Pizzolato na casa do cônsul

Tortora


 

A baía da Guanabara esticava-se pelos quase vinte metros de janela, dando à contemplação uma dinâmica de “traveling” holliwoodiano.

Não bastava olhar a paisagem, você tinha de a percorrer, demoradamente, com os olhos.

Diante de nós, quase invadindo a sala, o Pão de Açúcar, altivo como um nariz árabe.

Os colunistas da Globo frequentam o cônsul americano, fornecendo-lhe, em paga, análises furadas e tendenciosas sobre a política nacional.

Já o blogueiro foi ao jantar na residência do cônsul francês, um jovem de aparência austera, qual imaginaríamos um jacobino investido de funções públicas. Não lhe concedi análise nenhuma, só alguns conselhos de não botar muita fé na imprensa brasileira e procurar ver sempre o outro lado, os blogs.

Era um evento social em homenagem a um cineasta francês, o tímido Jean-Paul Salomé, que finalizou há pouco o filme Je Fais le Mort (Se fazendo de morto), uma voluptuosa e inteligente comédia noir.

O filme estará em cartaz, em breve, em diversas cidades brasileiras. O diretor veio ao Brasil para participar de algumas pré-estreias.

Também presentes, um nome sagrado da MPB, a quem chamarei de V, e sua esposa, amiga e leitora do Cafezinho, a quem chamarei de Y.

Antes de servirem o bufê, eu, Y e o assessor de imprensa de V conversamos um pouco sobre o momento pós-eleitoral.

Y, que apoiou Dilma e tem uma cabeça tranquilamente progressista, dizia que o convívio com alguns amigos e parentes andava tenso, por causa desta inexplicável e idiota histeria “antibolivariana”.

É um relato que tenho escutado bastante. Pessoas instruídas, classudas, transformam-se em bestas feras quando começam a falar de política, dando guarida a todo o tipo de imbecilidade: “O Brasil vai virar Cuba; Lulinha é dono da Friboi e da Oi”, etc.

O que tem causado preocupação, sobretudo, é a alta carga de agressividade com que atacam posições contrárias.

Y contava: “Outro dia, V tentou converter um taxista coxinha. Pensei que o taxista fosse lhe dar um soco!”

Falávamos, enfim, deste surto coletivo, que parece ter devastado o bom senso de tanta gente, em especial da classe média alta e agregados (como os taxistas).

Y atribuía a culpa à mídia, com suas campanhas diárias de desinformação – também uma constatação cada vez mais comum.

Contei-lhes da minha observação sobre a imprensa conservadora de EUA e França. Perto do Globo, por exemplo, Washington Post e Le Figaro, diários da direita norte-americana e francesa, respectivamente, parecem jornais patrocinados pela CUT, tal a maneira respeitosa com que tratam pautas sindicais, trabalhistas, e tal a delicadeza com que abordam as rixas ideológicas.

Alguns minutos mais tarde, sentados à mesa, comendo uma salada de camarão e quinua, voltamos a falar de política.

Eu descrevi minha proposta de uma pesquisa com cobaias humanas.

Tranque-se dois cidadãos em quartos fechados. No primeiro, entregue-se diariamente, por baixo da porta, um exemplar do jornal O Globo, e, semanalmente, da revista Veja.

No segundo, nada.

Após seis meses, libere-se ambos. Quem estará melhor da cabeça? O que teve Globo e Veja como única fonte de informação e entretenimento por seis meses, ou o que não leu nada?

Minha suposição, ainda não testada, é que a pessoa condenada a ler Globo e Veja sairá do quarto com graves lesões cerebrais, problemas agudos de depressão, e surtos de ódio e histeria tão fortes que poderão se converter em sociopatia assassina.

Já o sujeito que ficou seis meses trancado sem ler nada, apenas olhando para as paredes e meditando, possivelmente sairá uma pessoa melhor do que entrou. Teve tempo de sobra para se autoconhecer, analisar os erros de seu passado e meditar sobre seu futuro.

Lá pelas tantas, Y me disse que havia lido a entrevista com Pizzolato em meu blog.

V, o músico, então mencionou um clichê banal, tipo assim: “ah, mas ele mexia em alguma coisa ali”.

O assessor de imprensa de V também havia falado algo parecido, mas referente à reportagem da Veja na semana da eleição: “Eles deviam saber sim”.

Ambos são progressistas, apoiaram Dilma e não acreditam, não totalmente, na história do mensalão.

Resumi-lhes rapidamente o que penso sobre esse tipo de “moralismo intuitivo”.

A meu ver, este é o grande mal causado pela irresponsabilidade jornalística. Envenena-se a opinião pública, muitas vezes sem que as pessoas tenham sequer a consciência disso.

O processo penal passa a ser visto como mera formalidade. A verdade não está nos autos, nas provas, mas nos boatos e nos escândalos da imprensa. Ou então neste “moralismo intuitivo” que nos leva a achar que todos são “um pouco” culpados.

“Fulano não era nenhum santo”, dizem acerca de alguém, antes de queimá-lo vivo na fogueira da imprensa.

E aí, quando se pergunta por provas de sua culpabilidade, e não se as encontra, o sujeito que pergunta é acusado de tentar santificar o réu.

“Ah tá, Pizzolato é um santo então”.

“Dirceu é um santo, tá bom”.

Não sei se Pizzolato ou Dirceu são santos. Provavelmente não.

Quem é santo?

O problema é que o Brasil ainda não desenvolveu uma cultura penal genuinamente democrática e humanista. À ditadura militar, onde a imparcialidade judicial foi substituída pela truculência dos quartéis, seguiu-se a ditadura da mídia, onde a condenação ocorre bem antes do julgamento, nas páginas dos jornais e nos programas sensacionalistas.

Num país desacostumado à democracia e ao respeito aos direitos humanos, foi fácil para a mídia assumir o papel de policial, juiz e carcereiro.

Chego enfim à seção principal do post, antes da qual senti necessidade, não sei bem porque, de fazer esta longa introdução.

Talvez para afastar, pelo cansaço, os generais do senso comum, os pequenos inquisidores e suas certezas mesquinhas, os paladinos involuntários da barbárie.

Às vezes eu acho que as pessoas não sabem muito bem o que é solidariedade, o que me faz lembrar de Tocqueville, e sua obra máxima, Democracia na América.

O francês observa que a religião ajudou a consolidar a democracia nos EUA, porque trazia, em seu ideário, conceitos profundos de igualdade e civismo que uma ideologia apenas intelectual não poderia dar conta.

Ora, a verdadeira solidariedade, sobretudo no Novo Testamento, que inaugura conceitos modernos de justiça, jamais pode ser rebaixada a uma ideia confortável de compaixão.

É fácil sentir pena de uma criança maltratada. O humanismo democrático, porém, só nasce quando a sociedade aprende a ter solidariedade inclusive em relação a seus criminosos.

Assim nasce, tardiamente, a filosofia penal humanista de Cesare Beccaria.

Solidariedade não é pena. Não é um sentimento inferior.

Esta é a razão pela qual, num Estado Democrático de Direito, mesmo os criminosos mais odiados pela opinião pública, devem ser protegidos e bem tratados pelo Estado. Devem receber um julgamento justo e, se condenados, ser tratados com humanidade e respeito.

No Brasil, definitivamente, ainda vige a barbárie penal. Os cárceres são desumanos. Na entrevista que fizemos com a presidenta Dilma, ela nos contou que o governo federal disponibilizou bilhões de reais para a construção e reforma de presídios, mas governadores e prefeitos não usam a verba, porque isso não dá voto. Ao contrário, nenhum prefeito quer construir presídio em sua cidade, e nenhum político acha que será bem visto se aplicar dinheiro e tempo melhorando o tratamento a bandidos condenados.

A mídia, como sempre, reforça os preconceitos. A única coisa que ela faz é, periodicamente, mostrar a situação precária dos presídios, sem jamais mergulhar num debate mais responsável sobre os preconceitos a serem vencidos para melhorarmos a nossa cultura penal.

Eu interesso-me pelo tema porque ele toca a minha paixão mais cara, aquela pela qual eu me tornei blogueiro político: a luta contra o arbítrio e a mentira.

Nesta luta, pode-se resumir boa parte dos problemas nacionais.

Nem falo apenas da mentira dos jornais. Refiro-me antes àquela que sentimos necessidade de contar a nós mesmos, para sobrevivermos.

Mentira esta que só pode vencida pelo conhecimento, porque somente este nos proporciona a autoconfiança necessária para abandonarmos as ilusões que antes nos sustentavam.

Em relação ao arbítrio, ele é o germe da ditadura, e a ela sobrevive, sempre. O arbítrio existe também dentro da democracia, como a sua doença mais perigosa e mais comum.

O arbítrio não está apenas no mau juiz. Está no senso comum, na imprensa, e contamina as mentes mais brilhantes, os espíritos mais generosos.

Daí voltemos ao caso Pizzolato, até para nos acostumarmos ao hábito saudável de sairmos das nuvens conceituais e discutirmos filosofia e política à luz de fatos reais.

Sempre me espanta a leviandade com que muitos conhecidos tratam o assunto. Confrontados pela falta de provas de sua culpabilidade, afastam a má consciência desenvolvendo uma antipatia tola pelo personagem: ah, ele usava ternos caros, ah, ele comprou um apê em Copacabana, ah, ele era “operador” do PT.

Pizzolato não foi condenado por ser “operador” do PT (nem há nenhuma acusação, ou mesmo suspeita, em relação a isso), tampouco por usar ternos caros ou gravatinha borboleta.

Alguns promotores, desesperados com a liberdade de Pizzolato na Itália, fazem denúncias redundantes relativas a sua fuga. Hoje, na Folha e no Globo, há notícia de que o Ministério Público de Santa Catarina emitiu novas ordens de prisão contra o ex-diretor de marketing do Banco do Brasil. Tentativa inútil, quase ridícula, de forçar o Estado italiano a prendê-lo novamente. Ou então um esforço calculado para manter o personagem em estado de permanente acusação, o que é uma maneira esperta de afastar qualquer resquício de simpatia pela figura.

Por aí se vê a hipocrisia e a truculência de um Estado ainda não democrático. Milhões de paulistas estão vivendo situações de grande sofrimento, por causa da incúria dos governantes, que não fizeram investimentos necessários na estrutura hídrica do estado, nem os avisaram sobre os problemas que viriam, e não há uma ação civil, nem editorial, contra isso. Ao invés disso, persiste a tentativa de perseguir, com tenacidade cheia de ódio, um homem que não oferece nenhum mal ou perigo à sociedade. Os corruptos do Brasil podem dormir descansados. O Ministério Público Federal e a imprensa estão focados em castigar Henrique Pizzolato.

Na entrevista que deu, há alguns dias, a jornalistas brasileiros e italianos, Pizzolato mencionou o nome de Enzo Tortora, a quem comparou o seu caso.

Os dois jornais italianos (aqui e aqui) que publicaram a entrevista destacaram o nome de Tortora no título, o que sinaliza que o ex-diretor de marketing conseguiu abrir uma brecha na Itália que a imprensa brasileira jamais proporcionou.  A imprensa daqui sempre massacrou Pizzolato, nunca lhe deu espaço para contar a sua versão dos fatos.

A imprensa brasileira sequer mencionou o nome de Enzo Tortora. Preferiu antes cortar esse trecho da fala do entrevistado, apesar de ter gasto uma fábula de dinheiro mantendo jornalistas por semanas na Itália, à espera justamente de uma… entrevista com Pizzolato.


 

Por que ocultaram a menção a Tortora?

Quem foi Enzo Tortora?

Como o post já ficou monstruosamente longo, vou deixar para falar de Tortora amanhã.

É uma história interessantíssima!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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