Caso Adlène Hicheur: Quando um cientista é usado como um peão no jogo do terror

Físico franco-argelino foi ‘deportado’ sumariamente pelo governo interino do Brasil, sem direito a recorrer da decisão, por seu passado na França; agora, em solo francês, se encontra em prisão domiciliar por ter sido ‘deportado’ do Brasil

por Florência Costa e Shobhan Saxena no Opera Mundi

Em fevereiro, apenas três meses após um ataque terrorista em Paris – em 13 de novembro de 2015 –, a organização Human Rights Watch (HRW) divulgou um relatório no qual revelava que o governo francês realizava “incursões abusivas e determinava prisões domiciliares discriminatórias contra pessoas muçulmanas sob o seu novo e abrangente estado de emergência.”

Um dia depois do massacre que deixou 130 pessoas mortas, a França foi colocada sob emergência pelo presidente François Hollande com o objetivo de “prevenir novos ataques”. Mas, segundo o relatório, os poderes da emergência “criaram dificuldades econômicas, estigmatizaram aqueles que foram atingidos pela lei e traumatizaram crianças pertencentes às minorias do país” – em sua maioria, muçulmanos das ex-colônias francesas.

A HRW, sediada em Nova York, não foi a única organização ocidental a expor os abusos do governo francês contra pessoas muçulmanas no país. Um relatório da Anistia Internacional, publicado na mesma semana, afirmava que “centenas de pessoas estão traumatizadas” após a França ter colocado “entre 350 a 400 pessoas em prisão domiciliar”. No entanto, haviam sido abertas somente “cinco investigações relacionadas a terrorismo”.

Apesar destes relatórios de dois dos principais grupos de direitos humanos do mundo, apenas algumas organizações midiáticas se deram ao trabalho de investigar como os muçulmanos na França estão vivendo sob o estado de emergência. Uma reportagem da emissora Al Jazeera afirmou que a polícia impôs “restrições tão severas aos movimentos das pessoas que elas perderam empregos, renda e sofrem fisicamente”. Um artigo da revista norte-americana Time revelou como o poder antiterrorismo “permite à polícia obter de funcionários municipais mandados de busca baseados em pouca informação, em lugar de pedi-los a um juiz justificando os pedidos com alegações específicas”. Desde novembro de 2015 a França está em alerta máximo – e sob um estado de emergência em que a pessoa pode ser encarcerada ou colocada em prisão domiciliar com base em suspeitas.

O físico argelino Adlène Hicheur, que até o dia 15 de julho trabalhava como professor visitante na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), já viu este filme. Em 2009, ele trabalhava como físico de partículas em um laboratório suíço para o CERN (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear) quando foi preso e jogado em uma prisão por dois anos e meio, após ter sido acusado de associação com um terrorista da Al Qaeda em chats pela internet.

Sua prisão, sete anos atrás, causou sensação global. “Cientista do Big Bang acusado de laços com o terror”, dizia uma manchete da época. Hicheur, que tem consistentemente negado qualquer ligação com terroristas, disse em uma entrevista exclusiva aos autores desta reportagem, em janeiro deste ano, que paga preço alto por ser um muçulmano com alto nível de educação na França. “As pessoas não entendem o que significa ser muçulmano ou migrante na França nestes dias. Se você é um muçulmano educado e tem sucesso eles te derrubam. Eu fui exibido como um exemplo de terrorista bem-educado, auto-radicalizado e que usa a internet. Eles querem me punir por minhas opiniões políticas”, disse Hicheur.

Este foi um caso controverso em que ele contou com o apoio de muitos cientistas renomados e a maioria de seus colegas. Ele foi libertado em 2012 sem dever mais nada à Justiça da França. Mas, antes de sair, ouviu de seus algozes franceses a promessa de que nunca mais voltaria à sua vida normal de cientista.

Hicheur decidiu mudar-se para o Brasil para “reconstruir sua vida e seguir a sua paixão: a Física”. Ele chegou aqui em 2013 como professor visitante no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) com a recomendação de cientistas do experimento LHCb do CERN e do diretor do EPFL, sigla em francês da Escola Politécnica Federal de Lausanne, onde ele trabalhava antes de sua detenção. Após um ano no CBPF, ele passou em um exame para professor visitante da UFRJ. Sua vida voltava aos trilhos. Assim ele pensava.

Conexão francesa

Em janeiro, Hicheur foi alvo de uma campanha persecutória por parte da mídia tradicional brasileira, apontado como “um terrorista” no Brasil pela revista Época, embora ele não tivesse mais nenhuma pendência jurídica na França. Tampouco havia qualquer problema com ele no Brasil, como confirmava declaração que a própria Polícia Federal brasileira havia entregado ao físico.

Apenas três semanas antes do início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o governo brasileiro o deportou sumariamente para a França em nome do “interesse nacional”, sem dar a ele o direito de recorrer da decisão. O cientista, que ainda está associado ao CERN e à UFRJ diz que o Brasil o deportou ilegalmente. Ele chegou a ser escoltado por três policiais federais dentro de um avião da Tap para Paris, com escala em Lisboa. A escolta, no entanto, é  um procedimento que não se aplica a casos de deportações. Cientistas brasileiros que conhecem Hicheur lembraram dos famosos sequestros cometidos pelas ditaduras militares sul-americanas durante a Operação Condor.

Hicheur está agora na casa dos pais em Vienne, uma histórica cidade perto de Lyon e a 500 km de Paris, na beira do Rio Rhône. Mas a beleza do lugar não faz diferença neste momento. Ele vive sob vigilância constante, obrigado a comparecer a uma delegacia três vezes ao dia (9h, 14h e 19h) e proibido de sair de casa depois das 20h e até 6h. Não pode ultrapassar os limites de sua cidade. “Nem posso visitar meu irmão que mora aqui do lado de Vienne”, lamentou em uma das várias entrevistas concedidas a esta reportagem por Skype.

Hicheur passa a maior parte de seu tempo tentando entender a armadilha que foi preparada para ele neste processo “de me trazer deportado ilegalmente do Brasil para a França”. O cientista conta que foi vítima de uma operação que o forçou a deixar repentinamente seu apartamento no Rio de Janeiro, entrar em um carro da PF e seguir para o aeroporto sem que tivesse o direito de recorrer, embora sua situação no Brasil estivesse regular. Ele foi entregue pelo governo brasileiro à França, país onde poderia sofrer restrição de sua liberdade (como aconteceu), sem a permissão de uma autoridade judicial.

Hicheur conta que foi forçado a ir para a França contra a sua vontade, acompanhado dentro do avião por três policiais federais, como prova publicação no próprio Diário Oficial da União do dia 21 de julho de 2016. Na publicação constam os nomes dos delegados da PF Viviane de Souza Freitas e Camilo Graziani Caetano Paes de Almeida, além do agente Geraldo Joaquim Rodrigues, lotados na Polícia Federal do Rio de Janeiro. O Ministério da Justiça anuncia ali o afastamento do país destes três servidores no período de 15 a 19 de julho, “inclusive trânsito, com ônus” (ou seja, pago pelo erário público), com o objetivo de “proceder à escolta policial para deportação de Adlene Hicheur, até Paris, França”.

“Como explicar a escolta dos policiais dentro do avião?”, questionou. “Foi uma espécie de ‘entrega ilegal’, porque na deportação a PF bota o estrangeiro no avião e basta. Nesse caso, três policiais me escoltaram até Paris para acertar a entrega aos franceses”, protestou. Neste momento, surgem em sua memória as cenas de um filme do absurdo: o dia em que policiais federais bateram na porta de seu apartamento na Tijuca para obrigá-lo a ir para o aeroporto.

“Eu estava sentado em minha casa, participando de uma videoconferência na qual fazíamos a leitura de um artigo acadêmico que preparei recentemente. Eu interrompi o trabalho assim que ouvi as batidas na porta. Um agente da PF me disse que na quarta-feira da semana seguinte (dia 20 de julho), eu deveria ir à polícia e que uma notificação havia sido deixada na caixa de correio do meu prédio com o horário em que eu deveria comparecer”. Foi uma espécie de “pegadinha”.

Logo que Hicheur desceu para abrir sua caixa de correio, viu um grupo de policiais dentro e fora do prédio. Um deles se aproximou e perguntou: “O senhor já foi informado sobre a ordem de sua deportação?”. Hicheur respondeu que isso era impossível porque sua situação no Brasil era regular. Um dos policiais então explicou: “É uma decisão política vinda diretamente do Ministério da Justiça”. Deram a ele uma hora para fazer a mala. “Deixei meu apartamento lá, como estava, bagunçado. Não tive tempo de me organizar para deixar o país, como fechar conta no banco, me despedir das pessoas, nada.”

Segundo declaração do governo brasileiro, a “deportação sumária” é uma medida extraordinária adotada quando “o interesse nacional exige a retirada imediata de um indivíduo devido à inconveniência de sua presença no país”. Mas a ordem de deportação assinada pelo ministro da Justiça do governo interino brasileiro, Alexandre de Moraes, foi descrita por especialistas como “arbitrária, cheia de ilegalidades, uma expulsão ilegal disfarçada de deportação sem o direito de defesa”.

Vanessa Berner, professora de Direito da UFRJ e coordenadora do Laboratório dos Direitos Humanos da universidade, diz que o uso da palavra “deportação”, no caso de Hicheur, não é correta. A deportação “é feita para o país de origem ou de procedência do estrangeiro, ou para outro que consinta recebê-lo. Só poderá ocorrer se o estrangeiro não se retirar do Brasil voluntariamente depois de ser regularmente notificado”, explicou ela. Mesmo assim, ressaltou Berner, a deportação somente ocorrerá em casos de entrada ou estadia irregular do estrangeiro, o que não era o caso de Hicheur. Além disso, segundo a especialista, o estrangeiro não poderia ser devolvido para onde haja ameaça a sua vida ou sua liberdade por motivos de raça, nacionalidade, religião ou opinião política, de acordo com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

“O caso do professor Adlène Hicheur apresenta peculiaridades porque ele estava com um processo de renovação de visto em curso, com a concordância da UFRJ para continuar exercendo suas atividades de pesquisa no país. Não havia indícios de ser perigoso ou indesejável para o país para justificar uma expulsão, como ficou evidente que aconteceu. A deportação só se efetiva quando o estrangeiro, depois de notificado, se nega a deixar voluntariamente o país. Neste caso, a deportação se transforma em expulsão a critério exclusivamente do Presidente da República. Quanto aos procedimentos, ele não foi notificado com antecedência. Foi levado para oitiva na Polícia Federal e enviado de volta à França no mesmo dia. Além disso, ele expressou claramente que não queria ir para a França, mas para a Argélia, por ser também cidadão daquele país”, afirmou Berner.

A questão a ser respondida, segundo a jurista, é: em que categoria se enquadra o caso do professor Hicheur? “Ele foi ilegalmente expulso do país, com cometimento de diversas arbitrariedades sem fundamento jurídico claro por parte das autoridades brasileiras. Diante dessas irregularidades, entendo que o professor pode recorrer ao Judiciário contra os atos arbitrários cometidos pelo Poder Executivo e pela Polícia Federal visando retornar ao Brasil”, afirmou a professora de Direito.

De fato, Hicheur pediu aos policiais para não ser enviado à França. Para ele, estava claro que isso o colocaria em perigo e prejudicaria a sua liberdade devido ao estado de emergência no país.  “Eu pedi para me colocarem em um avião para a Argélia. Meu visto brasileiro foi concedido na embaixada brasileira em Montevidéu (Uruguai) e em meu passaporte argelino. Então foi pior do que uma deportação ilegal. Foi uma entrega ilegal à França”, disse Hicheur.

No aeroporto internacional do Rio de Janeiro, Hicheur não foi tratado como alguém que estava sendo deportado, mas como um suspeito que estava sendo enviado a outro país a pedidos. “Eu apenas descobri o meu destino final cerca de 30 minutos antes de ser levado de carro diretamente para a escada do avião”, contou o professor da UFRJ.

Os colegas brasileiros de Hicheur, que estavam presentes no aeroporto do Rio, confirmaram que ele foi tratado como se estivesse sendo “entregue” pelo Brasil à França. “Eu fiquei chocado. Foi uma prática de extradição ilegal, sem que ele tivesse direito a recorrer”, contou Ignacio Bediaga, presidente da Rede Nacional de Física de Altas Energias, que estava no aeroporto, assim como o reitor da UFRJ, Roberto Leher, e da vice-reitora, Denise Nascimento.

Um peão no jogo

No dia 15 de julho, a PF disse a Hicheur que a deportação era uma “decisão política”. Mas uma nota do Ministério da Justiça distribuída para a imprensa diz que a decisão foi baseada em uma recomendação da Polícia Federal, que teria indeferido seu pedido de extensão de visto de trabalho. Mas este pedido continha um erro burocrático e havia sido substituído por outro, que ainda estava sob análise no Ministério do Trabalho quando ele foi obrigado a sair do país. Hicheur tinha em mãos o protocolo deste pedido, o que tornava regular sua situação no país. Enviamos um email ao Ministério da Justiça questionando a forma como o físico foi forçado a deixar o Brasil e levado para a França, mas a resposta se limitou a uma nota em que reitera a suposta “inconveniência ao interesse nacional” da presença de Hicheur no país.

“No aeroporto eles tentaram em vão me fazer assinar uma declaração pela qual eu aceitaria que estava ilegal no Brasil, o que é um absurdo. Claro que não assinei isso”, contou. “Havia um processo válido de prorrogação de visto em andamento”, disse. “Tanto eu estava legal no país que a PF havia me informado dias antes que eu estava legal com o protocolo em mãos.”

Vários outros sinais sugeriam que o Brasil estava com pressa de entregar Hicheur aos franceses. No aeroporto, naquela sexta-feira 15, a PF deu informação errada ao advogado do Sindicato dos Professores da UFRJ que procurava recorrer da decisão do ministro da Justiça. A PF informou que o avião havia saído às 22h, antes do horário previsto. Não era verdade. “O avião saiu às 23h”, contou Hicheur. Os advogados entraram com um pedido de habeas corpus no STJ (Supremo Tribunal de Justiça) para suspender a deportação sumária, mas este pedido não obteve resposta até hoje. No pedido, os advogados anexaram um precedente de um cidadão britânico que teve pedido de deportação com um prazo para deixar o país em três dias. Seus advogados entraram com um habeas corpus para anular a decisão e este foi concedido. No caso de Hicheur, ele foi contatado à tarde e foi obrigado a deixar o país de noite, após ter ficado incomunicável por um período dentro de uma sala do aeroporto internacional do Rio.

Pessoas que estavam com Hicheur no aeroporto ouviram um policial comentar com outro sobre o físico argelino: “é aquele que a França havia pedido”. Dentro do avião, o físico ouviu um dos policiais brasileiros que o acompanhava contar ao colega que era muito próximo da França e que tinha recebido treinamento lá.

O medo tornou-se realidade assim que Hicheur chegou a Paris. A polícia francesa foi até o avião retirá-lo. Um primeiro oficial da imigração perguntou a Hicheur porque ele havia sido deportado do Brasil. Logo depois, outro oficial o informou que ele iria ser colocado em um regime de prisão domiciliar devido ao estado de emergência no país.

“Todos os meus documentos foram tomados. Tenho apenas uma carteira de identidade temporária”, afirmou. Poucos dias depois de chegar, Hicheur foi visitado por um colega cientista italiano que fez questão de acompanhá-lo à delegacia. “Os policiais daqui, que é uma cidade pequena, também não entendem porque estou em prisão domiciliar. Eles conhecem minha família há 30 anos”, comentou.

“Agora ficou claro que a campanha midiática fascista que fizeram em janeiro no Brasil contra mim era para preparar o terreno para mais violência e injustiça”, observou. A França está em pânico, mas pessoas como Hicheur – muçulmanas que vivem na mira das agências de segurança – também vivem em uma atmosfera de terror.“Há um sentimento de medo no ar. Todo mundo está amedrontado. Nunca vi isso antes aqui”, contou desde Vienne. “O fato de que você pode ser posto em prisão domiciliar a qualquer momento, ou simplesmente preso pela polícia, é uma situação extremamente tensa. É um sentimento terrível perder a sua liberdade por motivo nenhum”, afirmou.

A polícia brasileira expulsou Hicheur do país – sem motivos – e a França o colocou em uma espécie de prisão domiciliar em Vienne – de novo sem motivos. Mas o mundo científico que o cerca continua a admirar o seu trabalho e a contribuição que ele deu à física de partículas no Brasil.

Durante sua estadia no Rio de Janeiro, Hicheur impressionou muitos colegas com sua energia, disposição e competência. Nos últimos dias, Hicheur, que continua colaborando para o CERN e para a UFRJ, trabalhava em seu segundo artigo acadêmico em seis meses. Em um artigo que enviou recentemente para a revista acadêmica Physical Review Letters (PRL), ele escreveu sobre uma pesquisa que desenvolveu na UFRJ (como co-orientador de uma tese de mestrado) e umadescoberta feita durante o processo de desintegração de uma rara partícula subatômica, a “Bc”.

Seus colegas expressaram solidariedade a Hicheur em uma carta assinada por mais de 100 físicos brasileiros, incluindo Ronald Cintra Shellard, diretor do CBPF, e Sergio Resende,ex-ministro da Ciência e Tecnologia. “Manifestamos nossa total solidariedade ao professor Hicheur e nossa extrema preocupação com a arbitrariedade do processo de deportação, uma vez que este foi realizado fora das condições previstas na lei e sem apresentação de qualquer justificativa clara, nem ao próprio interessado, nem à UFRJ, instituição com a qual Hicheur tem um contrato válido e aprovado nos seus diversos colegiados.”

Contexto olímpico

A “deportação” de Hicheur do Brasil se deu em um contexto muito específico: os Jogos Olímpicos no Rio. A nova lei antiterrorismo, aprovada no Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rousseff antes de seu afastamento, entrou em cena. Amplamente criticada por grupos de direitos humanos, a nova legislação permite que uma pessoa acusada de cometer ou planejar crimes como danos ao patrimônio público ou privado seja enquadrada na lei como terrorista.

O Brasil adotou esta lei sob a pressão de outros países. Durante os debates sobre o então projeto de lei, o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy e outros integrantes do governo Dilma disseram que a legislação era necessária para que o Brasil se adaptasse às normas estabelecidas pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI-FATF), uma organização intergovernamental fundada pelo G-7. Eles argumentaram que rejeitar a lei colocaria em risco futuros investimentos estrangeiros no Brasil.

Raul Jungman, ministro da Defesa do governo interino liderado por Michel Temer, afirmou no dia 22 de julho que a lei tinha sido aprovada sob pressão estrangeira. De outra forma, segundo ele, o Brasil não sediaria as Olimpíadas. Para completar, seu colega Alexandre de Moraes, ministro da Justiça, protagonizou a perseguição e prisão de 12 suspeitos de terrorismo que estariam planejando uma ação no país, segundo ele. Logo depois, Moraes anunciou que “os focos de terror” haviam sido eliminados. Ele incluiu nestes “focos” o físico franco-argelino.

Neste jogo global, o Brasil começa a participar como coadjuvante em uma controversa estratégia antiterror criticada pelas principais entidades internacionais em defesa dos direitos humanos. A Argélia – país de origem de Hicheur – também teve seu papel ao não se pronunciar sobre a questão. A reportagem contatou a Embaixada da Argélia em Brasília para perguntar se o país protestaria contra o que aconteceu com o cidadão argelino. Um funcionário disse que Hicheur não estava “registrado” oficialmente na embaixada. “O senhor Hicheur não está registrado no serviço consular da Embaixada da Argélia no Brasil e não teve contato com nossa embaixada durante sua estadia no Brasil”, disse uma nota enviada à reportagem por e-mail. “Isso não é verdade”, disse Hicheur. Ele nos enviou cópia de um documento oficial que confirma seu registro como cidadão argelino na embaixada do país.

A resposta da Embaixada argelina evidencia um jogo triangular que resultou em na “deportação escoltada” de Hicheur do Brasil para a França. Hicheur entrou no Brasil com o visto carimbado no passaporte argelino e deixou o país “deportado”, mas com um carimbo normal de saída no passaporte francês. Como uma peça de uma trama kafkiana, Hicheur tem dois passaportes, mas seus documentos se assemelham aos de uma pessoa sem Estado. Ele tinha visto de trabalho no Brasil e seu contrato com a UFRJ havia sido renovado por mais um ano (até julho de 2017), mas mesmo assim ele foi enviado à força de volta à França.

No país europeu, Hicheur vive sob o medo de ser alvo de mais violações de direitos humanos. Foi “deportado” do Brasil por seu passado na França e agora, em solo francês, é tratado com suspeição por ter sido “deportado” do Brasil. “Essa é a prova de que todo o caso foi arquitetado com o objetivo de me atingir. É para acabar com o meu futuro”, acredita Hicheur.

“Eu me dediquei completamente no Brasil a honrar todos os meus compromissos. Fiz planos para criar cursos novos sobre desenvolvimento sustentável, novas energias e tratamento de câncer usando feixes de prótons e íons de carbono”, diz. “E veja a forma como fui tratado. Todos os meus colegas são testemunhas do meu engajamento entusiasmado na construção de algo importante no Brasil.”

Enquanto conta o que planejava fazer no Brasil, uma frase martela sua cabeça. Segundo Hicheur, no caminho da Tijuca para o Galeão, um dos policiais federais lhe disse: “Eu não concordo com o que estão fazendo com você. Eu sei que você tem um trabalho importante em nosso país. Mas estamos apenas cumprindo ordens de cima”.

*Florência Costa e Shobhan Saxena são jornalistas independentes baseados em São Paulo.

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