O décimo círculo do inferno

(pintura de Antoni Tapies, de Barcelona)


 

A notícia vale como epitáfio de um dia que nasceu morto.

A notícia: o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deu entrevista à TV Veja.

Ponto. Final. Desçam as cortinas.

Talvez a estratégia do governo seja mais genial do que a gente pensa.

Está muito além da compreensão de simples mortais.

Talvez a estratégia seja aprofundar logo a crise, acelerar de uma vez o processo de impeachment, porque se tiver de acontecer, que seja logo, para as coisas se resolverem.

Algo assim como perder a guerra antes mesmo de lutar, para a guerra terminar logo.

Entreguemos Paris antes dos nazistas declararem guerra. Menos risco.

Façamos o máximo de cagadas, no menor espaço de tempo possível.

Graça Foster divulga um balanço em que mistura projeções de queda no faturamento da Petrobrás, em virtude de preços menores do petróleo, com estimativas de corrupção baseada em fofoca de delator.

Dilma se mantém no mutismo de sempre.

Pior: desmantela o único canal de comunicação sistemática que possuía: o Café com a Presidenta, que lhe permitia ao menos falar com cidadezinhas do interior e periferias, as quais, quem sabe também por isso, foram o seu mais fiel bastião eleitoral.

O último programa foi realizado em junho do ano passado.

Como o poder não suporta o vácuo, quem está assumindo as rédeas do debate político nacional parece ser Eduardo Cunha, o novo presidente da Câmara dos Deputados.

Hoje ele já deixou claro: não haverá regulação de mídia nem debate sobre o aborto.

As obras da Petrobrás, que empregam centenas de milhares de trabalhadores, estão parando e deixando um rastro de desespero.

E a Dilma, calada.

Marcelo Freixo, deputado estadual do Rio de Janeiro, costuma usar um lema em suas campanhas que, apesar de piegas, deu bons resultados: “nada deve parecer impossível de mudar”.

O lema da estratégia política do governo federal pode ser uma paródia: “nada deve parecer impossível de piorar”.

O governo Dilma conseguiu superar Dante.

No inferno dantesco, ao menos havia um limite.

O poeta, guiado por Virgílio, chega ao nono círculo, onde se depara com o próprio Satanás, um monstro horrendo que devora vivo os traidores, mastigando-os lentamente.

Mas tudo se encerra ali, no nono círculo.

Até o inferno tem um fim. Dante e Virgílio pegam um atalho e saem da escuridão.

A obra termina com um verso de alívio: “e quindi uscimmo a riveder le stelle”.

“Então saímos para rever as estrelas”.

Já o governo Dilma, ao atingir o nono círculo, ao invés de procurar uma saída no alto, vai atrás de outro buraco, para descer mais fundo.

E chega ao décimo círculo do inferno.

Este é o significado da entrevista de Cardozo à TV Veja.

O ministro por acaso esqueceu o que a Veja fez no segundo turno da campanha eleitoral?

Por acaso esqueceu o que a Veja faz com Dilma 24 horas por dia?

Já deu uma olhada nos blogs escatológicos da revista, que xingam, literalmente, a presidenta, de tudo quanto é nome?

A Dilma não foi à TV, no último dia de campanha, protestar violentamente contra a revista, inclusive afirmando que iria processá-la?

Que raios de estratégia é essa que confunde totalmente o cidadão?

Dilma detona a Veja de dia e Cardozo vai lá dar entrevista à noite?

Parece que o ministro da Justiça prepara o terreno não apenas para o impeachment da presidenta, não apenas para dar poder à oposição.

Cardozo – e portanto também Dilma, sua chefa – não se contenta em permitir a destruição de Cartago.

Eles querem lançar sal sobre as ruínas, para que nada mais cresça na cidade devastada?

Ah, então para quem o ministro deveria dar entrevista?

Ora, sei lá. Para a BBC Brasil, Reuters, Le Monde, Brasil de Fato, Carta Capital, blog do Zé das Couves.

Qualquer lugar, menos Veja.

Um dos grandes erros de Dilma foi não ter aproveitado a passagem de governo para fazer uma verdadeira reforma ministerial.

Podia trocar a presidente da Petrobrás e o ministro da Justiça, em nome da alternância de poder.

Cardozo perdeu completamente a autoridade sobre a Polícia Federal.

Uma polícia que não responde à autoridade hierárquica é uma insanidade.

Imagine se policiais civis do Rio de Janeiro fossem flagrados xingando Pezão nas redes sociais?

Ou, se fossem paulistas, xingando Alckmin?

Seriam exonerados imediatamente! E com razão.

Um policial, militar, civil ou federal, tem de ser politicamente isento, nem petista nem tucano. E, sobretudo, tem de respeitar os superiores.

No caso do governo Dilma, agentes federais chegaram ao cúmulo de praticar tiro ao alvo usando a imagem da presidenta.

E o ministro Cardozo não fez nada.

Ontem eu encontrei um amigo na rua e fomos tomar umas cervejas na Lapa.

Ele contou que seu pai, um conhecido politólogo, está muito nervoso e decepcionado com a incompetência política do governo.

Então pensamos algumas estratégias.

Se Dilma não faz política, não podemos imitá-la e não fazer também.

Fizemos algumas especulações otimistas, pensando em levantar o astral de seu pai.

Apocalípticas e desesperadas, mas otimistas, se é que isso é possível.

Digamos que a mídia consiga realizar o seu intento e leve adiante a loucura de um impeachment.

Terá de ser uma operação imaculada.

Se passar a impressão de que manipulou a informação, a mídia estará assinando, pela segunda vez na história, o atestado de golpista.

E ela já está passando essa impressão.

Por exemplo: este email vazado de uma diretora da Globo, mandando todos os editores blindarem FHC, removendo qualquer associação do ex-presidente com o escândalo da Petrobrás, é uma belíssima e estonteante síntese de golpismo midiático.

Se não for uma operação imaculada, poderá haver convulsão social e, sobretudo, uma intensa e fulminante tomada de consciência por parte da população de que estão tentando lhe enganar.

A popularidade da Dilma caiu não apenas porque a mídia ampliou seus ataques contra o governo, mas porque as pessoas estão irritadas com a apatia política de Dilma.

Se a presidenta adotasse uma estratégia, qualquer estratégia, minimamente digna, resgatando a mística do coração valente, a sua popularidade dispararia no dia seguinte.

Opinião pública é um troço mais volátil que cotação de petróleo. Aliás, por isso sempre reiteramos que o governo não pode se fiar em pesquisa, nem boa nem ruim.

O que ele tem de fazer é assegurar uma base social orgânica sólida, a partir da política.

Então, querido professor, não fique tão chateado.

Se a mídia passar a impressão de manipuladora e golpista, e vai passar, aceleraremos a história.

Podem até derrubar a Dilma, mas terão uma enorme dificuldade para eleger seu candidato em 2018.

Qualquer mácula no golpe, e Lula, ou outro da mesma estirpe (um Haddad, por exemplo) se elege com voto massivo.

A oposição virá com quem? Aécio? Cunha? Alckmin?

Mesmo que algum desses se eleja, quem lhe dará sustentação nas ruas, nas redes, nos sindicatos, nos movimentos sociais?

Ele vai querer censurar todo mundo e o caldeirão vai explodir.

Aí mergulhamos mais fundo em nossas especulações apocalípticas.

Digamos que o PT se desmanche de vez, e que a candidatura de Lula seja inviabilizada por alguma tramoia judicial.

Digamos que os círculos do inferno se sucedam infinitamente. E não sejam apenas nove círculos, mas dezenas deles, cada vez mais sombrios e terríveis.

Surgirá um novo partido? Um Syriza? Um Podemos?

Pode ser.

Por que disse eu que a nossa especulação, mesmo apocalíptica, era otimista?

Porque a política se desenvolve em dois planos.

Um é a superfície do poder, onde transitam os governos, as manchetes do dia, as eleições.

Outro são as profundezas da consciência popular, onde se faz a história.

O nosso campo político está formado. A sua solidez é infinitamente superior às contingências e defeitos de um governo apático.

A mídia brasileira escolheu, há muito tempo, o seu lado.

O lado dos bancos, dos especuladores, dos latifundiários, do eduardo cunha.

O lado dos tucanos, enfim.

Os tucanos e seu incomensurável rabo de mutretas.

O delator Pedro Barusco deixou bem claro: ele recebia propina desde 1997, e naquela época, quem pagava era um cartel internacional, que articulava para que não houvesse desenvolvimento de tecnologia nacional.

Os tucanos roubavam, vendiam as nossas estatais, e ainda recebiam propina de carteis para não deixar o Brasil se desenvolver.

Nem vem que não tem!

O governo Dilma pode ser um primor de incompetência política.

Um sangrento e trágico desastre ferroviário em comunicação.

Mas qualquer coisa é melhor do que o entreguismo tucano.

A gente sabe muito bem porque a mídia quer o PSDB no poder. Por dinheiro, pura e simplesmente.

Se o PT dá dinheiro grosso à mídia, o PSDB vai dar vinte, trinta vezes mais.

Vai comprar milhões de livros didáticos, fazer milhares de assinaturas, vai terceirizar para a grande mídia toda a publicidade e comunicação estatal.

Só que isso é tudo que as ruas pedem para emergir com uma força da qual a mídia já teve um vislumbre nas “jornadas de junho”.

A imprensa comercial só podia filmar do alto dos prédios, ou em helicópteros.

Quando o PSDB ganhar e começar a encher a mídia de grana, ela terá de usar drones de guerra.

Se o governo e o PT, portanto, estão decididos a se autodestruírem alegremente, voluntariamente, então que sejam felizes e tenham a morte mais tranquila possível.

É uma pena, tanto trabalho perdido, mas enfim a experiência valeu.

A consciência política, porém, nunca morre.

A consciência política é imortal.

É com ela que iremos reconstruir nossas cidades bombardeadas pela mentira e pela manipulação.

O golpe que a mídia organiza com tanto zelo pode ser, portanto, a grande armadilha que a história, sarcástica como sempre, esteja lhe preparando.

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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