Dos Sentidos do Cinza: Doria e a tinta

Li em algum lugar que uma vez um oficial nazista perguntou a Picasso se foi ele quem fez Guernica. O grande mestre respondeu que os autores de Guernica eram eles mesmos, os nazistas e fascistas.

Se os grafiteiros paulistanos se encontrassem com Doria, eles poderiam contestá-lo com as mesmas palavras. Se a reação dos artistas urbanos à São Paulo é o grafiti e o pixo, não é um pote de tinta cinza que vai deixar a cidade ‘linda’.

Doria, casado com uma artista, aparentemente não sabe que arte não se destrói.

A arte não morre. Seja com a inquisição e seus livros queimados ou através das letras dos jongos afro-brasileiros, seja na fundição das peças de ouro pré-colombiano para cobrir igrejas moldadas por mãos indígenas e escravas, ou com a proibição de Bauhaus por Hitler (ainda é impossível pensar em design sem aludir a Bauhaus). Pode-se até matar o artista, como Franco fez com Lorca, mas, não, a arte não morre.

Pelo contrário, a arte floresce. Floresce no jogo de palavras de músicas proibidas, no simbolismo impregnado numa obra religiosa, na poesia surgida do ir e vir do dia-a-dia dos oprimidos.

Ou será que, para Doria, o conceito de arte se limita unicamente àquilo que, como faz sua esposa, é exposto em galerias e lugares privilegiados? Aquilo que ganha espaço na Alta Sociedade?

Nem banqueiros capitalistas, como os Médici, ou os industrialistas americanos patrocinaram a arte só para si, mas pagaram também para pintar murais em igrejas e trazer revolucionários mexicanos para as paredes públicas dos EUA.

Portanto, nada mais irônico do que um prefeito casado com uma ‘artista ecológica’, que aparentemente se preocupa com o verde, pintar uma cidade de cinza.

Mas o problema não está no cinza em si.

Nada mais bonito do que o concreto cru, cinza de dia e translucido quando iluminado a noite, ou contrapondo o verde da floresta tropical, como nas obras da dupla Niemeyer/Burle-Marx.

Nada mais imponente do que o cinza natural e multicolorido dos céus, pré-anunciando uma tempestade tropical.

Nada mais romântico do que o cinza dos ‘fogs’ londrinos, do se ve-não-ve que se abre pouco a pouco no topo do morro ou na descida da Serra do Mar.

Nada mais evocativo que os tons acinzentados de Sebastião Salgado ou o elegante cinza-amarronzado das fotos e filmes antigos que nos remontam a outras épocas.

E, voltando a Picasso, Guernica em si é uma resposta cinza à sangria de seu país.

Não, definitivamente o problema não é o cinza. Mas cobrir as cores pintadas por outros. O cinza utilizado para despintar o sentido de uma cidade, para apagar aquilo e aqueles que alguns não querem ver.

Não o problema não é o cinza.

É a prepotência daqueles que se acham capaz não só de decidir o que devemos chamar de arte, mas de se achar no poder de permitir ou aniquilar a arte de acordo com a sua própria visão de ética e estética.

Daqueles que se acham aptos, quem sabe por poder frequentar galerias e museus, para decidir qual arte fará o bem ou o mal.

Mariana T Noviello:
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