O contra-ataque da História

(Foto: Mídia Ninja).

Análise Diária de Conjuntura – 20/07/2016

“Tentaram nos enterrar vivos, não sabiam que éramos sementes”.

Bela, destemida e do mundo. A advogada iraniana-americana Azadeh N. Shahshahani encerrou seu discurso com este velho dito dos movimentos sociais mexicanos.

Jurada do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, ela teve a oportunidade de ouvir os argumentos a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff e, assim como todos os outros jurados estrangeiros, formou a seguinte convicção: o Brasil sofreu um golpe de Estado, na forma de uma violência parlamentar, considerada ilegítima e inconstitucional, costurada por uma narrativa midiática interessada em promover um grande retrocesso social e político em nosso país.

Ela diria ainda mais uma frase.

Com uma voz incrivelmente forte, um olhar confiante, altivo, um olhar que o poeta Michel Temer qualificaria de “flamejante”, Shahshahani se dirigiu ao público e disse: keep up the struggle!

“Continuem na luta!”

O auditório veio abaixo com palmas, gritos e lágrimas.

Quer dizer, as lágrimas foram uma contribuição minha, um blogueiro de coração apertado, sentado num canto do auditório, profundamente comovido diante de uma mulher tão linda e corajosa, uma iraniana que chegou aos Estados Unidos com 15 anos, após ver seu país ser destruído por golpes e guerras, uma pessoa que facilmente poderia ter sucumbido ao egoísmo, ao desencanto, à melancolia, mas que viajava milhares de quilômetros para trazer aos movimentos sociais brasileiros um mensagem de força e solidariedade.

Keep up the struggle!

O Tribunal teve início na quarta-feira (19) à noite, com a leitura dos argumentos de defesa e acusação, prosseguiu no dia seguinte à tarde, com um discurso de cada jurado, encerrando com o veredicto proferido pelo presidente do tribunal, o jurista Juarez Tavares.

E o veredicto, reitere-se, foi: o Brasil foi vítima de um golpe de Estado, pois a presidenta Dilma não cometeu crime de responsabilidade.

O réu do tribunal era o próprio impeachment. Havia os advogados de acusação, que acusavam o impeachment de ser ilegal, ou seja, golpe. E havia os advogados de defesa, que defendiam a legalidade do impeachment.

A leitura dos argumentos em favor do impeachment, por advogados que simulavam concordar com a tese de que a presidenta cometeu crime de responsabilidade e que, portanto, deveria ser destituída, nos revelou a incrível pobreza das alegações finais dos senadores que pedem o impeachment.

É um relatório surreal, com acusações kafkianas. Na falta de substância legal, fala-se em “espírito da lei”, e se abusa de adjetivos desnecessários, como “dolo intenso”.

Há trechos positivamente ridículos: para inculpar Dilma por uma documentação assinada por subalternos, o relatório diz que Dilma Rousseff, presidente da república, e o então secretário do tesouro, Arno Augustin, eram praticamente a “mesma pessoa”.

Toda a farsa ganhou ares ainda mais circences, após os peritos do senado declararem que não há autoria de Dilma nas pedaladas e o Ministério Público Federal decidir que não houve nenhum crime.

Os três decretos assinados por Dilma eram documentos triviais que tramitaram por inúmeras instâncias burocráticas inferiores antes de chegar à presidenta, e de qualquer forma nem as pedaladas nem os decretos geraram nenhum gasto adicional que já não estivesse na meta fiscal e no orçamento aprovado.

Todas as jurisprudências, o próprio bom senso, foram estuprados, no afã desesperado de criminalizar singelos atos administrativos, não apenas feitos por todos os presidentes anteriores, mas até meados de 2015 então aprovados pelos tribunais de conta. Os parlamentares querem condenar Dilma com base em regras do TCU criadas após os supostos delitos acontecerem.

Enfim, não houve crime.

Vários jurados estrangeiros, constitucionalistas experientes, declararam que o impeachment não deveria sequer existir na Constituição Brasileira, pois dá margem a todo o tipo de manipulação e conspiração elitista para burlar o sufrágio universal e enfraquecer a soberania popular. O que deveria existir, dizem eles, é um referendo revogatório, permitindo que o próprio povo, e apenas o povo, remova o presidente de seu cargo, através de consulta ao mesmo povo que o elegeu.

Todos os jurados constataram que o golpe no Brasil é uma ação particularmente brutal e antidemocrática, mas que não acontece apenas aqui; na verdade, o golpe faz parte de uma luta mundial entre capital e trabalho, a qual, infelizmente, está sendo vencida pelo primeiro, com resultados trágicos em termos de perda de direitos, garantias e leis, em benefício do capital selvagem e especulativo. Conforme o presidente interino já deixou bem claro nesses últimos meses, em que a sua condição provisória não pareceu lhe constranger, o golpe veio para eliminar direitos e recolocar o Brasil em condição subalterna em relação aos Estados Unidos.

A participação dos grandes meios de comunicação no golpe, através da construção de narrativas que justifiquem todo o tipo de violências contra os povos oprimidos, também foi bastante mencionada pelos jurados.

A intervenção de Marcia Tiburi, filósofa, escritora e feminista, denunciando a violência e a misoginia inerentes ao impeachment, foi um dos momentos mais emocionantes – e dolorosos – do evento.

A misoginia, racismo e elitismo do governo golpista que assaltou o poder ficou evidente com o ministério 100% masculino, branco e rico, montado imediatamente após o afastamento da presidenta.

Tiburi faz suas palavras sangrarem. É um discurso dilacerado, cheio de dor, tristeza e desespero, e por isso mesmo talvez tenha sido a fala mais autêntica de todo o tribunal.

A democracia, essa frágil, jovem e bela mulher, foi estuprada por uma pluto-cleptocracia satânica e maldita.

Apesar do otimismo um pouco forçado do senador Lindberg Farias, que disse ao final do evento que “ainda não desistiu”, e que ainda tem esperanças de reverter o impeachment, e do desafio lançado pelo deputado federal Wadih Damous ao STF, de que a instituição, após entregar Olga aos nazistas e chancelar a ditadura, terá agora a oportunidade de limpar seu nome na história, apenas os militantes mais ingênuos acreditam numa reviravolta positiva no senado.

Os militantes mais experientes sabem que apenas as ruas podem mudar o jogo, mas entendem igualmente que a força atual do golpe está justamente numa associação entre uma brutal manipulação promovida pelos grandes grupos de mídia, de um lado, e a violência institucional promovida pelas castas burocráticas, em especial do judiciário, de outro.

A grande mídia ajuda a segurar as ruas, dando o golpe por baixo, enquanto as castas rasgam leis, jurisprudência e garantias, para dar o golpe por cima.

No entanto, num ponto, todos concordam, mesmo os mais pessimistas: a História julgará duramente os golpistas.

O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil é um movimento importante neste sentido, assim como é, por exemplo, o engajamento antigolpe de setores prestigiados do jornalismo internacional, do qual Glenn Greenwald é o exemplo mais brilhante.

Os discursos proferidos no teatro Casa Grande, cuja íntegra e trechos editados, deverão ser disponibilizados em breve (havia inclusive jovens cineastas promissores registrando o evento), já nasceram com a marca dolorida e trágica da História.

O golpe no Brasil serviu para deixar bem claro quem é quem. Quem se lembrará, hoje, dos nomes que apoiaram a derrubada de João Gourlart?

Os próprios golpistas não escondem seu maior medo, sua principal fraqueza. Essa é a razão de ser de projetos como “escola sem partido”: medo do debate político.

Afinal, eles podem muito. Podem manipular a opinião pública. Podem criar um enorme exército de zumbis, que vai às ruas protestar contra a corrupção e favorecer um golpe que leva ao poder a fina flor da corrupção.

Não podem, porém, controlar o julgamento da História.

No golpe de 64, demorou alguns anos antes de começarmos a mostrar ao mundo que a democracia estava sendo violada. Não nos esqueçamos que os editoriais dos jornalões, os mesmos jornalões que defendem o golpe hoje, diziam, no dia seguinte ao golpe de 64, que a democracia estava sendo “restaurada”.

Agora estamos sendo bem mais rápidos. E isso não é um fenômeno abstrato, mas um fato político de primeira grandeza, porque é desse julgamento que nasce o próprio Ser da História.

Quando esse julgamento estiver consolidado, ou seja, quando a manipulação da mídia e a conspiração das castas burocráticas forem desmascaradas, o que já é um processo em curso, teremos o caminho pavimentado para uma nova era de grandes vitórias políticas.

E não cometeremos os mesmos erros: agora entendemos a função estratégica de uma comunicação livre e democrática, e a necessidade de democratizar o acesso às funções de Estado, promovendo não apenas uma reforma política, mas também profundas transformações no Judiciário e no Ministério Público, que não podem ficar mais sob controle da plutocracia.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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