Show das Diretas Já em Copacabana marca virada histórica contra o golpe

(Reprodução/Povo Sem Medo)

Ao descrever o senso de justiça de Zadig, protagonista de uma de suas mais célebres novelas, Voltaire cunha, em duas frases, dois princípios básicos do direito penal humanista:

“Mais vale o risco de salvar um culpado do que o de condenar um inocente. Ele [Zadig] entendia que as leis eram feitas para dar segurança aos cidadãos, e não para intimidá-los.”

Depois de séculos de terrorismo penal, alguém – no caso, o maior gênio do século XVIII – finalmente ousava dizer, embora na linguagem cifrada da ficção, que o objetivo das leis deveria ser ampliar nossas garantias de liberdade e não nos asfixiar pela violência vingativa dos juízes.

Entretanto, o humanismo de Voltaire, que ecoa os belos e libertários pensamentos de Cesare Beccaria, não reflete unicamente a preocupação com o direito individual. Ao mencionar a “segurança” dos cidadãos como meta das leis, Voltaire defende um sistema de justiça ancorado na razão, ou seja, no bem estar social. Uma justiça que, em nome de um suposto combate à corrupção, destrói a economia e política de um país, não visa, definitivamente, o bem estar social.

Eu já escrevi posts dizendo que Sergio Moro não havia lido Machado de Assis, em especial o conto O Alienista, no qual o protagonista é uma espécie de justiceiro muito parecido com nosso paladino de Curitiba, que decide encarcerar quase toda a população da cidade, tida por ele como insana; e que tampouco lera Montesquieu, cujo Espírito das Leis traz algumas passagens que parecem ter sido escritas precisamente para corrigir os vícios da justiça curitibana (a qual, para nossa tragédia, parece ter contaminado todo o sistema judicial brasileiro):

“Foi Carondas que introduziu os julgamentos contra os falsos testemunhos. Quando a inocência dos cidadãos não está garantida, a liberdade também não o está.”

“(…) as leis que condenam um homem à morte com base no depoimento de uma só testemunha são fatais para a liberdade”.

Nesse post, eu observava que Montesquieu associa a liberdade política do cidadão a tudo que o protege dos “falsos testemunhos” ou dos arbítrio de juízes.

Esses pensamentos serão determinantes para produzir o espírito da revolução francesa. E assim é feita a história. A crítica erudita de alguns cidadãos, quando justa, penetra profundamente na base do corpo social, pela simples razão de ser uma crítica que nasce da leitura de problemas que afligem a maioria. É uma revolta que vem de baixo, influencia as mentes mais sensíveis da elite pensante, e retorna às suas origens populares.

Quando a gente se insurge contra os arbítrios de Sergio Moro, da mesma maneira, também estamos fazendo uma crítica radical às violências que atingem fundamentalmente, e há muito tempo, as populações vulneráveis do país.

A revolução francesa tem início com um movimento que visava precisamente destruir o demônio mais terrível da Idade Média: o arbítrio judicial. Assim como a aristocracia do Antigo Regime, a turma de Curitiba certamente jamais se perguntou porque o principal símbolo da revolução francesa é a tomada da Bastilha.

Com base em Montesquieu, podemos resumir a injustiça primitiva do sistema penal da idade média em dois pontos: 1) o uso de falso testemunho, ou da delação extraída sob coação; 2) a sentença judicial baseada unicamente no arbítrio do juiz, ao arrepio da própria lei.

Ou seja, a Lava Jato inaugurou, no Brasil, uma justiça contra a qual a modernidade vem lutando desde o século XVIII.

Por isso a importância, para a história do Brasil, da Batalha de Curitiba, o movimento social que reuniu milhares de pessoas de todo o país para prestar solidariedade e apoio ao ex-presidente Lula, que por sua vez se tornou símbolo da luta milenar entre a liberdade individual contra a violência do Estado.

É uma ironia tipicamente brasileira, que um dos homens mais odiados e desprezados por aqueles que se intitulam “liberais” (termo que, no Brasil, na minha opinião, foi invertido), tenha se tornado símbolo de tudo pelo qual o liberalismo clássico sempre lutou.

E agora, como consequência dessa nova descarga de energia desencadeada pela dupla “pegadinha” diabólica que Joesley Batista e a PGR deram no presidente da República, Michel Temer, e no presidente nacional do PSDB, Aécio Neves, estamos testemunhando uma série crescente de manifestações populares em prol das Diretas Já.

Neste domingo, o show em Copacabana em defesa das Diretas Já, com a presença, de um lado, de dezenas de milhares de pessoas, e, de outro, com a participação de artistas como Caetano, Milton Nascimento, Mano Brown, Rappin Hood, Wagner Moura, Maria Gadu, Otto, Criolo, entre outros, marca uma virada histórica.

O golpe de 2016 caracterizou-se pelo mais terrível cerco midiático já montado na história da humanidade. Não creio que, em qualquer outro país, se tenha visto uma violência tão organizada por parte dos principais meios de comunicação, associados a um sistema de justiça completamente enlouquecido pelo ódio político.

Mas o cerco foi rompido.

Na verdade, testemunhamos uma virada do “zeitgeist”, do “espírito do tempo” desde o carnaval, época em que a mídia perde o controle da narrativa.

Daí veio o desastre econômico crescente do governo, com aumento do desemprego e piora de todos os índices sociais e econômicos, inclusive aqueles que o neoliberalismo finge prezar tanto, como todos os referentes à situação fiscal.

O golpe de 2016 representou a maior catástrofe política, social, econômica e moral do país desde a república. De uma só tacada, destruímos toda a nossa frágil democracia:

1) o sistema de justiça (incluindo aí seus dois braços armados, a Polícia Federal e o MP) mergulhou num autodestrutivo processo de entropia que ameaça consumir todos os setores econômicos e políticos do país, com apoio da grande mídia, principalmente a Globo, que inclusive publicou um editorial incrivelmente fascista, falando em “limpeza geral” do país.

2) a imprensa, confusa pelo regime de exceção que ela tanto defendeu, e que agora ameaça seus próprios jornalistas, perdeu qualquer escrúpulo de honestidade que um dia fingiu ter. Tornou-se uma furiosa difusora de mentiras.

3) os empresários decidiram romper, num acesso igualmente de loucura, todos os tímidos pactos com o mundo do trabalho, que eram obviamente fundamentais para manter a estabilidade política do país. Sem esse pacto, só restará, à classe trabalhadora, a luta aberta e radicalizada das ruas.

4) a classe política, desde o início intimidada e chantageada pelo golpe, tem reagido com movimentos de desespero. A “pegadinha” contra Aécio Neves e Michel Temer serviu para desmascarar os dois golpistas mais canalhas da nossa história política,  mas revelou também as consequências do terrorismo judicial sobre o espírito de um grande empresário, como Joesley Batista, e de experientes raposas políticas, como Aécio e Temer. Quando o maior empresário brasileiro do mundo da produção decide fazer o que fez Batista, é porque estava positivamente apavorado com o Estado de Exceção. E agora temos informação de que procuradores da república perguntaram a Batista se o filho de Lula era mesmo “sócio” da Friboi. Ou seja, o processo que engolfou a JBS e Friboi, desde a operação Carne Fraca, até a delação dos irmãos Batista e as pegadinhas já mencionadas, foi, por incrível que pareça, contaminado pela loucura coxinha anti-Lula.

O Brasil não tem que viver nenhuma “grande limpeza” da vida pública, como quer a Globo, seja lá o que isso queira dizer. O Brasil precisa de democracia, o que significa eleições limpas, diretas, monitoradas por uma justiça eleitoral descontaminada de paixões políticas, distante do pensamento jurisdicional de exceção, nascido em Curitiba, e livre dessa obsessão negativa de controlar e criminalizar tudo. Precisamos agora de democracia e liberdade. O que precisa ser controlado, naturalmente, é o monopólio midiático, em especial a Globo. O TSE poderia concentrar suas energias não em proibir e censurar manifestações políticas e culturais e redes sociais, e sim em obrigar os grandes canais de tv e rádio a cumprirem o que determina a Constituição Brasileira.

O show das Diretas Já, no Rio de Janeiro, mostrou que a nossa cidade permanece rebelde e atenta. Os reflexos políticos e culturais do evento continuarão ecoando e repercutindo até 2018.

Com a Batalha de Curitiba e as últimas manifestações, o campo progressista-popular conseguiu montar uma armadilha semiótica dentro dos salões aristocráticos do palácio do golpe: cada nova medida do governo, cada nova tentativa de aprovar uma lei antissocial, cada nova investida judicial contra Lula, tudo se reverterá dialeticamente contra os próprios golpistas.

As conspirações midiático-judiciais acharam que poderiam asfixiar os movimentos populares. Jorge Bastos Moreno, o simpático e pusilânime golpista da Globo, chegou a dizer que a “oposição” ao governo Temer não duraria alguns meses, porque o “dinheiro” iria acabar. E assim que as tropas de bandidos ocuparam o Palácio do Planalto, os cofres foram abertos para a grande mídia.

Todos esqueceram que o princípio constitucional de que “todo poder emana do povo” também é uma fórmula econômica básica. Empresas e governos só têm acesso a recursos financeiros porque a população lhes dá esses recursos. Mas é a população que é, também, a proprietária dos recursos.

Com uma população de 207 milhões de habitantes, os recursos para vencer e esmagar o golpe são ilimitados. Ao apoiar um impeachment sem crime, a Globo e seus comparsas cometeram o pior erro de sua história. Se tivessem respeitado a vontade das urnas, talvez pudessem sobreviver por mais algumas décadas.

Ao virem com sede excessiva ao pote, eles mostraram ao povo quem é seu verdadeiro inimigo. E ao defenderem o Estado de Exceção, expuseram-se a si mesmos às fúrias sem controle de um judiciário ditatorial.

A luta agora se dará em várias frentes convergentes: pela democracia, pelas liberdades, pela reorganização do Estado.

Não importa mais se a vitória está próxima ou distante: os últimos desdobramentos políticos nos asseguraram uma direção e uma estratégia de luta e era disso que mais precisávamos nesse momento.

Ao encontrar o seu caminho, o campo progressista pode enfim respirar o ar infinitamente puro que se cria quando o povo começa a andar para o mesmo lado.

O ar limpo da vitória futura!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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