aumentou a polarização. Os petistas ficaram mais petistas e os tucanos, mais tucanos. Quanto às derrotas de Aécio em Minas, concordo, mas discordo de que Aécio não tenha saído como líder nacional. Foi justamente assim que ele saiu. Deixa de ser um líder provinciano, e passa a ser um nome conhecido nacionalmente. Perder em casa faz parte do jogo. Acontece com todo líder.]

O cetro está com PSDB de São Paulo. A questão é se consegue nacionalizar o partido, porque agora tem o PMDB como partido forte, que, pelo visto, vai mostrar as suas garras mais nitidamente.

[Certo, o cetro do PSDB está em São Paulo. Sempre esteve. Não há novidade nisso. E o PMDB continua tão forte quanto antes.]

O PT, por outro lado, que teve em Lula uma liderança incontestável, quase perdeu o governo. Isso demonstra que parte do eleitorado do PT, que é, na maioria, muito popular e de baixa instrução, está temoroso da sustentabilidade que ele conquistou nos últimos dez anos.

Um exemplo: um mês antes das manifestações de 2013, tivemos um boato de que o Bolsa Família acabaria. Em três dias, 920 mil beneficiários sacaram o dinheiro, principalmente no Nordeste. Ele desconfia que a situação econômica não está tão boa.

[Sim, o PT está há 12 anos no poder. O desgaste é inevitável. Quanto à insegurança dos pobres, talvez a maneira desrespeitosa com que a mídia difunde preconceitos contra programas sociais tenha algo a ver com isso, não? Esse preconceito chega até mesmo, e com muita força, aos menos pobres, aos remediados, que repetem chavões contra o Bolsa família. O povo ainda é traumatizado por séculos de pobreza e opressão. Seus terrores têm razão de ser. Não devemos subestimar a intuição do povo. ]

Isso dá a entender que temos a possibilidade de uma terceira via, que esteve na mão de Marina, em 2010 e em 2014. PT e PSDB foram ao segundo turno, mas nunca tão machucados como agora.

[Não vi isso. Para mim, foi o contrário. A terceira via naufragou ruidosamente este ano. PT e PSDB nunca saíram tão fortes de um pleito como agora. O PT, para ganhar, conseguiu a proeza de unificar a esquerda. Há tempos não víamos os movimentos sociais, as bases orgânicas da esquerda, tão unidos em torno de um projeto. Lideranças culturais da periferia de São Paulo, os sem-teto, sindicalistas, a Dilma só ganhou porque houve um grande esforço de união em torno do PT nesta eleição. A mesma coisa vale para o PSDB. Ele também reuniu a sua base social, a classe média urbana, empresários, etc, e saiu fortalecido das eleições, apesar da derrota em Minas. ]

O sr. afirmou que talvez o maior legado dos protestos de 2013 tenha sido o surgimento de uma militância tucana.

Isso é algo novo, o PSDB nunca teve militância de rua e na internet. Agora surgiu. Parte daqueles jovens que saíram às ruas entrou na campanha do Aécio.

[Sim e não. Surgiu uma militância tucana, porém, misturado a ela, um bando de malucos sectários, que mais atrapalham do que ajudam. Essa turminha aí que defende intervenção militar, os fãs do bolsonaro, todos esses engrossaram a “militância tucana”. Não acho que isso é bom para o PSDB.]

Temos registro em São Paulo de 15 mil militantes tucanos na rua pela primeira vez. Essa é uma novidade, e a disputa política fica muito mais sofisticada, com mais ingredientes. Essa coisa do PT dizer “nós temos militantes, vocês, só pagos” acabou.

[Certo. Mas não sei se é verdade que o PSDB não tinha militantes antes. Eles se sentiram mais seguros para ir à rua, mas antes estavam em casa, fazendo campanha nas redes sociais. Há anos que a militância de direita nas redes é muito forte e bem capitalizada.]

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1545232-dilma-mudou-paradigma-de-campanha-eleitoral-no-pais-diz-ruda-rucci.shtml

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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