Em busca do tempo que já não temos para nossos livros

(Dedico esse post a meu amigo Bruno Dorigatti, um dos editores da Darkside, excelente editora carioca, com livros de suspense, fantasia, ficção científica. A propaganda acima é de um dos últimos lançamentos, o bestseller O Demonologista. Bruno me indicou para um trabalho no Sesc de Friburgo, em julho deste ano, para falar de fanzines e blogs, um compromisso que, lamentavelmente, não pude honrar. Peço desculpas a ele e ao Sesc pelo furo. Espero poder compensá-los um dia).

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Uma das minhas angústias crônicas tem sido esta batalha sempre perdida contra o tempo.

A vida sempre parece insuportavelmente curta, os dias irritantemente breves, as noites jamais dão conta, para a gente viver e ser tudo aquilo que almejamos.

Concentremo-nos apenas num assunto: livros.

Uma pessoa que gosta de ler livros sempre se sentirá frustrada por não possuir tempo suficiente para se dedicar às obras que ama, ou que ainda não conhece.

Os livros nos oferecem poder, prazer e vaidade.

O poder advém da sensação de força que nasce do conhecimento adquirido após a leitura de alguns bons livros.

O prazer é a leitura em si, um prazer especial que se desenvolve na proporção em que se adquire mais conhecimento. Quanto mais conhecemos um assunto – literatura, ciências, filosofia, direito, história – mais estimulante se torna o prazer de mergulhar em suas profundezas.

A vaidade é inevitável.

Também é, por outro lado, o lado sombrio de quase todo intelectual ou leitor, em especial num país de cultura aristocrática, como o nosso, onde a educação sempre foi privilégio de uma elite.

Essa cultura faz com que a vaidade intelectual se converta facilmente num sentimento reacionário e elitista. A pessoa que teve oportunidades de ler desenvolve, em si, um sentimento tóxico de superioridade – um sentimento que é exatamente o oposto daquele que caracteriza a cultura democrática.

Esta vaidade degenera rapidamente em preconceito político: despreza-se o povo “ignorante”, que não leu os livros que eu li, e que vota em candidato tal. Em geral, este preconceito é maior em pessoas semicultas, deslumbradas com o fato de terem consumido meia dúzia de livros, e que, ao invés de se tornarem mais sábias, conseguem se tornar ainda mais ignorantes e mais preconceituosas do que se não tivessem lido nada.

É com este sentido que eu, certa feita, inventei uma tirada sarcástica: “o pior ignorante é aquele que lê”.

Pode-se facilmente identificar esse leitor ignorante entre os consumidores de nossa mídia tradicional.

Não há pessoa mais analfabeta política, por exemplo, do que um leitor de Globo e Veja.

Às vezes o sujeito até tem tempo de ler algo fora da casinha midiática; um bom clássico, por exemplo, mas aí não tem mais tempo para se informar politicamente. E quem não tem informação política, acaba caindo na esparrela midiática e se tornando, quase que à sua revelia, um coxinha.

Estou consciente de que, como diz o Antigo Testamento, tudo é vaidade.

Mesmo a humildade é uma maneira disfarçada de vaidade.

A timidez, por exemplo, é uma doença nascida da vaidade: o sujeito se acha tão perfeito que não admite errar em público, daí não fala nada.

Então eu sou também um vaidoso, mas quero acreditar – e me agarro a isso como a uma tábua de salvação – que a consciência de nossos vícios é a melhor maneira de conferir-lhes, ao menos, um pouco de dignidade.

Desde que se tome cuidado para não magoar outras pessoas, nossos vícios podem ser perdoados, ou tolerados, pois são eles que nos fazem, em suma, ser o que somos: humanos.

Voltando à questão do tempo, trata-se de um insumo eminentemente aristocrático. Inclusive poderíamos discorrer longamente aqui sobre os graves efeitos políticos decorrentes de uma brutal desigualdade na distribuição do tempo.

É uma situação ainda pior do que a má distribuição de renda, a meu ver. Porque o pobre, quando trabalha duro, até consegue um pouco de dinheiro.

A classe média tem algum dinheiro.

Mas tempo?

O tempo é um produto infinitamente mais difícil de obter!

Quem possui ócio, de fato, para se dedicar à busca do conhecimento?

Nem os professores universitários o têm, consumidos que são pelas premências acadêmicas, que raramente os deixam realmente livre para estudar e ler o que desejam.

Muitas vezes criticamos a classe média, chamamo-la fascista, semiculta, alienada, lobotomizada pela mídia, mas talvez um dia teremos de ser mais tolerantes e vê-la também como vítima de um sistema que não lhe deixa tempo para se dedicar ao desenvolvimento de sua personalidade.

A classe média às vezes é uma presa mais vulnerável que segmentos mais humildes, porque a classe média tem ambições intelectuais que não consegue satisfazer: e a corrupção intelectual só acontece quando há ambição intelectual.

Neste sentido, eu me considero um privilegiado. Comecei a trabalhar com dezesseis anos, e nunca tive, à minha disposição, uma quantidade de tempo ou ócio suficientes para desenvolver um sentimento aristocrático, que me separasse do resto da população.

Mas sempre tive trabalhos – como jornalista especializado em café, primeiro; como blogueiro político, em seguida – que me deram bastante liberdade para utilizar e distribuir meu tempo de maneira que me permitisse investir nas leituras que eu mesmo escolhia para mim.

Quer dizer, não foi tão fácil. Empregos aparentemente livres, informais, muitas vezes demandam ainda mais horas de trabalho do que empregos convencionais.

Esse é lado horrível do trabalho informal: você trabalha 24 horas por dia. Era assim, por exemplo, no tempo em que eu fazia, junto com meu pai, o jornalzinho especializado em mercado de café. Durante alguns anos, para se ter uma ideia, quase nem dormíamos direito porque precisávamos monitorar se os cinquenta ou sessenta assinantes estavam recebendo os faxs programados para envio noturno.

No blog político, é fácil imaginar o frenesi. Trabalha-se a qualquer hora. E quando o trabalho se torna orgânico, como é o meu caso, ou seja, quando você incorpora valores morais e políticos que tornam o seu trabalho um imperativo ético, em prol do Brasil, etc, é preciso tomar cuidado para não enlouquecer, porque cada crise política, cada arbítrio, desaba-se sobre seu espírito como uma crise pessoal, como um arbítrio cometido contra a sua própria pessoa.

Lida-se o tempo inteiro com questões complexas, e, diferentemente do escritor tradicional, que ocupa uma posição aristocrática e distante numa coluna de jornal impresso, um blogueiro fala como que num banquinho de praça, para um público maior, mais próximo, mais agressivo.

Por exemplo, a corrupção. Óbvio que eu sou contra a corrupção. Óbvio que eu sei que houve e há corrupção no governo e no PT. Mas eu quero que ela seja combatida de maneira isenta e republicana, porque entendo que, de outra forma, não será um combate efetivo e honesto à corrupção, e sim um estrategema politiqueiro para derrubar um partido em prol de outro, talvez em prol de um partido muito mais corrupto.

Quando eu defendo uma figura como José Dirceu, por exemplo, não é porque eu o considere um santo. Sei lá o que um político como Dirceu já fez em sua carreira? Minha defesa é por um processo penal justo, que não condene ninguém politicamente.

A mesma coisa vale para empreiteiros. A direita agora procura explorar o “esquerdismo” da esquerda, e lançar-lhe na cara a desfaçatez de defender empreiteiros corruptos.

Ora, o esquerdismo é uma doença, que nunca ajudou nenhum processo político. Não se pode condenar um empreiteiro por ser empreiteiro, como se fosse uma condenação política, como a mídia tenta fazer, com um demagogismo incrível, que antes achávamos presente apenas em panfletos de setores radicais da esquerda ou direita.

Enfim, voltando a questão da liberdade para distribuir o próprio tempo, trata-se de uma liberdade que sempre flerta com o que parece ser, no mínimo, uma infração ética.

Quando é você mesmo que decide quando deve parar de trabalhar, num emprego no qual você se sente responsável (embora isso seja um tanto louco) por toda a sociedade, as suas férias cheiram à traição.

É como se o corpo de bombeiros de uma cidade resolvesse tirar férias. Isso é um crime. Só que o bombeiro sempre tem um substituto, então se um tira férias, outro assume o lugar. Um blogueiro, não. Como o seu trabalho é subjetivo e singular, como só ele pode fazer uma interpretação x sobre determinado assunto, então ele é insubstituível. Não pode tirar férias, portanto.

E, de fato, nunca tiramos férias.

Por isso mesmo, o tempo livre disponível para leituras, em verdade, é muito escasso.

Essa é a razão pela qual eu tenho um fetiche especial por duas coisas: a vagabundagem, em primeiro lugar; e os livros.

O fetiche pela vagabundagem é fácil de explicar. Como o trabalho de blogueiro não pode ser interrompido nunca, mas como é inevitável que eu pare de vez em quando, eu não consigo evitar a sensação de estar vagabundeando.

Por sorte, sou carioca, onde a cultura do vagabundo, em virtude de séculos de escravidão, nunca foi totalmente associada a coisas negativas, mas antes esteve ligada à tradição de liberdade. Muito diferente, claro, de regiões onde prevaleceu o trabalho imigrante, onde a cultura do trabalho é algo sagrado.

Tenho amigos do sul do país, morando aqui no Rio, por exemplo, em relação aos quais eu sinto profundamente essa diferença cultural.

Um carioca, apesar de trabalhar a mesma coisa ou mais do que qualquer outro, nunca gosta de parecer que está trabalhando.

Um sulista, ao contrário, mesmo que esteja de férias, age com uma ansiedade parecida a de alguém trabalhando.

Estou divagando, porém.

Eu vim aqui falar de livros, desse meu fetiche por um tempo para ler que, infelizmente, raramente eu tenho.

Mas já tive mais tempo: anos e anos de vagabundagem quase criminosa, enfiado em bibliotecas ao invés de estar escrevendo sobre mercado de café ou fazendo análises políticas.

Agora mesmo, por exemplo, estou fazendo isso. Ao invés de ler os jornais do dia, estou aqui fazendo uma crônica sobre o nada.

Não sei bem como, mas esses anos de vagabundagem me serviram para algumas coisas: sem nunca ter feito curso de nada, aprendi a ler em várias línguas: inglês, francês, espanhol, italiano. E sou um estudante eterno de latim, grego antigo e alemão.

Procuro quase sempre ler os autores em seus idiomas originais, caso os livros estejam escritos numa dessas línguas que domino.

Então vamos lá, aos livros. Vou listar aqui os livros que ando lendo, com a esperança de que, botando isso para fora, eu possa me organizar melhor e terminar de lê-los todos. Eu sempre termino de ler meus livros. Às vezes demoro anos, porque os abandono para ler outros, mas acabo sempre voltando, muitas vezes sendo obrigado a reiniciar a leitura do zero.

1) Tubarão, de Peter Benchley. Está aí um excelente romance de aventura, em estado puro. A editora Darkside, do meu amigo mencionado na dedicatória, publicou uma excelente tradução, e o livro está disponível nas principais livrarias do país. Ou você pode pedi-lo pela internet. Apesar de ser o primeiro romance do autor, tornou-se, por muito tempo, um dos livros mais vendidos no mundo, claro que com a ajuda do filme de Steven Spielberg, baseado nele e com roteiro escrito pelo próprio autor do livro.

2) El hombre que amaba a los perros, de Leonardo Padura. Uma obra-prima literária, embora tocada por aquele amargor típico das etapas tardias de uma revolução, quando os sonhos já perderam o viço inicial, e foram conspurcados pela mediocridade, pela burocracia, pela corrupção, pela vida, enfim. Padura conseguiu a proeza de escrever uma obra tão universal que agrada à direita (por narrar, em detalhes sórdidos, a degeneração política e moral do socialismo) e à esquerda, orgulhosa por entender que somente uma cultura socialista poderia criar um gênio como Padura. Não existem Paduras em nenhum outro país latino-americano. Só em Cuba. Cuba, sozinha, parece produzir mais escritores e médicos do que toda a América Latina. E de uma qualidade invejável, dotados de um sentido humanista e uma sensibilidade política, que raramente encontramos num escritor brasileiro, em geral coxinhas e puxa-sacos da mídia. É uma leitura, sobretudo, gostosa. A prosa de Padura tem uma fluidez rara, do tipo clássico, sem nenhum dos cacoetes pós-modernos tão comuns hoje em dia, onde o escritor tenta disfarçar sua incapacidade de contar uma história com malabarismos sintáticos supostamente de vanguarda. É um livro para ler, não para enfeitar a estante.

3) Golpe de Estado, de Palmério Dória e Mylton Severiano, da editora Geração. Taí um livro que poderia perfeitamente virar um blog político de altíssima qualidade. Os autores fazem correlações históricas entre os acontecimentos que desencadearam a ditadura e os fatos políticos presentes. Ajuda a entender muita coisa que está acontecendo neste exato momento. Talvez seja, inclusive, e infelizmente, um livro profético.

4) Numero Zero, de Umberto Eco. Mais um livro divertidíssimo de Eco, com uma história com a qual os brasileiros vão se identificar muito. O personagem principal vai trabalhar num jornal absolutamente corrupto. As lições de como se forjar uma mentira na mídia têm força para se tornarem clássicos da história do sarcasmo político.

5) Vivendo no fim dos tempos, de Slavoj Zizek. É um livro excelente para quem gosta de política, ou deseja aprender mais sobre o assunto. Zizek parece um blogueiro escrevendo. Trata com desenvoltura, ironia e liberdade os principais temas que pontuam os debates ideológicos nos dias de hoje. Vale muito para se entender o imbróglio político relacionado à Grécia, por exemplo.

6) Outono da Idade Média, de Johan Huizinga. É um livro que ainda não li, mas sobre o qual já li tanta coisa que ele ocupa um lugar especial na estante, esperando o momento certo de ser degustado. É um dos grandes clássicos de história e talvez o mais belo livro escrito sobre a Idade Média, que é tratada não como a “idade das trevas”, mas como um período rico culturalmente, responsável pelas forças que explodiriam no renascimento, nas luzes, nas revoluções humanistas.

7) Judar, de Amos Oz. Um livro para reduzir nosso maniqueísmo em relação à Israel. Não podemos culpar os israelenses por sua extrema-direita, assim como não queremos ser associados a Jair Bolsonaro e Eduardo Cunha. Amos Oz é um escritor de esquerda, um dos mais célebres de Israel, cujos trabalhos devemos conhecer inclusive para tentarmos, um dia, libertar o Brasil da ditadura cultural de uma imprensa que se finge imparcial, mas que é apenas imperialista e reacionária.

8) Getúlio, de Lira Neto. Um clássico para se entender a história do Brasil. Sobretudo, para entendermos que lideranças políticas são homens com  vícios e defeitos; mas que isso não lhes tira as qualidades. Muito pelo contrário. Ao sondar o lado escuro dos grandes personagens, podemos enxergar melhor o aspecto luminoso de suas ideias e ações.

9) Les Miserables, de Victor Hugo. Um clássico para aprendermos a não ficarmos sempre, de maneira automática, ao lado das autoridades, e a entendermos que não se deve jamais confundir o conceito de justiça, que é sublime, com a justiça contingente dos homens, quase sempre falha e arbitrária. Uma boa leitura para a era de conspirações judiciais que vivemos hoje no Brasil.

10) O capital, de Piketty. Esse livro é a prova de que a inteligência humana continua lutando bravamente por um mundo mais justo. O trabalho de Piketty é uma refinada e acuradíssima obra de economia política, mas também uma peça de combate.

Paro por aqui porque o post já ficou monstruosamente longo. E tenho que voltar às minhas leituras.

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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