A República da escória e os 367 neopicaretas do Congresso

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

por Bajonas Teixeira de Brito Junior

Feliz como pinto no lixo, um Temer radiante apareceu no portal UOL, ali pelas 20:30 hs, em pose sorridente e levemente descontraída, em uma moldura sob a qual se lia: “Votação agrada Vice-Presidente. Temer aparece rindo ao acompanhar votos do impeachment pela TV”. Mais que óbvia a intenção da Folha de injetar algum carisma à expressão facial gelada, típica dos mordomos mais suspeitos, que tem sido a máscara constante do vice em sua carreira política.

A Folha-UOL, não custa lembrar, trouxe no dia 02 de abril como editorial, expressão da sua opinião política, um texto com o título Nem Dilma nem Temer.  Curiosamente, hoje, só duas semanas depois, essa opinião já se vê descartada como uma daquelas leviandades infantis fáceis de esquecer. Mas vale recordá-la porque ela é importante para compreender a sinuosidade da mídia no golpe:

A mesma consciência [de que a renúncia seria o melhor caminho] deveria ter Michel Temer (PMDB), que tampouco dispõe de suficiente apoio na sociedade. Dada a gravidade excepcional desta crise, seria uma bênção que o poder retornasse logo ao povo a fim de que ele investisse alguém da legitimidade requerida para promover reformas estruturais e tirar o país da estagnação.

A aparência da mídia tem se caracterizado por essas mutações camaleônicas, que se dizem e desdizem sem maiores escrúpulos de consequência. É uma permanente disposição a estar pronto para tudo, sem se curvar à ideia de que a linha reta é necessariamente o menor caminho entre dois pontos.

Seu pensador político, se ela tivesse que adotar algum, não seria provavelmente Hegel mas Millôr Fernandes quem ensinava que entre dois pontos a via mais curta é o atalho. E se Temer é o atalho para o poder, não há motivo para manter a respeito dele opiniões dogmáticas e inflexíveis. Opiniões rígidas são aliás a última coisa que o próprio Temer parece apreciar.

Nem ele, que conspirou abertamente contra a presidente, que o conduziu duas vezes à posição de vice, nem seu partido, que se fartou longamente no churrasco do poder nos anos das vacas gordas, são adeptos de opiniões políticas estáveis, de promessas e alianças assumidas.

São tão volúveis que não se sentem obrigados sequer à respeitar o corpo permanente de leis do país, isto é, a Constituição. Assim como o fascista Bolsonaro chutou alegremente o boneco do pixuleco no dia 13 em Brasília, pouco antes de sugerir fuzis contra os sem terra, Temer e seus comparsas chutaram a constituição para o passado, demolindo a arquitetura política que conferia ao poder as suas vertebras e regras mínimas. Agora, caso se firme o poder de Temer e Cunha, ele será necessariamente rastejante porque tornado invertebrado, sem pontos de apoios fora do toma-lá-da-cá mais voraz.

Gestos como esses, de violação explícita da Constituição, mostram que uma geração do mais genuíno lumpen político, incluindo criaturas como o pastor Feliciano – quem disse por esses dias, usando o tom de um débil mental de série americana, que “se Cunha é malvado, é o meu malvado preferido” –, galgou enfim a ribalta do poder. Essa República da escória parece que veio à luz para, não só não deixar pedra por pedra do edifício nacional que se estava construindo, mas não deixar também máscara sobre máscara do sistema político que tínhamos aprendido a chamar de Nova República.

Em primeiro lugar, a conspiração entre os maiores grupos da mídia, os empresários, os banqueiros e os latifundiários, dando asas (passageiras) ao Ministério Público Federal e, por meio dos vazamentos seletivos, convulsionando o setor idiotizado da classe média, revelou que a justiça no Brasil (o STF imerso até o pescoço), permanece uma justiça oligárquica sem ter superado em um palmo o dito já velho de um século: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Ou seja, cai aqui a máscara do nosso estado democrático de direito. Se já era desconfiança geral que ele não havia se aclimatado nem nas periferias, bastando conferir ai ação das milícias e da polícia militar, nem nas zonas rurais, em que impera ainda a impunidade dos fazendeiros, havia ao menos a ilusão de sua validade no cenário político formal. Essa ilusão não poderemos mais sustentar.O mote agora, acompanhando o anterior é “Bandido bom é bandido morto”.

Mas quem são os bandidos? São todos os que formaram a frente de resistência ao golpe: os artistas, os militantes dos movimentos sociais (o MST e o MTST, à frente), as mulheres, os estudantes, os intelectuais, os juízes pela democracia, os médicos e médicas populares, etc.

Ao se desmontar o Olimpo da justiça que imaginávamos habitar no STF, surgiram novas máscaras pavorosas que também hão de cair por terra. A de Gilmar Mendes, quando decidiu em mandado de segurança do PPS contra a posse de Lula em ação ajuizada pela advogada Marilda de Paula Silveira, casualmente sua funcionária no IDP, o Instituto Brasiliense de Direito Público. O que parece indicar um grave caso de maquinação e travestimento político. Curiosamente, situação muito semelhante a que ocorrera antes, anos atrás, quando outra parceira de Gilmar Mendes, sua ex-orientanda, a procuradora Roberta Kaufmann, formulou para o DEM uma ação contra a constitucionalidade das cotas. Nesse episódio também, o uso de máscaras parecia muito evidente.

E aqui há o baile dos pequenos mascarados que não podemos esquecer. Primeiro, o trio dos garotos do MBL, esse Movimento Brasil Livre que, em poucas semanas, cresceu de 458.256 curtidas na sua página do Facebook para  absurdos 1.084.726, em clara manobra de bombeamento de likes através de robôs. Façanha que mostra os bons Cunhas que esses garotos darão quando crescidos, e que mereceu, como reconhecimento do próprio Cunha, um passe-livre para o show do Impeachment.

Depois, temos os 376 membros do baixo clero e da câmara baixa, baixíssima no caso, que deram seus votos ao impeachment. Curiosamente, 99% deles declararam aos berros que votava pelo neto, pela neta, pelos filhos e amigos, pela sua cidadezinha ou seu vilarejo. Ou seja, por motivos meramente circunscritos à esfera dos interesses pessoais. Quase nenhum lembrou do pretexto que os levara ali: as pedaladas fiscais. De suas breves proclamações de voto, ficou a impressão de que não à-toa 150 deles estão sendo investigados por um leque de crimes variados.

Por fim, o insigne Cunha, o diretor do espetáculo no circo de pulgas, que conduziu os trabalhos fechando a primeira parte de um ciclo aberto por ele quando aceitou a denuncia contra Dilma. Se ele dispensa apresentações, sendo o mais cristalino tipo ideal de político que é a cara do Brasil golpista – inescrupuloso, cleptomaníaco, grotesco e violento –, da sua parte desmascara-se também um ditado que, desde a Colônia, tem conduzido a política oligárquica no Brasil: “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, não entende da arte.”

A dança das máscaras que vivemos no momento presente, é bom que se diga, decorre da dinâmica que nos trouxe ao processo do impeachment. Ao deixar de ser jurídica para tornar-se política, a Operação Lava Jato foi obrigada cada vez mais ao uso de máscaras para disfarçar os interesses que de fato moviam suas engrenagens. O humor involuntário dessa situação, que se abateu sobre a Lava Jato quase como justiça poética, a única que talvez nos reste, foi o recente desmonte da figura do Japonês da Federal. Ícone da  operação que passou a personificar, sendo a máscara mais vendida no último carnaval em São Paulo, o japonês acabou desmascarado em segunda instância: não passa de um policial corrupto, associado de contrabandistas de fronteira e já duas vezes condenado. O que não o impede de exercer a nobre função de policial federal.

O mais trágico dessa situação, que os neopicaretas que escalam os muros do poder nesse momento sequer compreendem, é que o desmonte na órbita política terá impacto devastadores sobre o campo social e político. No social, evidentemente, se processará a regressão do Brasil à situação de “país mais desigual do mundo”. Mesmo que se mantenha os programas sociais, com as nova constelação dos astros,  eles serão sangrados pelo regresso da corrupção vampiresca, como nos tempos da Sudam e da Sudene.

Do ponto de vista econômico, parece que nada ficará da situação muito promissora a que o país tinha chegado ao fim do segundo governo Lula. A crise econômica, que como se vê mais claramente a cada dia, tem origens muito mais políticas que estruturais, tem aparecido cada vez mais às agências internacionais, as de classificação de risco em primeiro lugar, como originada da incapacidade de entendimento interno. Leia-se: instabilidade política. Ora, essa chegou ao seu paroxismo ao lançar mão de medida mais drástica que a Constituição prevê para um presidente. Que poderia ser mais grave? Só a guerra civil.

Ao se permitirem tomar o poder pelo furto político, as elites brasileiras sinalizam ao exterior que não passam de fato daquilo que sempre foram, oligarcas retrógrados de uma república de bananas. A escória do mundo civilizado. Com isso, toda a sinergia que vinha articulando crescimento interno, modernização social, redução de desequilíbrios regionais, acesso à educação superior para milhões saídos das classes mais destituídas, será perdida. Em lugar de surpreender o mundo, o Brasil aparecerá como um grande blefe, e seu aceno de mudança, em crise desde 2015, será lida antes como farsa do que como fracasso. Isto é, como mais uma máscara que cai.

Não se trata apenas do desprestígio internacional, mas de uma reconfiguração que, de país que despontava para uma nova história, nos fará aparecer como reduto longínquo para a operação dos fundos abutres e dos piratas financeiros mais inescrupulosos. Se tratará sobretudo de uma reescritura da histórica recente brasileira, cujos diversos aparentes avanços serão entendidos como meras mascarada sob as quais, as velhas dinâmicas de dominação e autoritarismo, continuaram sempre a dar as cartas.

A insígnia sempre repetida da lógica histórica do país, a lógica de um disparate, será então a única coisa que se apresentará sem nenhuma máscara, naquela formulação que Caetano Veloso deu a ela há duas décadas: Aqui construção já é ruína.

Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas, e professor do departamento de comunicação social da UFES. Foi duas vezes vencedor do Concurso Nacional de Ensaios, organizado pelo Minc (2000 e 2001)

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