A barragem que deveria romper uma enchente de lágrimas ou lama que podemos limpar é outra.

por Tadeu Porto

Quando Scarlet O’Hara, protagonista do clássico “E o Vento Levou”, em determinada cena se levanta com um punho cerrado e declara que nunca mais vai sentir fome de novo é natural imaginar que qualquer pessoa do mundo estará ao lado dela, por se solidarizar com todo sofrimento que a personagem passou.

O mesmo deve valer para Chris Gardner, interpretado por Will Smith em “A Procura da Felicidade”, ou a simpática doméstica Val, conduzida por Regina Cazé no brilhante “Que Horas Ela Volta” — tenho muito mais exemplos, mas tô com um medo danado aqui de estourar minha cota de spoilers. Por isso são construídos roteiros, ambientes, sons e personagens que representem trajetos com uma gama de infortúnios que nos fazem, quase que automaticamente, “torcer” para um desfecho de justiça que contemple de maneira positiva quem foi prejudicado na obra.

Pois é, pena que para casos como esses a vida não imita a arte. Talvez porque não acompanhamos de perto o dia a dia de um petroleiro que morre numa explosão negligente ou de uma criança que é soterrada numa tragédia anunciada, assim, este “difícil” exercício da abstração somado à falta de empatia a um humano distante nos afasta da indignação legítima e indispensável para o alcance da justiça.

Essa é uma das explicações mais plausíveis para fundamentar a falta de um debate honesto e frequente sobre causas e consequências, crias e criaturas, caças e caçadores, ou seja, quem é responsável ou não por desastres que ceifam a vida de homens e mulheres.

Só nesse ano de 2015, em território nacional, temos dois exemplos claros sobre isso: um já consolidado e outro que caminha para o mesmo desfecho. Tanto a tragédia da plataforma FPSO Cidade de São Mateus, que matou nove pessoas no Espírito Santo, quanto o soterramento no distrito de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, que deve acarretar na morte de dezenas, respectivamente, exemplificam situações que apresentam um silêncio hospitalar quando, na realidade, precisavam do barulho semelhante ao encontrado num campo de guerra.

E chega a assustar, realmente, se levarmos em conta o poder do tabu estabelecido que dificulta a cobrança verossímil dessas fatalidades. Num caso, temos um vazamento recorrente absurdamente ignorado pela empresa, que perseguiu um funcionário por tentar saná-lo, e em outro há um fato claro de ignorância a relatórios do ministério público e apelos de entidades que previram tal acontecimento.

E esse tabu tem nome, sobrenome, identidade, passaporte e até carteirinha de estudante (precisa falar que é falsa?): a busca do lucro irresponsável pelo capital. Um paradigma nefasto que está entranhado em todos os atores que deveriam o contrapor: justiça, mídia, legislativo, governos, partidos e afins.

É como se a estrutura social montada para proteger os cidadãos e cidadãs estivesse ajoelhada em milhos de ouro sem saber que cada gota de sangue derramada por essa articulação – que além de nos manter dignamente em pé nos diferencia de outros primatas – significa uma vida a menos que poderia ser mantida se tivéssemos o mínimo de consciência e compaixão para enxergar que, o capital oriundo do minério, do óleo ou do gás explorado e processado não pode nunca ser mais importante que seres vivos (o desastre ambiental daria outro artigo, diga-se de passagem) os quais compõem uma harmonia natural que faz da terra um planeta habitável.

Todavia, como diria Marighella, não temos tempo para sentir medo e alguma ação deve ser pensada, até mesmo porque, onde há pessoas deve haver esperança. E se o sistema aglutinado não aponta para a mudança desejada, urge algum tipo de ação revolucionária, ousada ou diferente, algo que possa contrapor essa política perversa que nos atropela, como um tsunami de lama, sentimentos, paixões, dores e emoções.

É por isso que para toda opressão do capital deve existir uma greve de sobrevivência, como a dos petroleiros nesse momento, ou então, para ser mais poético, todo patrão deveria equivaler a vários operários em construção.

Ademais, sem querer perder a linha de coerência desse texto, pode-se citar, também, que para todo fundamentalista deve haver uma “primavera das mulheres” (adorei esse nome!); todo desastre deve ser combatido com a voz de um estudante ou toda chacina deve encontrar as sobrancelhas juntas e o maxilar cerrado das minorias.

Se cada desastre com barragem derrubar lágrimas, se cada incêndio queimar a dor solidária, enfim, quando uma tragédia for o ponta pé inicial para o clímax que culminará na mudança de uma política desleal e nefasta, aí sim poderemos nos considerar parte de um mundo em equilíbrio, com atitudes e relações verdadeiramente éticas.

Até lá cabe a nós escolhermos de que lado estamos: seremos protagonistas ou coadjuvantes nessa necessidade escancarada de mudança que temos desenhada; assistiremos a esse cenário num streaming com o celular na mão ou nos envolveremos com ele, num telão a nossa frente, com olhos vidrados e cheios d’água.

Hoje temos não só a angústia, mas também o benefício dessa escolha. Afinal, estamos todos inseridos nesse quadro e vale ressaltar que se recusarmos o papel principal, poderemos virar um figurante a ser abandonado na primeira cena excluída.

Tadeu Porto é diretor do Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense (Sindipetro-NF)

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.