Entrevista exclusiva: Wallace Martins fala sobre o fascismo penal brasileiro

O Cafezinho conversou com o advogado criminal Wallace Martins sobre os vícios do atual sistema judiciário brasileiro, e alguns casos de destaque na mídia, como a ação penal 470 e a Operação Lava Jato.

Confira a entrevista, feita com o editor do blog Miguel do Rosário:

O Cafezinho: Você tem acompanhado esse processo da ação penal 470 e também da Lava Jato?

W: Sim. Na ação penal 470 foi implantado o embrião do fascismo penal no Brasil, do ponto de vista da seletividade penal política. O direito penal sempre foi seletivo, no sentido de saber muito bem a quem punir: preto, pobre, nordestino. Agora nós tivemos a gênese de um processo penal de seletividade política, a saber: quis se condenar um partido político e apenas um. É um princípio mesmo: a seletividade do direito penal. Ele sabe bem a quem punir. Ele serve a estruturas econômicas.

O Cafezinho: Muitas vezes, usa-se essa frustração latente na sociedade (uma certa frustração natural do ser humano, de saber que existe uma série de injustiças) e se inicia uma ação penal para punir os grandes e poderosos, tendo uma aprovação popular muito grande nesse processo. Você acha que existe uma manipulação desse clima psicológico pró-acusação, pró condenação?

W: Primeiramente, quando você pune gente graúda, você dá a entender que todo mundo pode ser pego pela lei penal. O que não é verdade. O “todo mundo”, os poderosos que eles querem são de um determinado seguimento. E quem cria isso e sabe mover uito bem? É a imprensa, que produz subjetividade como ninguém.

Nós temos, hoje, um juiz absolutamente midiático, que foi premiado por uma grande empresa de televisão e que não quer se bater ou se debater contra ela. Ele quer se manter como o paladino da verdade e da moralidade.

Eu acho que a esquerda errou de alguma forma, por não regulamentar a mídia. A mídia não pode pertencer a quatro famílias. O Brasil tem quatro famílias que mandam na mídia inteira.

O Cafezinho: Isso aí acaba influenciando o processo político e, mais grave ainda, os processos penais, que, a partir do momento em que são fundamentados no espetáculo, as suas irregularidades e os seus vícios são abafados. E o contraponto a isso, as críticas a esse processo são minimizadas porque a grande mídia tem uma hegemonia muito forte.

W: O nome disso é publicidade opressiva. Há uma tese de doutorado da juíza, agora desembargadora, Simone Schreiber, do TRF do Rio, que chama isso de publicidade opressiva de julgamentos criminais. A mídia no tribunal. Ela condena. Ela acusa, não defende e condena.

O Cafezinho: Existe uma cultura penal, no Brasil, de acusação. Eu vi um vídeo onde o juiz Alexandre Rosa fala sobre uma técnica de acusação em que o procurador pede uma pena muito mais alta já sabendo que a defesa vai pedir a redução da pena.

W: Isso enfraquece a tese absolutória da defesa. Ou seja, para a defesa conseguir alguma coisa, ela se funda muito na questão da redução da pena e não na absolvição do cliente. Porque a gente está nas mãos do Ministério Público. O Ministério Público é, há algum tempo, o quarto poder. O juiz muitas vezes fala ao Ministério Público. Decide de acordo com o Ministério Público. Se o MP pedir 28 condenações e duas absolvições, o juiz faz isso.

O Cafezinho: Ou seja, o valor máximo do ser humano, da democracia, que seria a liberdade, se torna o valor mínimo por conta das instituições mais poderosas. A liberdade se torna um crime. Você tem um caso como a Lava Jato, onde juiz, procuradoria, Polícia Federal e mídia trabalham pela acusação.

W: Sim, eles são muito competentes no que fazem. Eles fazem ataques muito bem sucedidos. O juiz virou um membro do Ministério Público. Ele é um acusador, não um julgador. Eu não estou querendo dizer que eu acredito no mito da neutralidade. Nas ciências humanas não existe neutralidade. O que a gente precisa é de uma certa imparcialidade. O juiz não pode participar dessa forma da colheita da prova. Ele está prendendo para conseguir delação premiada. Prende para que se consiga alguma coisa.

O Cafezinho: Ele prende e depois justifica a prisão.

W: Quando, na verdade, o código do processo penal diz isso: é preciso justificar a prisão quando do decreto dela e não depois. Se você diz que aquela pessoa afronta a ordem pública e por isso ela tem que estar presa, isso tem que preceder ao decreto de prisão.

O Cafezinho: Agora, essa questão da ordem pública também é uma coisa muito banalizada, não?

W: Banalizada e talvez inconstitucional. Os processualistas têm falado isso. Porque a prisão pode ser pela garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Quer ver um caso clássico de alguém que deveria estar preso? Eu falo juridicamente: Eduardo Cunha. Existem indícios suficientes de autoria contra ele e de materialidade, e ele ameaça parentes de réus. Isso justifica a prisão preventiva pela conveniência da instrução criminal, que é exatamente isso: você ameaça advogados, juízes, procuradores, co-réus, família de réus; está justificada a prisão. Garantia da ordem pública, já não, aí você tem que ver se aquele sujeito solto irá delinquir. Então, com isso daí você abre um flanco para o arbítrio, para o fascismo, para tudo isso. Como é que eu vou dizer: aquele sujeito é um homem delinquente? Não dá mais. Isso é coisa medieval, isso ficou no passado.

O Cafezinho: Eu queria que você falasse um pouco sobre quais são as raízes do fascismo penal. Como ele surge e até onde ele vai?

W: Eu vou pegar um recorte pequeno, pra gente não se perder e falar em 200, 300 anos. Getúlio Vargas teve como seu Ministro da Justiça (primeiro da Educação) Francisco Campos, que copiou o código de processo penal italiano e o código penal italiano do fascismo. Nossos códigos penal e de processo penal de 1941 são do Francisco Campos. Ele escreveu sozinho esses dois códigos e a constituição de 1937. Veja que a Itália se livrou disso e nós continuamos com esses mesmos diplomas legais, com esse código penal, esse código do processo penal. Então, o fascismo penal e processual no Brasil tem essa marca que ainda subsiste de Francisco Campos.

Agora, falando de 2002 para cá, eu acho que isso começa com um sentimento da nossa elite, que eu chamo de lumpen, uma elite sem iluminação, de pouca cultura. Aqui nós temos a elite lumpen burguesa que, ao ver um metalúrgico, um operário, um sujeito que passou por todas as dificuldades da vida chegar ao poder, é tomada pelo ódio, que é o que nós temos hoje. O ódio já estava na sociedade, não foi criado pela mídia, mas a mídia é o elemento propulsor disso. E com isso eles conseguem produzir subjetividade, o que nós não conseguimos.

O Cafezinho: Eu queria conversar sobre a delação premiada. Essa é uma questão muito polêmica na comunidade jurídica. Ela é uma zona cinzenta porque você premia o criminoso. Em uma questão muito política, como, por exemplo, nos casos do Youssef e do Paulo Roberto Costa, que são operadores políticos muito astutos, que passaram a vida inteira justamente operando politicamente de acordo com os interesses e a conjuntura do momento, você não acha que eles podem jogar com isso e ganhar mais até que o prêmio oferecido pelo Estado?

W: Obviamente. Nós já tínhamos, na nossa legislação, a denominada chamada de co-réu, que é uma forma de se defender sem fazer a delação premiada. A delação premiada consagra a “caguetação”, ela é desleal. Além disso, dá-se a possibilidade da redução de um sexto a dois terços e/ou a própria isenção de pena, que é o que se objetiva nesse caso. Ou seja, será como se eles não tivessem feito nada. Prisão domiciliar durante o processo e depois isenção de pena. Sendo que eles foram os que mais prosperaram no ilícito. Eles podem mentir, tranquilamente, ou omitir. Mentir um pouco, falar um pouco de verdade…

O Cafezinho: Aí tem o perigo de se criar o ambiente de conspiração. Se existe o aparato do Estado, onde há suspeita de que ele está operando de uma forma parcial politicamente e existe a delação premiada, criam-se focos de conspiração no Estado.

W: Sim. E abre flanco para o arbítrio, porque eu tenho certeza que em muitos casos o juiz Sergio Moro tem informações ligadas a outras pessoas que são ligadas a outros partidos e ele deixa pra lá, porque o foco dele é outro. É a seletividade penal. Ele quer pegar uma determinada sigla.

O Cafezinho: Não sei se você acompanhou o caso da Beatriz Catta Preta, que foi advogada de quase metade dos delatores premiados. Você não acha estranho que uma pessoa até então desconhecida se torne a advogada de uma quantidade enorme de clientes de alto poder aquisitivo?

W: É interessantíssimo, porque a Beatriz Catta Preta era uma advogada que vivia no submundo, não submundo do ponto de vista criminoso, mas não era uma pessoa de expressão. Qual era a causa que ela tinha? Para atuar num processo dessa monta, de clientes milionários e agora sair. Eu acho muito estranho que ela faça isso. Eu acho que a doutora Catta Preta não é advogada criminal. Ela é especialista em delação, não em advocacia. O que ela está fazendo, pra mim, é da maior gravidade: pegar sete, oito, ou nove clientes desses. E, outra coisa muito estranha: por que o juiz Sergio Moro faz tanta questão de defendê-la? Ele foi o primeiro a se manifestar, antes até da OAB, quando ela foi convocada pra falar na CPI. Porque ela que forneceu esses elementos todos pra ele.

O Cafezinho: Você não acha que há o risco de haver combinação de delação, já que existe uma advogada para vários clientes do mesmo processo?

W: Claro. Já é muito estranho que uma advogada defenda várias pessoas no mesmo processo, porque há a chamada colidência de defesas. Não custa nada para que um próprio cliente dela resolva fazer a delação de outro cliente dela. E aí como ela fica até diante da OAB? Isso geraria um processo ético disciplinar administrativo da OAB contra ela. Então, eu acho muito complicado, muito mesmo. A Beatriz Catta Preta, pra mim, não é uma advogada, ela foi chamada pelo juiz para convencer os clientes a fazer a delação.

O Cafezinho: Você tem a combinação de outra coisa estranha: praticamente todos os processos eram parecidos uns com os outros, de intimidação de um por um para que eles fizessem delação premiada.

W: Curiosamente, os clientes da Beatriz Catta Preta. Ela é chamada e são exatamente os clientes dela que fazem a delação.

O Cafezinho: Agora, outra coisa que eu queria perguntar pra você: sobre o judiciário. Esse fascismo penal extravasa para o judiciário, que é muito conservador. A gente achava, há uns anos, que viria a ascensão de uma nova geração de juízes, mais arejados, mas não é o que está acontecendo. Os juízes estão vindo mais reacionários ainda.

W: Sabe por quê? Qual é a formação do juiz? Ou mesmo do membro do Ministério Público? É dogmática jurídica, ou seja, você tem que estudar direito civil, processo civil, não como ele deve ser, mas como ele é. Você não vai discutir a herança, você não vai discutir um modelo ou um método de distribuição justa de riqueza. E quem é o juiz? Normalmente, é aquele sujeito que teve uma condição muito melhor na vida. Então, a forma de superar isso seria mudar o concurso público, no sentido de colocar mais disciplinas como filosofia do direito, sociologia jurídica, psicologia jurídica, essas disciplinas iriam melhorar o nível do magistrado. Humanizá-lo. É a chamada formação humanística. Você não pode estudar quatro anos de processo civil e de direito civil e um ano de direito constitucional, que é muito mais importante. Um ano de filosofia do direito, que é o que vai te ensinar a pensar.

O Cafezinho: Sem humanismo você vira uma máquina burocrática processual.

W: É um funcionário público do Estado que está ali repetindo esse tipo de coisa. E em matéria penal é pior. É curioso, porque na faculdade você aprende que a liberdade é a regra e a prisão é a exceção. Nós estamos vendo a prisão como regra e a liberdade como exceção.

O Cafezinho: E a imprensa, que se diz liberal, que era para defender o indivíduo contra o Estado, escutar o seu lado, mesmo que ele seja culpado, não faz esse papel…

W: É isso mesmo, porque a mídia gosta muito da não intervenção na economia, mas em questões penais, ela adora o Estado forte, um estado que quer a condenação, que massacre aquele cidadão.

Agora, me deixa falar uma coisa importante sobre o que eu acho que vai acontecer nesse processo da Lava Jato. Esse processo vai ser anulado. Se não no TRF, pelos desembargadores, quando chegar ao Superior Tribunal de Justiça por recurso especial ou no Supremo, por recurso extraordinário. O Supremo não vai chancelar isso. Então há uma esperança, por incrível que pareça. Não em primeiro grau de jurisdição, pelo juiz Sergio Moro, porque ele é um acusador, ele se confunde entre juiz e acusador.

Quanto à prisão do Dirceu, tem uma boa chance de o TRF conceder o habeas corpus. Nisso, é importante o fato de ele não ter cargo político, porque, se ele fosse deputado federal, por exemplo, e o supremo decretasse sua prisão, ele não teria pra onde ir com habeas corpus. Aqui ele tem o TRF, que, se denegar a ordem de habeas corpus, ele tem o STJ, que, se denegar a ordem de habeas corpus, ele em o Supremo Tribunal Federal.

O Cafezinho: Eu, particularmente, concordo com você, mas eu acho que, tanto a sua opinião em relação à Lava Jato quanto a essa última hipótese, é muito comum no advogado que acredita na lei. Muito comum acontecer a mesma coisa da ação penal 470: os advogados que acreditavam na lei, na constituição, diziam que não ia passar, mas a máquina midiática fez com que imperasse a política e tudo que era legal eles encontravam brechas. O domínio do fato, por exemplo, alguém esperava que eles viessem com isso?

W: Você falou sobre domínio do fato, me fez lembrar de outra coisa: a expressão ato de ofício nos crimes de corrupção. O Supremo destruiu, passou por cima do ato de ofício. O Collor, lá atrás, na década de 90, foi absolvido muito em função disso, por dois motivos: pela apreciação do chamado princípio dos frutos da árvore envenenada e pelo ato de ofício no crime de corrupção. E agora o Supremo resolveu chancelar. Você tem razão. Eu temo que isso aconteça de novo. Mas eu quero crer que possa ser diferente.

O Cafezinho: Agora, uma coisa interessante é a questão, que talvez seja um problema das democracias, do poder vitalício do Ministério Público e do judiciário. O poder está se concentrando nesses estamentos mais estáveis, mais meritocráticos. Você, como advogado, está sentindo que está mais difícil exercer a profissão por causa desse poder excessivo junto aos aparelhos de repressão?

W: Está mais difícil, sim. E você sente isso nitidamente quando defende uma causa antipática aos olhos da mídia, quando a mídia quer a condenação de determinada pessoa e você tem que lutar contra aquilo. O que está acontecendo aqui é de um fascismo desavergonhado. A preocupação é muito grande, porque nós chegamos a um momento em que o próprio sistema de justiça assumiu características fascistas. O ponto é esse, é a seletividade.

  

Lia Bianchini:
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