Exclusivo! Estudo inédito revela vícios do judiciário brasileiro

 

No filme Minority Report, baseado num conto de Philip Dick, o governo contrata uma empresa que descobriu uma maneira de reprimir os bandidos antes que estes cometessem os crimes.

O sistema penal brasileiro adotou o mesmo procedimento.

Entretanto, nossos juízes, por não terem os mesmos dons paranormais dos precogs do filme estrelado por Tom Cruise, adotaram uma estratégia mais simples: na dúvida, prenda-se todo mundo.

Se o indivíduo for inocente, terá oportunidade de prová-lo mais tarde. Que importa se ele ficará preso injustamente por anos a fio?

A liberdade, essa virtude, esse sonho, esse princípio, tão repetido nos editoriais da nossa imprensa, sobretudo quando ela posa de capitalista liberal, é uma farsa.

O Brasil não respeita liberdade nenhuma. Nem a liberdade física: pessoas permanecem presas, anos a fio, sem julgamento. Nem a liberdade de expressão: meios de comunicação controlam a agenda política, destróem reputações, monopolizam recursos de publicidade privada e pública

O Cafezinho publica, em primeiríssima mão, um estudo do Ministério da Justiça sobre as injustiças no processo penal nos estados da Bahia e Santa Catarina, que refletem a média de todo o sistema penal brasileiro.

São números chocantes, que mostram, mais uma vez, como o “senso comum” é uma coisa idiota.

O Brasil não é apenas o país da impunidade. O Brasil é, sobretudo, o país que pune inocentes.

É o país onde temos um Judiciário comparável ao Antigo Regime francês, quando juízes mandavam cidadãos apodrecerem nas sinistras bastilhas, sem direito a um processo penal.

Milhares de cidadãos brasileiros permanecem presos através do instrumento de prisão preventiva, sem condenação definitiva, por meses, anos a fio, e depois são absolvidos.

Ou seja, nunca deveriam ter sido presos! Nunca deveriam ter passado um só dia na prisão!

Na Bahia, em média, 85% dos réus absolvidos cumpriram medidas de prisão!


 

E não por pouco tempo. Ficaram presos por meses ou anos!

Na Bahia, réus absolvidos em primeira instância permaneceram, em média, 394 dias encarcerados!


 

“O juiz mantém o cidadão preso independente de elementos comprobatórios. O sistema prende sem critério. A maioria das prisões é feita por flagrante delito. Em geral, o testemunho do próprio policial é a única prova que existe no processo”, denuncia Rogerio Dultra, cientista político e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), e responsável pelo estudo, que será divulgado oficialmente dentro de algumas semanas.

“Cerca de 90% dos casos, a decisão é de manter o cara preso. O juiz sentencia: mantenha-se preso por motivos de ordem pública”.

E o cidadão fica preso durante todo o processo, através do instrumento de prisão preventiva ou provisória.

A origem do vício está no próprio código do processo penal, que “dá liberdade ao juiz de manter o sujeito preso, sem limite temporal, e sem grandes fundamentos”.

“Não há determinação de que a prisão deva ser a última opção. Não se aplica medidas alternativas, o que é um contrassenso, em função da superlotação do sistema prisional brasileiro, por um lado, e do baixo grau de periculosidade destes réus, de outro, em geral acusados por crimes de baixo potencial ofensivo, sem nenhum tipo de violência contra a pessoa”, explica o pesquisador.

“Boa parte do sistema carcerário brasileiro está ocupado por acusados por crimes sem violência à pessoa. São pessoas frágeis socialmente, que não tem condição de se defender”.

Dultra ressalta ainda a desproporção entre a estrutura de acusação do Estado, contra o indivíduo, e a quase inexistente estrutura para o sujeito se defender.

“Em Santa Catarina, há entre 7 e 9 defensores especializados na área criminal. Na Bahia, uns 40”, informa Dultra.

O pesquisador menciona ainda uma pesquisa feita por um aluno, que não deu tempo de incluir no estudo: no Espírito Santo, o orçamento do Ministério Público é cinco vezes superior ao da Defensoria.

Segundo a pesquisa, o Brasil tem hoje 215.639 pessoas presas provisoriamente, com sua situação equilibrada precariamente entre uma presunção de inocência que não é respeitada e uma pretensão punitiva do Estado que despreza, solenemente, o direito à defesa.

A introdução ao estudo acusa: “Tão grave quanto o desamparo dos que sofrem indevidamente pelo excesso de prisão é o fato de que as instituições que compõem o sistema penal brasileiro, pela sua prática, têm optado por transformá-lo em um aparato repressivo predominantemente cautelar. Como se verá a seguir, o Poder Judiciário tem considerado mais eficaz e menos oneroso evitar um processo judicial amparado no princípio do amplo contraditório e tem sistemática e automaticamente chancelado a atividade policial, convertendo massivamente em prisão processual as prisões em flagrante.”

*

A barbárie do nosso sistema penal, onde prevalece a cultura da truculência e da acusação, se reflete na violência psicótica das nossas policias estaduais, que invadem comunidades  atirando indiscriminadamente, sem nenhuma preocupação com a vida humana.

Foi o que aconteceu neste final de semana no Rio, em que Eduardo Jesus Ferreira, uma criança de 10 anos de idade, foi assassinada no Complexo do Alemão.

O indivíduo é violentado pela polícia, depois pelo juiz, depois pelo sistema carcerário. E a grande imprensa, que deveria ser um esteio em defesa do indivíduo contra o Estado, é aliada aos setores mais truculentos e mais reacionários desse mesmo Estado.

*

A mídia brasileira, ao invés de promover um debate sobre essa barbárie, apenas faz reportagens, de cinco e cinco anos, exibindo a superlotação nos presídios, sem, todavia, buscar as razões do problema.

Pior, a mesma barbárie usada contra pobres, agora é usada também contra empresários, quando o objetivo é promover um espetáculo midiático com objetivo político.

Os réus da Lava Jato estão presos há mais de cem dias, sem que haja qualquer sentença definitiva, e sem que representem qualquer perigo à sociedade. O único objetivo é torturá-los psicologicamente para que aceitem fazer as delações que interessam ao circo midiático.

Setores progressistas não podem cair na esparrela de achar que, só porque são empreiteiros, não devem ser defendidos.

Não, se o reacionarismo faz isso com empresários tão poderosos, com dinheiro para pagar os melhores advogados, abre-se caminho para fazer o mesmo com qualquer cidadão, pobre, classe média ou rico, desde que isso seja útil à sintaxe narrativa do próximo golpe político ou midiático.

A nossa imprensa, ao invés de lutar para promover valores humanistas e democráticos, que garantem a liberdade e os direitos plenos da maioria pobre da população brasileira, agora defende que o mesmo tipo de arbítrio e violência seja estendido até mesmo àqueles brasileiros que tem condições financeiras para pagar uma boa defesa judicial.

Neste domingo, vemos mais uma vez a truculência do Estado refletida na capa da Folha, em que procuradores posam de herois, defendendo, por incrível que pareça, medidas que resultam em desemprego de milhões de pessoas, e a prisão de executivos por tempo indeterminado, mesmo sem nenhuma sentença contra os mesmos.

O conservadorismo odioso de setores da elite brasileira tenta dar um xeque-mate em nossa democracia, faturando em cima do que existe de mais vil, mais baixo, mais preconceituoso, na consciência popular.

Enquanto policiais militares assassinam crianças de comunidades carentes no Rio, marchadeiros em São Paulo entoam “Viva a PM!” e tiram selfie com os agentes.

Enquanto o Judiciário mantém milhões de brasileiros encarcerados injustamente, setores reacionários da classe média batem palmas para Joaquim Barbosa e Sergio Moro, marionetes da Globo.

Barbosa e sua atual reencarnação, Sergio Moro, violam sistematicamente a ética de sua profissão e se transformaram em juízes políticos e midiáticos,  que desprezam abertamente o direito de defesa dos réus.

Sergio Moro chegou ao cúmulo de defender a mudança na lei, para dar normalidade jurídica ao vício que hoje é uma regra clandestina do nosso judiciário: a prisão preventiva por tempo indeterminado antes mesmo da sentença.

Em outras palavras, Moro defende entregar a liberdade do cidadão a um juiz convertido em pequeno napoleão, que condena antes mesmo de analisar o processo, ou ainda pior, que mantém o indivíduo preso justamente por saber que o mesmo será solto se o processo seguir adiante, por ausência de provas. Um juiz, portanto, que decide, qual os precogs do filme, retirar do convívio social cidadãos que poderiam, na opinião onisciente deles, cometer crimes.

Por que Moro defendeu isso? Porque é justamente o que ele está fazendo com os presos da Lava Jato, presos em sua Guantanamo particular.

As ideias de Moro, felizmente, foram rechaçadas por toda a comunidade jurídica, incluindo o ministro Celso de Mello, que reagiu com indignação: “inaceitável, insuportável, um retrocesso inimaginável”.

Moro foi também criticado pelo presidente da OAB-SP, o advogado Marcos da Costa: “A presunção de inocência do acusado se estende até o final do processo, quando o acusado não tem mais possibilidade de recorrer da decisão. Isso é básico em um Estado Democrático de Direito. ”

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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