Cultura, violência e direito à insurreição

(Foto: ESQUERDA ONLINE)

O amigo Roberto Ponciano me enviou um texto, há alguns dias, que eu demorei um pouco para publicar, porque achei que traz argumentos que precisam de alguns esclarecimentos e, talvez, de um contraponto.

Ponciano mostra-se impaciente (e eu diria, com toda razão) com a docilidade “cultural” que parece ter tomado conta das nossas manifestações políticas.

Vou arriscar um spoiler do texto e citar a frase com que ele fecha o seu argumento:

Neste “ritmo’ de “paz e amor”, em que estamos, embalados pelos showmícios de Caetano, ao menos nos tornaremos os escravos mais alegres do mundo.

Ponciano vai além e revê a questão dos black blocs, tão repudiados pela esquerda partidária. Ele faz críticas duras ao black blocs, mas não por seu estilo agressivo, e sim por sua falta de substância política e organização.

Após lembrar que a maioria dos black blocs parece se inspirar em teorias e práticas anarquistas, nosso articulista lembra que as primeiras greves no Brasil foram organizadas pelo movimento anarquista. Ele cita a COB, a Confederação Operária Brasileira, organização fundamental no processo de conscientização política do proletariado nacional do início do século XX.

Mutatis mutandis, se pudéssemos trazer a COB para o século XXI, ficaria difícil imaginá-la em escaramuças inúteis (inúteis porque sem objetivo tático e ou estratégico) com o batalhão de choque da PM, ou quebrando abrigos de ônibus, que serão usados exatamente pelos trabalhadores nos dias seguintes. A COB teria como missão ocupar fábricas, escolas, estradas e resistir, usando a violência se necessária.

Eu, no entanto, discordo um pouco de Ponciano, porque acho que ele, ao depreciar o estilo “cultural” e “festivo” das manifestações políticas no Brasil, está mais uma vez cometendo o velho erro da esquerda brasileira de negar a importância da luta simbólica.

A luta simbólica é fundamental. A eterna inapetência absoluta da esquerda partidária para fazer a luta simbólica, é uma das causas de suas derrotas no Brasil.

A luta simbólica é o que poderíamos chamar também de luta no campo da comunicação. Algumas lideranças de esquerda passaram a dar aparente atenção maior à comunicação, mas ainda não entenderam o que é comunicação. A comunicação política, para ser eficaz, precisa da cultura. Ou seja, precisa de chicos, caetanos, emicidas e mano brows.

Por outro lado, Ponciano está certo. Não podemos ficar só nos showmícios de Caetano. O golpe é brutal, avança muito rápido e é chegado o momento de atitudes mais objetivas.

***

O Cafezinho publica o texto abaixo, feito com exclusividade para o Cafezinho, e pede aos internautas que comentem, dêem sua opinião, apresentem os pontos que discordam ou concordam.

Cultura, violência e direito à insurreição

Por Roberto Ponciano*

O direito dos povos a se insurgir, de armas nas mão, se necessário, contra os tiranos não é uma invenção “comunista”. Está nos enciclopedistas, mas antes está em Santo Agostinho e também em Abraham Lincoln. Santo Agostinho é o primeiro grande padre da igreja a considerar justo e cristão o tiranicidio. Logicamente que este caput não é uma incitação ao tiranicídio, é apenas um preâmbulo necessário para que entendamos que, quando Marx diz “a violência é a parteira da história”, ele não está inventando a roda. Não foram os socialistas ou comunistas que primeiro entenderam que as mudanças sociais são violentas (Independência dos Estados Unidos e de toda a América Latina, Revolução Francesa, Revolução Russa), antes deles os padres já haviam entendido e a burguesia revolucionária francesa e dos Estados Unidos. A declaração universal dos direitos humanos é a rebenta, limpinha e cheirosa, das mortíferas Revolução Francesa e Guerra de Independência dos Estados Unidos. Parece muito pacífica, mas é resultado da luta de vida e morte, da burguesia contra a nobreza de um lado, na França (lembrando que o proletariado faz parte da burguesia nesta luta) e dos colonos dos EUA contra o domínio da metrópole do outro. A declaração, tão límpida, cheira a sangue e fumo, para quem conhece a história.

Esta introdução serve para aclarar o que vou falar, após ler o texto, de passeata em passeata, chegamos à guilhotina. Um texto bastante interessante no que diz respeito à intenção, mas que para mim erra na mão. O capitalismo é VIOLENTO. No Brasil, todo ano, 39 mil jovens são assassinados todo ano numa guerra civil não declarada. Desde o golpe, triplicou a população de pessoas obrigadas a viver na rua, sem nenhum direito, como bicho; e passamos das 14 milhões de pessoas sem emprego e com um futuro sombrio. O Brasil voltou ao mapa da fome. A desigualdade absoluta, um abismo social que no Brasil é o maior do mundo, só existe porque NOSSA SOCIEDADE É VIOLENTA. A polícia no Brasil não existe para reprimir o tráfico, existe para evitar que a favela desça e destrua o asfalto. Existe para que uma sociedade, com tecido social rasgado como é a brasileira, não entre em guerra civil. A solução, dado o descalabro social é uma só, uma guerra sem quartel contra os pobres e a pobreza, assim como o genocídio social, em curso em larga escala, neste momento.

Assim, concordo em gênero, número e grau com o texto, no sentido de que uma passeata, de mês em mês, para derrubar Michel Temer, é tão inútil quando um ato-show em Copacabana. Desde logo, digo que participei de todas as passeatas. Não sou determinista, se existe algo bom em Michel Temer ter continuado na Presidência da República (mesmo contra a vontade, da sim poderosa, mas não onipotente, Rede Globo), foi o desmentir os determinismos mecanicistas, que já tem todos os dados da história mesmo antes de eles serem rolados. Para os deterministas, a Globo sozinha manda e desmanda no Brasil. Mas não só a permanência de Temer no Planalto mostra o contrário, a vitória do PT em quatro eleições seguidas mostra que o poder da mídia é imenso, mas é só uma das instâncias determinantes da realidade, não é a realidade toda. Gramsci ensina que ninguém pode prever em detalhes a história, porque os fatores qualitativos e quantitativos mudam de lugar todo o tempo. Ninguém sabe efetivamente onde a acumulação quantitativa se fará salto qualitativo. Esta previsão, ao final é práxis coletiva. Mas sim, é fácil diagnosticar, que naqueles dias passados, próximos da denúncia de Joesley, a decisão coletiva de se fazer greve geral por um dia era completamente insuficiente para derrubar um governo.

Os protestos que derrubaram quatro presidentes na Argentina e levaram à eleição de Nestor Kirchner, que finalmente estabilizou política e economicamente o país, foram muito mais intensos e radicais que os brasileiros. Minha principal discordância do texto, de passeata em passeata chegamos à guilhotina, é a condenação da tática black block por esta usar a violência, não os condeno por isto. Não, não sou black block, nem simpatizante deles. Sendo bem teórico, vou citar não Marx, nem Lênin, mas Sartre, que diz que o marxismo é a única filosofia (política, este termo “política” é minha observação) viva. Diz Sartre que, ao fim, estratégias e táticas que parecem inovadoras nos fazem regressar a organizações, análises e formas de luta pré-marxista, ou seja, à pré-história da organização dos trabalhadores. Minhas críticas aos black blocs são bem outras. A primeira de todas é que ninguém sabe bem ao certo o que eles são, nem mesmo eles. Dizer que os blacks blocs são “uma tática e não uma organização” é uma tautologia que, obviamente não explica nada. Esta forma avessa à organização dos trabalhadores atrapalha mais que ajuda qualquer movimento. É lógico que para se organizarem para cada alto eles tenham alguma organização, é mais lógico ainda que se esta organização começa, acaba e termina com a violência esporádica em cada ato dos trabalhadores. Com isto, eles acabam, querendo ou não, sendo linha auxiliar da repressão, em lugar de aliados dos trabalhadores.

Primeiro porque, até ideologicamente, fica difícil situá-los. Em alguns atos com blacks vejo bandeiras anarquistas. O que me parece é que eles sequer estudaram ou compreendem o que foi o movimento anarquista. Os anarquistas negavam a necessidade de partidos, não de organizações operárias, tanto que os anarquistas são responsáveis no Brasil, através da COB, por algumas das principais greves do século XX. Lembrando que a COB era uma Central Sindical que se pretendia nacional, e que organizava não só os atos, mas as reivindicações e até o socorro-mútuo dos trabalhadores. Mutatis mutandis, se pudéssemos trazer a COB para o século XXI, ficaria difícil imaginá-la em escaramuças inúteis (inúteis porque sem objetivo tático e ou estratégico) com o batalhão de choque da PM, ou quebrando abrigos de ônibus, que serão usados exatamente pelos trabalhadores nos dias seguintes. A COB teria como missão ocupar fábricas, escolas, estradas e resistir, usando a violência se necessária. A violência não e uma estratégia em si, mas sim, como forma de resistência não pode ser negada a priori. Ocupar e resistir, por todos os meios. Então, os blacks blocs são um débil simulacro do movimento anarquista operário, que sim, este movimento anarquista operário tinha lado, tática, estratégia, objetivos. Minha condenação aos blacks blocs é toda neste sentido, total falta de estratégia, análise, organização, objetivos. Atrapalham muito mais o movimento social do que ajudam.

Assim, concordo com o texto no sentido de que um dia de greve por mês é muito, muito pouco. Pouco porque já dá ao inimigo a previsão do que necessita para continuar no poder. Resistir aquele dia, contabilizar os prejuízos, saber que a mobilização não passará daquele dia e que no dia seguinte o país “entrará na normalidade”. Não concordo no sentido do “pacifismo das manifestações”. As manifestações sim, tem que ser pacíficas, no sentido óbvio que não devemos cair em provocações nem provocar o batalhão de choque com o único objetivo de deflagrar um confronto. Isto é patetice metida a pseudo-radicalismo. Fora que todos que já foram em qualquer ato veem a quantidade de provocadores infiltrados (P2, S2), que se aproveitam para criar um clima de pânico e desarticular o movimento. Mas discordo também de alguns companheiros e companheiras que chegaram a dizer: “por causa dos blacks blocos nem posso levar meus filhos pequenos nas manifestações”. Estamos no meio de um golpe, com um tirano usurpador no poder. Não é tempo de “paz e amor”. Uma coisa, que a esquerda perdeu, foi a dimensão do risco de fazer parte do movimento social, coisa que tínhamos até o fim da década de 70. Num movimento radical, contra um golpista. O confronto pode ser duro e podemos sim, chegar mesmo a perder a vida. Então, deixem nossos filhos pequenos em casa, até terem idade para se defender ou decidir arriscar a própria vida.

Numa golpe com esta dimensão, com esta profundidade, necessitamos mais do que apenas um dia de manifestação e parar de analisar a história como se ela fora um jardim de infância e não houvesse confrontação para a consecução dos objetivos. Não se prepara uma omelete sem quebrar ovos. Para a volta da democracia necessitamos de uma greve generalizada e por tempo indeterminado. Já ouvi alguns dizendo que seria algo muito caro. Caro? Com certeza, mas é uma luta de vida e morte, porque a reforma trabalhista vai, ao fim, acabar com os sindicatos. E, por acaso, os sindicatos estavam melhores na década de 70, quando promoveram as grandes greves generalizadas contra o arrocho e a ditadura militar? Greve de um dia não serve nem mais para provocar um susto em Temer. E mais do que greve, ocupações no campo e na cidade, paralisação total das indústrias, das refinarias, bloqueio de estradas, ocupação dos Ministérios, escrachos nos gabinetes dos deputados e senadores, paralisação de rodovias e aeroportos, ocupação das empresas de comunicação golpistas. Lutar por todos os meios acessíveis, sem trégua. Não devemos propor a violência numa correlação de forças em que seria um suicídio para nós, afinal, as armas são todas deles. Mas sim, devemos prever a violência da repressão e estarmos preparados e organizados para resistir minimamente a ela. Este é o dever de todo militantes social que luta pela volta da democracia.

Neste “ritmo’ de “paz e amor”, em que estamos, embalados pelos showmícios de Caetano, ao menos nos tornaremos os escravos mais alegres do mundo.

* Escritor, filósofo marxista e dirigente sindical.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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