Sergio Buarque às avessas: Visão do Inferno

Análise Diária de Conjuntura – 04/07/2016

Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho

O golpe tem um lado bom.

Serve para enterrar, de uma vez por todas, essa aura de “paraíso”, de “éden”, que o Brasil vem arrastando há séculos, aqui e lá fora.

Sergio Buarque de Holanda escreveu um livro sobre o assunto: Visão do Paraíso, os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil.

A visão “paradisíaca” do Brasil contaminou profundamente nossa cultura e pode-se encontrá-la, inclusive, por trás da prepotência golpista.

O paraíso não é apenas um conceito positivo: ele pressupõe a inocência e a fragilidade de seus habitantes, que devem ser protegidos, de preferência por gente experiente, com malícia, que entenda o mundo.

A sem-cerimônia com a qual os golpistas assaltaram o poder no Brasil me lembra muito a condescendência sanguinária dos colonizadores portugueses, que escravizavam, espancavam e matavam índios, sob as bençãos da igreja católica, que fazia o papel de agência de propaganda da época.

Hoje, a mídia toma o papel da igreja, inclusive o de julgar e condenar moralmente os hereges.

A maneira como Michel Temer e sua gangue assaltou o poder se assemelha muito a uma conquista pela guerra – este é o aspecto mais sinistro do golpe.

Se se tratasse apenas de um impeachment trivial, baseado no crime de responsabilidade do presidente da república, a solução seria remover o presidente e substituí-lo, mantendo a estrutura política do governo, contudo, porque ela não apenas emergiu das urnas, como é fruto de um longo processo de debate e pactuação com as forças sociais.

Ao desestruturar tudo, de maneira truculenta, sem debate, sem conversa, Michel Temer promove uma ruptura muito mais clara e brutal do que já seria apenas com a remoção da presidenta.

Não só isso: Temer quer imprimir uma guinada radical no governo, promovendo mudanças permanentes, venda de patrimônio público, antes de passar pelo crivo do sufrágio universal.

Para cúmulo, inicia abertamente a perseguição à mídia que tende a lhe criticar, sob o pretexto de que ela “não é relevante para o debate público” – apesar de representar setores sociais que venceram quatro eleições presidenciais consecutivas.

Ora, aí estamos diante não apenas de um golpe, mas de um governo com forte aspiração autoritária.

Há um outro aspecto “edênico” na tomada de poder pelo grupo de Temer. Eles agiram como se aqui fosse realmente o Éden, onde até mesmo o poder político máximo pode ser colhido da árvore, sem trabalho, sem eleições, sem debates difíceis.

Para que fazer trabalho de base, como o PT fez durante décadas (e que depois abandonou, vergonhosamente, mas isso é outra história, sobre a qual falarei mais adiante, nesse mesmo post)?

Para que fazer campanha em comunidades pobres? Para que perder tempo no trabalho insano das campanhas eleitorais, se tudo pode ser resolvido com uma canetada do TCU e os votos de ocasião de parlamentares insuflados pela “opinião publicada”?

Não estou nem um pouco otimista sobre a possibilidade da Dilma voltar. Acho que as cartas já estão marcadas.

O jantar oferecido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, João Otávio Noronha, para o presidente Michel Temer, e que teve a participação de Aécio Neves, José Serra, Gilmar Mendes e Toffoli, deixa bem claro que o pacto golpista foi selado a ferro e fogo.

Entretanto, tudo isso tem um lado bom, como dizia no início do post: acabou-se a ilusão.

Nossa democracia não dá em árvore. Tem de ser cultivada, arada, irrigada, tratada, defendida o ano inteiro, para depois ser colhida, tudo isso em ciclos eternos. Não somos um paraíso.

Também não podemos nos comportar mais como inocentes. O PT no poder se comportou como os índios à chegada de Cabral (com todo o respeito aos índios, por favor!): deslumbrou-se com tudo; foi ingênuo; deixou-se tutelar; e alguns de seus membros se venderam por espelhinhos.

Repito aqui: é um clichê tolo dizer que Dilma caiu por conta de seus acertos, não por seus erros.

Ela caiu por conta de seus erros!

Essa autocrítica precisa ser feita em alto e bom som. A história de que “não é o momento” não tem sentido.

Esse é o momento, porque somente a autocrítica estenderá pontes em direção àqueles que se decepcionaram com o partido, e poderá atrai-los de volta.

Esses erros devem ser estendidos, naturalmente, a todo o campo, inclusive a mim.

Depois de 13 anos de governo, não se criou um maldito think tank progressista?

É inacreditável!

Qual o sentido em indicar para os tribunais superiores juízes autoritários, antidemocráticos, punitivistas, reacionários, e, por fim, golpistas?

Qual o sentido em aprovar leis punitivistas (delação premiada, organização criminosa, etc) sem discutir com os juristas que apoiam o seu partido, que poderiam alertar para a possibilidade do uso arbitrário dessas leis por uma burocracia partidarizada? Há toda uma literatura sobre isso!

Essas incoerências todas se voltaram diretamente contra o governo, de maneira rápida e brutal.

Dilma Rousseff, após as eleições de 2014, por que sumiu do mapa? Até hoje isso não foi respondido.

Os R$ 70 milhões dados a João Santana não pagaram, pelo jeito, um conselho final: o de que a disputa política não acaba após as eleições, mormente na conjuntura do Brasil naquele momento.

O céu estava carregado de nuvens escuras, trovões pareciam explodir o céu, relâmpagos assustadores riscavam o firmamento, e o governo federal não percebeu que iria chover?

Outro dia, Dilma disse numa entrevista que decidiu não abordar o golpe na Conferência da ONU para não prejudicar o Brasil e porque se tratava de um evento sobre meio ambiente. Ora, como assim? Denunciar um golpe que entregaria o país em mãos de golpistas desmatadores, matadores de índio, sem compromisso nenhum com o meio ambiente, não fazia parte da agenda pelo meio ambiente?

Dilma é uma mulher culta, mas às vezes se porta como se fosse completamente desprovida de criatividade: o discurso na ONU não poderia fazer alusões? Não poderia ao menos falar em democracia?

Voltando ao lado “bom” do golpe, ele nos força a amadurecer. Se quisermos consolidar uma democracia, teremos que lutar por um conjunto coerente e completo de mudanças estruturais. Não dá mais para avançarmos democraticamente sem reformas profundas, na mídia, na política, no Estado, na agricultura, em mobilidade urbana. Está tudo ligado.

Agora, é preciso desfazer algumas confusões.

O erro do PT não foi a “política de alianças” com o PMDB. Não nos deixemos cair na armadilha, depois de tudo que aconteceu, do principismo, do purismo, do radicalismo.

Essa será a bala de prata que terminará de matar o PT: o radicalismo.

As alianças com o PMDB e com outros partidos tinham que ser feitas. E a esquerda terá que voltar a celebrar alianças se ainda tiver projeto de poder.

Mas alianças tem de ser pensadas estrategicamente, inclusive medindo a opinião pública.

Alianças não podem ser feitas, além disso, sem o objetivo de transformar o aliado, o que somente acontece se houver uma pressão social inteligentemente costurada.

Numa aliança, você pode transformar seu aliado ou seu aliado pode lhe transformar. Se o seu aliado recebe apoio do grande capital, então você precisa construir uma rede de apoio social.

Também acho um tolo chauvinismo ideológico falar em guinada à esquerda, ou determinar que, doravante, alianças podem ser feitas somente com a esquerda.

Os erros de Dilma, a meu ver, não foram a sua falta de aliança com a esquerda, e sim uma visão política primária.

A estupidez, assim como o bom senso, é uma qualidade democrática: existe à esquerda e à direita.

Estava muito claro, desde o final de 2014, que uma política recessiva, naquele momento de baixíssima popularidade, debilitaria o governo, gerando mais instabilidade política, o que, por sua vez, ajudaria a baixar ainda mais a arrecadação. Ou seja, não era caso de pensar se havia uma solução à esquerda ou à direita: o governo precisava se fortalecer politicamente, até mesmo para levar adiante algum tipo de ajuste, e não o fez.

A direita aumenta déficit quando quer, e ponto final. O ajuste dela é uma mentira midiática, assim como a questão tributária. Ocorre às avessas: a direita aumenta gastos e eleva impostos. Quem corta despesas e reduz impostos, ao menos no Brasil, é sempre a esquerda. A direita reduz impostos apenas para os milionários, e sobrecarrega a classe média.

Ao governo Dilma cabia construir uma narrativa. E para isso precisava montar uma estrutura sofisticada de comunicação: um porta-voz, um think tank próprio, investir no canal de governo, empoderar as rede públicas de comunicação.

Dilma dá entrevistas diárias agora – depois do golpe. Mas não adianta muito correr para cá e para lá depois que o juiz apita o final da partida. Tem que jogar durante o jogo.

A esquerda petista, até hoje, parece perdida no meio do tiroteio. O discurso para as eleições de 2018 terá de ser feito, pelo partido, já este ano, nas eleições de outubro próximo.

O que está sendo discutido pelo partido?

Quais suas bandeiras?

“Não vai ter golpe?” Não adianta mais: o golpe já foi dado.

Mudança na economia? Ótimo, mas o eleitor se perguntará: por que Dilma não promoveu as mudanças?

Os ufanismos partidários sobre a ascensão social de tantos milhões de pessoas perderam força, por causa de sua repetição: além do mais, há um fator esteticamente feio na mensagem, uma certa cobrança implícita por gratidão que soa deselegante aos ouvidos dos brasileiros, quiçá até mesmo humilhante para milhões de cidadãos que gostariam de ter a dignidade (mesmo que parcialmente ilusória) de pensar que conseguiram superar a miséria e a pobreza com seu próprio esforço.

Ora, me parece evidente que não há outra saída para o PT, e para a esquerda em geral. Terá de falar de coisas que, a bem da verdade, deveria ter falado há muito tempo: energia solar, mobilidade urbana, cinturão agrícola, alta tecnologia, futuro!

Hoje o PT só fala em golpe: ok, é o assunto mais premente.

Só que as pessoas querem saber também como resolveremos os problemas de mobilidade urbana, agora que nossas grandes cidades se tornaram infernos sobre rodas.

Entendam: para vencer o golpe, será preciso conquistar o coração das pessoas. Para conquistar o coração das pessoas, não basta falar apenas em golpe, e sim oferecer sugestões, planos, estratégias.

Conversando com economistas ligados a Lula sobre a crise econômica, escuto de um deles que a solução seria lançar um plano qualquer para vender mais carro, ou seja, entupir nossas cidades ainda mais!

Tudo isso – inclusive essa falta de uma visão avançada sobre os problemas reais da cidade – levou ao golpe.

A esquerda organizada tem seus núcleos sindicais mais importantes em áreas como bancos, petróleo, autopeças, o que as leva a não se interessar por temas que estão fazendo a cabeça da classe média progressista: cultura de youtube (o que pode transformar a política, a propaganda eleitoral e a educação), agricultura orgânica (que pode gerar milhões de empregos no cinturão das grandes cidades) e mobilidade urbana (que pode reativar toda a indústria brasileira, se houvesse esforço para instalação de indústrias ferroviárias e subsidiárias em várias partes do país).

Com isso, a esquerda não faz mais a cabeça do povo, nem da classe média, nem da elite.

Daí a esquerda, sem ligações orgânicas com mais nenhuma atividade econômica, com sua base social esfacelada, perdendo apoio na classe média, e tendo aposentado há tempos qualquer presunção real (real, não retórica) de movimento de luta de classes, se torna uma espécie de religião partidária, semi-acadêmica, estudantil, a qual as pessoas se agarram com base em anseios abstratos, estéticos, por justiça social.

Neste sentido, o golpe veio bem a calhar, porque ajudou a intensificar o caráter místico das opções partidárias. Afinal, não se trata mais de defender o PT ou o governo e sim a democracia. Daí todos os erros e vícios do governo e do partido são postos de lado e vão todos à rua, agora finalmente com algo a dizer: não ao golpe.

Por outro lado, esse foi o erro fatal da oposição: o golpe.

A esquerda, porém, não poderá usar o golpe como bengala para sempre. Ela precisa construir, por fora da luta institucional contra o impeachment, uma outra luta, a luta milenar para melhorar as condições de vida dos trabalhadores.

E o que não pode ser realizado agora, porque o poder voltou às mãos da direita, precisa ser oferecido em termos de utopia. Não a utopia ideológica, que não se coaduna muito com a mentalidade ultra-pragmática dos dias atuais e, sobretudo, do eleitor: mas uma utopia em termos práticos, de mobilidade urbana, qualidade dos alimentos, educação e saúde públicas eficientes, informação democrática e plural, reforma humanista de todo o sistema penal.

Entretanto, como o PT já governou o país por 13 anos, ele precisará também fazer uma autocrítica inteligente, franca, humilde.

Não estou ouvindo Dilma falar, por exemplo, de informação democrática e plural. Me corrijam, por favor, se eu estiver enganado, porque não estou ouvindo. Apenas quando espremida por blogueiros, ela fala rapidamente de mídia, de má vontade. Ora, essa é uma questão central da política, ligada diretamente ao golpe. Todo mundo fala: Obama, Bush, Tony Blair, Putin, Chávez. Todos falam de mídia, porque só no Brasil não se pode falar?

Esse silêncio sobre questões centrais democráticas é o mesmo silêncio que levou ao impeachment e à situação horrível em que chegamos. Se nem o golpe faz Dilma estudar um pouco a questão da mídia, então realmente fica difícil ter esperança de reverter a situação.

O PT me parece ter entrado numa espécie de coma autoinduzido: dali não tem saído, é incrível, nenhuma novidade, nenhuma ideia original. Era para a legenda estar, a essa altura, articulando-se mundialmente, com seus parceiros na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia; e reconstruindo, ao menos teoricamente, a sua relação com o capital nacional. Um setor político que não constrói, de maneira transparente, republicana, nenhuma relação com o capital, só poderá persistir se assumir as rédeas, diretamente, numa revolução, dos meios de produção. E isso não vai acontecer, até porque não é a intenção de nossos partidos de esquerda

A esquerda então precisa escolher os setores com os quais pretende fechar alianças estratégicas, na agricultura, na indústria e nos serviços.

Me parece evidente que a criminalização e marginalização da esquerda visa empurrá-la para a armadilha do esquerdismo “anti-capital”, o que a faria, naturalmente, desaparecer.

A esquerda precisa discutir isso abertamente, sem medo, dignamente, sem falso esquerdismo.

A única novidade que sai do PT é a prisão semanal de um novo ex-dirigente, a quebra de sigilo de um novo telefone ou nova conta bancária do partido, o empastelamento de sua sede pela Polícia Federal. Já prenderam tantos caciques petistas que agora virou rotina prender petistas já presos. É uma maneira de continuar gerando manchetes.

O vácuo na política brasileira chegou a tal ponto que agora se faz uma defesa abstrata de “novas eleições”, sem que se aponte a razão pela qual isso interessaria ao povo brasileiro: a oposição já está no poder. O PT oferecerá algum projeto diferente? Por que não o implementou então a partir de 2014?

Só haveria sentido defender novas eleições se houvesse uma profunda autocrítica, feita não por Dilma ou Lula, mas por todo o núcleo golpeado, do governo e dos partidos (PT, PCdoB), assumindo humildemente os erros do passado, oferecendo uma nova plataforma de governo, moderna, ousada, criativa, a ser discutida com toda a sociedade brasileira.

O Brasil não é o paraíso na terra, mas é um país com enorme potencial, em todos os sentidos. O maior crime da imprensa brasileira é sua campanha diária, obsessiva, e politicamente interessada, para interditar nosso futuro e enterrar nossas esperanças.

Temos condições de superar todas as crises e voltar a emergir como uma grande nação, mas para isso precisamos voltar a sonhar.

Em política moderna, porém, os sonhos não aparecem nem se mantém espontaneamente: eles precisam ser criados, cultivados, defendidos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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