Espiando o poder – Sai o japonês, entra o lenhador e segue o circo até o objetivo principal

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Espiando o poder: análise diária da grande imprensa

Foto: Michael Melo/AP

Por Luis Edmundo Araujo, colunista do Cafezinho

Ao contrário do que se viu nas prisões e conduções coercitivas de políticos do PT, não há algemas nem policiais fortemente armados a ilustrar a manchete óbvia de hoje da grande mídia. Preso finalmente, com o atraso necessário à consumação do golpe, Eduardo Cunha tem a mão livre pra levá-la à boca como quem pensa algo, matutando, enquanto caminha pra embarcar no avião que o levou de Brasília a Curitiba. Isso nas capas do Globo e do Estado, porque na Folha de São Paulo os braços de Cunha estão soltos para acompanhar o balanço da caminhada no hangar da Polícia Federal, ao lado do mais novo personagem do circo armado, cronologicamente pensado da operação Lava Jato. Sai o “Japonês”, o policial federal Newton Ishii, que chegou a ser preso por facilitar contrabando e hoje anda por aí de tornozeleira eletrônica. Entra o “Lenhador”, o agente Lucas Valença, que escoltou Cunha até o avião e foi citado na primeira página do Estadão, com chamada sobre os “memes para o ‘lenhador’ da Federal” na internet. De resto, como esperado, a imprensa familiar exalta a “imparcialidade” do juiz Sergio Moro e insinua, nas entrelinhas de seus colunistas, o objetivo final da prisão mais que atrasada, que só o Estadão mostra claro na capa, ainda que no menor tamanho possível, na chamada para o editorial principal do jornal, cujo título é “Lula quer desmoralizar o Brasil”.

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Embaixo da manchete em que “Cunha é preso, mas não sai de cena”, da foto de André Coelho e do subtítulo a exaltar o mocinho da história, dizendo que o ex-presidente da Câmara foi “chamado por Moro de criminoso em série”, o Globo escala dez colunistas na capa. “A crença na Justiça reacende”, clama Jorge Bastos Moreno, a levantar a bandeira da propalada imparcialidade, que Ricardo Noblat reforça mirando só no PMDB, ao dizer que “prisão acelera batimentos cardíacos da República”. “Uma eventual delação de Cunha poderá atingir gravemente o governo. Cunha conhece os mais recônditos segredos do PMDB”, afirma o colunista. E se o título da coluna de José Casado, “Contagem regressiva”, pode até ser sugestivo, o recado principal fica mesmo com Merval Pereira.

“Uma prisão exemplar” é o título da coluna de hoje em que Merval começa ressaltando a antecipação da volta do presidente Michel Temer do Japão e a declaração do presidente do Senado, Renan Calheiros, que “respondeu assim a uma pergunta: “Nem é bom comentar”.” A prisão de Cunha tem, de fato, potencial de bomba-relógio para o PMDB governista, golpista, e ressaltar isso, se ninguém reparar no silêncio sobre o PSDB, pode reforçar a tal aura de imparcialidade necessária para o que realmente importa, que Merval mostra um pouco mais abaixo, no texto.

Ontem, o colunista condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo que ele chamou de estratégia para apresentar-se ao mundo como perseguido político. Acusado sem provas, na base do powerpoint e da convicção de procuradores, condenado por Moro somente por isso e prestes a ser condenado por um desembargador sob suspeita de manter relações de amizade com o juiz, inclusive com apadrinhamento de filhos, Lula reagiu. Seus advogados pediram a suspeição dos magistrados envolvidos e Merval relacionou esse movimento a uma suposta campanha de vitimização do ex-presidente. Hoje, o colunista recebeu de Moro o álibi para sua tese.

A prisão preventiva de Cunha, “decretada pelo juiz Sérgio Moro também serve para desacreditar de vez a tese de que o PT e Lula, seu principal líder, estavam sendo perseguidos seletivamente por Moro e os procuradores de Curitiba”, afirma Merval, sem deixar de preparar o terreno para livrar os amigos de sempre de quaisquer problemas futuros. Sobre uma eventual delação premiada de Cunha, o colunista avisa que tudo será negociado “com muita paciência, pois o Ministério Público acha que a prisão de Cunha é exemplar, e quer deixá-lo atrás das grades por muito tempo.” Além do mais, avisa, “será preciso investigar bem para saber o que é verdade e o que é simples vingança de Cunha contra os que considera que o traíram.”

Não é muito difícil prever o que deve ser considerado vingança, e o que será tido logo de cara, a priori, como verdade. Qualquer denúncia contra o próximo alvo, por exemplo, não deverá ser lá muito questionada, a julgar pelo editorial que o Estadão chama na capa. “Lula está armando um espetáculo circense para dizer que o Mal cooptou a Justiça”, afirma o jornal, para em seguida dizer que “o herói faz agora o papel de vítima e é assim que doravante se apresentará na grande encenação para o público, daqui e do exterior”.

Como afirma o jornalista Luis Nassif, no seu “Xadrez do fator Eduardo Cunha”, “o grupo da Lava Jato, juiz Sérgio Moro à frente, conta que, com a prisão, se consiga demonstrar um mínimo de imparcialidade, ampliando a força para uma futura prisão de Lula”. E para consumar esse objetivo, a grande mídia não poupa antigos aliados, como o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral. “Cavendish diz que pagou anel de R$ 800 mil para mulher de Cabral”, diz a chamada do Globo logo abaixo da manchete.

O jornal carioca dá seguimento à manchete de ontem do Estadão ao dizer que “o empresário Fernando Cavendish, dono da Delta Construções, afirmou à Lava-Jato ter dado de presente para a mulher do ex-governador Sérgio Cabral um anel de ouro branco com brilhantes, avaliado em R$ 800 mil, quando os dois viajaram juntos para o Principado de Mônaco, em 2009”. “O empresário, que negocia acordo de delação premiada, apresentou aos investigadores nota fiscal da compra. Acusado de corrupção, Cavendish está em prisão domiciliar”, informa a matéria.

Segundo o depoimento de Cavendish, “Cabral o convidou para bater perna pelas lojas de Mônaco, onde ambos estavam, atrás de uma recordação para Adriana. Ela aniversariava no dia seguinte, 18 de julho de 2009. Na porta da filial da Van Cleef & Arpels, famosa joalheria, na Place du Casino, o governador do Rio pegou o empresário pelo braço e entrou. Nada olhou, pois o presente já estava reservado: um anel de ouro branco e brilhantes. Só ali, quando tudo já estava decidido, Cavendish descobriu que a conta lhe caberia”.

A acusação contra Cabral seguiu o mesmo padrão, em termos editoriais, das denúncias contra a família do ministro do Esporte, Leonardo Picciani, filho do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Aerj), Jorge Picciani. As delações de diretores da Carioca Engenharia, investigada na Lava Jato, apontando compra de vacas superfaturadas de uma empresa dos Picciani foram manchete anteontem no Estadão, chamada de capa ontem no Globo e, hoje, desapareceram das páginas. Resta esperar para ver se, por coincidência ou não, as acusações contra Cabral seguirão o mesmo caminho.

Na página de dentro, embaixo da matéria com a delação de Cavendish, o Globo mostra seu contraponto ao falar no título que “executivos acusados de pagar propina a tucano viram réus na Lava-Jato”. Pena que o tucano em questão já esteja morto. “O juiz Sérgio Moro aceitou, na última terça-feira, denúncia feita pelo Ministério Público Federal (MPF) contra os executivos Ildefonso Colares Filho, ligado à Queiroz Galvão, e Erton Medeiros Fonseca, da Galvão Engenharia. Eles são acusados de oferecer, em 2009, R$ 10 milhões de propina ao ex-presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra, que morreu em 2010, e ao deputado federal Eduardo da Fonte (PP-PE), para barrar os trabalhos da CPI da Petrobras”, afirma a matéria a mostrar, no entender, talvez, do jornal, toda a imparcialidade de Moro.

E no editorial sobre o assunto do dia o Globo é mais discreto, porém, assim como o Estadão, também lembra de Lula. “Prisão de Cunha é vitória na luta contra a impunidade”, é o título do texto a afirmar, em dado momento, que “um primeiro forte sinal das instituições foi emitido no processo do mensalão, em cujo desfecho terminaram presos petistas poderosos, José Dirceu o principal deles. Há pouco indultado daquela pena, mas que continua encarcerado pela atuação no petrolão, esquadrinhado pela Lava-Jato, em cujas redes também se encontra o ex-presidente Lula.”

A Folha, por sua vez, não cita o ex-presidente petista no editorial, “O homem-bomba”, concluído com a afirmação de que a delação premiada de Cunha “cairia como uma bomba em Brasília – e não há quem não saiba disso no mundo político”. Em compensação, no show midiático da Lava Jato, a Folha é o único dos três jornais a exibir imagem diferente do “Lenhador da Federal”, não aquela em que o personagem aparece andando ao lado de Cunha na capa, na foto de Pedro Ladeira e também na de André Dusek, na primeira página do Estado.

Nas páginas de dentro a Folha mostra Lucas Valença sem camisa, tatuado no braço, sob o sol da Praia de Copacabana, a justificar os elogios empolgados do público feminino reproduzidos das redes sociais no texto da matéria. Ao lado, na mesma página, outra foto mostra quatro ou cinco manifestantes esperando a chegada de Cunha em Curitiba, a maioria com camisas com a imagem de Sergio Moro, tipo por eles, muito provavelmente, como o justiceiro imparcial do Brasil. E no Globo uma chamada embaixo pode dar uma mostra do quanto ficará difícil a vida de quem quiser protestar contra tais verdades estabelecidas, ao afirmar que “MEC pode adiar Enem em 181 escolas ocupadas por estudantes”.

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Luis Edmundo: Luis Edmundo Araujo é jornalista e mora no Rio de Janeiro desde que nasceu, em 1972. Foi repórter do jornal O Fluminense, do Jornal do Brasil e das finadas revistas Incrível e Istoé Gente. No Jornal do Commercio, foi editor por 11 anos, até o fim do jornal, em maio de 2016.
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