Slavoj Zizek: “ainda não há uma alternativa positiva de esquerda”

O filósofo esloveno critica a dificuldade da esquerda atual em propor alternativas ao capitalismo

por Miguel Martins, na Carta Capital

Em meio a reflexões e provocações, Slavoj Žižek reconhece a fama que carrega. “Veja, eu não sou um marxista arrogante”, diz o filósofo esloveno, após criticar o limitado alcance das mudanças promovidas pelos governos do PT no Brasil.

“Sei que não é muito popular defender essas ideias hoje em dia”, admite, ao se mostrar cético sobre o impacto das grandes manifestações de rua e das organizações horizontais de esquerda. “Alguns me consideram um comunista retrógrado”, lamenta, para em seguida classificar-se como pragmático.

Sua maior frustração reside na incapacidade de a esquerda atual propor uma saída global ao capitalismo. Lançado recentemente no Brasil pela editora Boitempo, o livro O Sujeito Incômodo: O Centro ausente da ontologia política, escrito em 1999, capta essa crescente insatisfação do filósofo com a fragmentação do campo progressista.

À época, Žižek sustentou que a proposta de uma transformação global da sociedade caminhava para dar lugar à afirmação de bandeiras particulares, entre elas as causas feminista, LGBT e étnica.

Em entrevista a CartaCapital, o filósofo revisita temas da obra ao criticar o apoio da esquerda radical britânica ao Brexit, analisa a ascensão de Bernie Sanders e de Donald Trump nos Estados Unidos e ironiza a proposta de reforma trabalhista de François Hollande na França. “Se o objetivo é uma política contra sindicatos e a legislação trabalhista, apenas um governo dito de esquerda pode impô-la.”

CartaCapital: Em seu livro, O Sujeito Incômodo, o senhor discorre sobre como a proposta de uma transformação global da sociedade tem dado lugar à defesa de subjetividades particulares no mundo pós-moderno. O senhor acha que os últimos 17 anos têm confirmado essa leitura?

Slavoj Žižek: Ainda não há uma alternativa positiva de esquerda. Sabemos que o capitalismo global é um problema, mas como devemos agir para reestruturar a sociedade global? Nisso a minha análise antiga ainda se sustenta.

Muitos dos meus amigos latino-americanos e europeus pensam que a forma de resistir ao capitalismo é por meio de tradições e Estados Nacionais. Na Europa, uma das linhas predominantes da esquerda radical também defende essas tradições, como no caso do Brexit no Reino Unido.

Eles afirmam que a União Europeia é uma organização em defesa do avanço do capital internacional e a única forma de salvar o Estado do Bem-Estar Social e até desenvolvê-lo é por meio da defesa de Estados Nacionais fortes, até mesmo de espécie nacionalista.

Há esquerdistas que falam na necessidade de um Socialismo Nacional, em lugar do Nacional Socialismo (Nazismo). Não acho que isso funcione, é uma catástrofe.

CC: Movimentos horizontais como o Syriza, na Grécia, e o Podemos, na Espanha, não são o caminho?

SŽ: Considero-me mais vertical e menos horizontal. O horizontalismo pode funcionar em nível local, mas está fadado a uma tragédia, como mostrou a chegada do Syriza ao poder na Grécia. A solução é pensar em formular novas intervenções estatais.

Uma vez debati com integrantes de organizações anarquistas que me falaram de sua intenção em viver em comunidades locais e de se organizar de forma autônoma. Mas disse a eles que isso só funciona se houver um grande Estado invisível, capaz de fornecer energia, água, um sistema de saúde, leis e ordem.

A esquerda não deve ter medo em redescobrir a força do Estado. Sei que não é muito popular defender essas ideias hoje em dia, mas vivemos um momento estático. Há alguns que se empolgam: “Olha só, 1 milhão de pessoas na Praça Tahrir, no Egito, foi divino, nós triunfamos”.

Eu não me importo com esse tipo de conquista. Em inglês, fala-se muito sobre a morning after (a manhã seguinte), após uma noite de bebedeira. A revolução não é o porre, a revolução está na ressaca do dia seguinte. Costumo fazer uma piada sobre aquele filme V de vingança.

Ele termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana? Alguns me classificam como um comunista retrógrado, mas na verdade sou um pragmático.

O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. Slajov Žižek. Boitempo, 432 págs., R$ 79

CC: Na América Latina, governos com viés de esquerda foram majoritários nas últimas décadas, mas essa tendência tem mudado com a eleição do conservador Mauricio Macri na Argentina, a fragilidade do governo de Nicolás Maduro na Venezuela e o processo de impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. Como o senhor avalia a situação política na região?

SŽ: Eu não tenho conhecimento profundo, mas te darei a minha impressão. Jamais houve um movimento revolucionário autêntico no continente. Os únicos regimes pelos quais nutria alguma simpatia era o Brasil de Lula e a Bolívia de Evo Morales.

Eu não posso julgar a corrupção no Brasil, mas as revelações recentes de que os defensores do impeachment de Dilma o fizeram para proteger seus esquemas mostram como se trata de um escândalo muito complexo. Mas por que o Brasil teve sucesso relativo nos últimos anos?

Pela adoção de um programa modesto de social-democracia. Não estou dizendo que isso é ruim, veja, não sou um marxista arrogante. Eles são moderados, não estão preocupados com grandes gestos simbólicos, e talvez esse seja o caminho possível hoje.

A tragédia brasileira não reside apenas no impeachment, mas no impacto da crise econômica mundial sobre a derrocada do projeto de Lula. Ainda assim, durante seus anos de governo, ele retirou muitos brasileiros da miséria.

Não deveríamos imaginar que ao elegermos um novo governo teremos grandes mudanças. Alterações globais dependem de uma grande crise econômica, ou ecológica, em um nível internacional.

CC: Na França, a reforma trabalhista proposta por François Hollande, do Partido Socialista, foi respondida com uma série de protestos sindicais. O senhor acha que os partidos de esquerda têm se tornado cada vez mais parecidos com as legendas conservadoras?

SŽ: Estou lentamente descobrindo uma lei quase geral. Se o objetivo é uma política neoliberal contra sindicatos e a legislação trabalhista, apenas um governo dito de esquerda pode impô-la.

Angela Merkel, a princípio conservadora, tem dado continuidade ao Estado de Bem-Estar Social na Alemanha. Essa é a grande ironia. Há alguns direitistas que acusam Merkel de ser uma comunista secreta, pois ela nasceu na Alemanha Oriental. É um paradoxo político muito interessante.

Há movimentos de esquerda que só uma grande força de direita consegue fazer, e vice-versa. Só Richard Nixon foi capaz de fazer a paz com a China. Se fosse um governo de esquerda, ele seria acusado de traição. Na França, só Charles de Gaulle foi capaz de dar independência à Argélia.

Logo, se o capital global exige intervir na legislação trabalhista, somente um presidente dito de esquerda pode fazer isso. 

CC: Como o senhor analisa a ascensão de representantes da extrema-direita como Donald Trump nos Estados Unidos?

SŽ: Eu não gosto desse foco no Trump. Ele é um fenômeno ambíguo. Por um lado, é abertamente racista, nojento, mas ele quase não fala sobre mudanças concretas. Para mim, o verdadeiro monstro era Ted Cruz, pré-candidato republicano.

A ascensão de Trump é uma situação perigosa, claro, mas devemos ter em conta que o mesmo caos responsável por sua popularidade também fortaleceu Bernie Sanders. Novas regras da política estão sendo escritas.

Anteriormente, apenas mencionar o socialismo nos Estados Unidos era um suicídio político. Sanders reabilitou o termo. O grande desafio da esquerda é não se deixar fascinar por esses novos inimigos fascistas, mas repensar suas posições e equívocos nesses tempos conturbados.

*Uma versão desta entrevista foi publicada originalmente na edição 908 de CartaCapital, com o título “O marxista incômodo”

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