Lucio Funaro e a desmoralização da “delação premiada”

(Banksy)

Um dos principais “operadores” do PMDB, o doleiro Lucio Funaro, afirmou, em sua delação premiada, que Eduardo Cunha pediu – e recebeu – R$ 1 milhão para convencer alguns deputados federais a votarem em favor do impeachment.

Funaro disse ainda que Geddel Vieira Lima ficava com 65% das propinas que o PMDB obtinha de seus esquemas. Cunha e ele, Funaro, ficavam com o resto meio e meio.

Como de praxe, o “vazamento” da informação de Funaro foi para um órgão amigo da Lava Jato, a Folha de São Paulo. A Lava Jato precisa estar, constantemente, molhando a mão da imprensa para mantê-la pendurada, bem chapa-branca, à sua própria narrativa.

O Globo, por sua vez, repercute a notícia de uma maneira bem curiosa.

Ou seja, nenhuma indignação. A transformação do congresso num grande mercado, onde os “aliados” têm um preço, é tratada com normalidade.

Na farsa do “mensalão”, construiu-se, ou se tentou construir, na opinião pública, uma indignação histérica porque o governo teria “comprado” deputados para aprovar reformas importantes.

Agora o governo compra deputados, à luz do dia, para suspender investigações criminais contra si mesmo, e a mesma imprensa trata a coisa como um fato normal. Com um detalhe macabro: o “mercado” torce em favor de Temer, o que mostra que o sr. mercado não dá muita bola para ética, democracia ou interesse nacional.

Eu demorei para tratar o assunto da delação de Funaro porque não acredito em delação. Acho que é sempre uma excrescência. Pelo jeito, não sou apenas eu. A “opinião pública” também está cansada. O partidarismo nojento do sistema de justiça desmoralizou o instituto da delação premiada em tempo recorde.

Como saber se Funaro disse a verdade? Cunha pode ter pedido R$ 1 milhão, sim, ou pode ter pedido R$ 100 milhões. Ou o pedido pode ter sido de Michel Temer. Enfim, como saber?

A única coisa que sabemos é que sempre há um interesse por trás da delação.

Desde que começamos a fuçar, com mais atenção, as conspirações que levaram ao impeachment, já tínhamos identificado, por exemplo, que uma das estratégias mais bem sucedidas de seus operadores na mídia e no sistema de justiça era justamente intimidar a classe política.

Intimidada, a classe política se engajaria, quase com desespero, em prol das reformas neoliberais, com muitos políticos experientes intuindo, com acerto, que seriam preservados da fúria policial caso entregassem o serviço em tempo recorde.

E assim foi.

Mídia e “mercado” tratam de blindar os políticos que trabalham firmes em prol do desmonte do Estado.

Naturalmente, esse controle não é absoluto. Alguns políticos são toscos demais e acabam se empolgando demasiadamente com a liberdade que a mídia lhes oferece. É o caso de Geddel.

Não podemos esquecer, porém, que a Lava Jato e a Globo lideraram uma conspiração para derrubar uma presidenta honesta e substituí-la por um governo onde Geddel Vieira Lima fazia parte do “núcleo duro”, junto com Moreira Franco e o próprio Michel Temer.

Assim foi o golpe.

Impôs à população um governo não eleito, impopular, rejeitado pela população, cercado de ministros e forças ligadas ao partido derrotado nas últimas quatro eleições, que está implementando um programa não discutido com a sociedade.

Ou seja, o golpe trouxe profunda infelicidade e humilhação ao país, como era previsto.

Dilma, com todos os seus problemas, sempre foi defendida nas ruas por grupos sociais importantes. Que grupos sociais estão nas ruas, hoje, a defender o governo Temer?

O sistema de justiça, por sua vez, parece fazer questão de confirmar que é mesmo o núcleo mais importante do golpe.

Os ataques a Lula, a Dilma, e a blindagem a algumas peças estratégicas da oposição, como se testemunhou em tantas ocasiões, a Moreira Franco, Aécio Neves, Serra, FHC, significam que o sistema brasileiro de justiça tem lado,  e não é o lado da população, da democracia e da soberania nacional.

Rubens Casara, em seu recém-lançado Estado Pós-Democrático (compre aqui e leia: é um livro essencial!), no capítulo dedicado ao “Poder Judiciário”, observa que

(…) os meios de comunicação de massa conseguem fixar sentidos e produzir ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social. Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais empecilhos à eficiência do Estado, ou do mercado. Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, o “bom juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de democracia – democracia não só como participação popular na tomada de decisões, mas também como concretização dos direitos e garantias fundamentais. Esse “bom juiz” é peça-chave à manutenção do Estado Pós-Democrático.

Note-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados pelos meios de comunicação de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais como forma de democratizar a justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento. Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos por meio do processo. No Brasil, a Ação Penal (AP) 470, conhecida como o caso Mensalão, e o caso Lava Jato (na realidade, um complexo de casos penais) são exemplos paradigmáticos.

Em outra parte do livro, no capítulo intitulado “O sistema de justiça criminal e sua tradição autoritária”, Casara denuncia a figura do “juiz-inquisidor”:

O juiz-inquisidor da atualidade, muitas vezes com o apoio dos meios de comunicação, que reforçam versões desfavoráveis aos réus e propagam o sentimento de medo na população, confunde as funções de julgar e acusar, afastando-se do dever que lhe é atribuído nas legislações democráticas: o de concretizar direitos e garantias fundamentais de todos, inocentes ou culpados. Na pós-democracia, desaparece a noção do dever do agente estatal de garantir direitos fundamentais.

A consequência da confusão ou da promiscuidade entre as funções de “acusar” e “julgar” é o fenômeno, ainda que muitas vezes inconsciente para o juiz, do “primado da hipótese” descrita na acusação sobre o fato ocorrido no mundo-da-vida (Franco Cordero). Com isso, tem-se a quebra da imparcialidade do julgador. Confirmar a acusação, a partir de uma espécie de certeza delirante, passa a ser a missão do juiz inquisidor, o que gera um comprometimento desse ator jurídico com a versão da acusação e impede o distanciamento necessário para um julgamento justo, no qual o respeito aos direitos e garantias fundamentais se faça presente.

Brandindo suas “certezas delirantes”, juízes e procuradores, inconscientes ou não, pautam a agenda política, desviam o foco da indignação popular e, pior, chancelam golpes de Estado, jogando o país numa crise econômica e política de proporções catastróficas para a população.

O culpado, neste caso, não é apenas Sergio Moro. Os tribunais superiores tem responsabilidade direta nesta situação. Um impeachment escancaradamente ilegal foi o ponto culminante de um processo interminável de ilegalidades aceitas pelo judiciário.

A “delação” de Lucio Funaro serve apenas como uma humilhação a mais, além de servir para reafirmar o poder das instâncias burocráticas, que não teriam sido “compradas” por Eduardo Cunha. Não, os juízes são mais elegantes: são comprados por prêmios, palestras em Washington, entrevistas e reportagens lisonjeiras. Desde que, é claro, se mantenham servis à narrativa central do golpe, desde que se comportem direitinho nestes difíceis momentos de “pausa democrática”…

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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