Para aqueles que começam a clamar conciliações, novas narrativas e um virar de páginas

Em 2009, deixei o Brasil, no auge do sucesso do Governo Lula, para passar um ano na Argentina.

Como toda boa brasileira, um dos temas que mais me fascinavam era o da comparação entre Argentina e Brasil.

Apesar de todo o charme e sofisticação da capital argentina, tudo no Brasil parecia melhor, mais evoluído e mais ‘funcionante’ (o que não me impediu de me apaixonar completamente pelo país e seu povo).

Na época, uma das grandes ‘diferenças’ que eu via, equivocadamente, era que o Brasil, que ainda era (e é) o país do apartheid social, parecia ter se conciliado politicamente de uma maneira que não tinha acontecido na Argentina.

Na Argentina de Cristina Kirchner, as Madres ainda saíam todas as semanas na Plaza de Mayo, as Abuelas procuravam (e achavam) seus netos e não passava um dia onde não se mencionava de alguma maneira algo relacionado à ditadura e aos terríveis crimes cometidos na época.

Uma ferida aberta, ainda dolorida e fétida, que trazia paixões de ambos os lados.

Ademais, a polarização na Argentina não parecia exatamente social (em seu sentido estrito, obviamente que de base social), mas política, onde os dois lados, um Peronismo ainda vigente se batia fortemente contra um conservadorismo que, na época, achava muito mais acirrado que o Brasileiro.

Barricadas nas ruas, greves e manifestações faziam parte da rotina do país.

E eu achava os dois jornalões argentinos, o Clarín e a Nación, ainda piores e mais mentirosos que os nossos Folha e Estadão (se isso é possível de imaginar).

Achava, erroneamente, que no Brasil, havíamos aprendido a ‘conciliar’. E não obstante o conservadorismo gritante e inerente de nossas elites, as nossas feridas
se cicatrizavam.

Um aparte: curiosa e contraditoriamente à minha análise, a Argentina de Kirchner tinha conseguido passar duas leis que o Brasil nem perto chegou, a lei dos meios e a lei dos campos (ambas causavam considerável reações por parte da mídia e da elite conservadora).

Pois bem, como fomos descobrir somente alguns anos depois, se a ferida argentina ainda pulsava vermelha e quente, a nossa, cicatrizada por cima, não dava sinal dos vermes que se adentravam e se alimentavam de nossa carne, antes da explosão da ferida e a emergência de grandes e inúmeras moscas, já adultas, deixando nossa carne corroída, podre e infectada.

O golpe dado não foi um movimento político comum, parte da disputa de ideias. Foi um assalto, um ataque sujo à nossa democracia.

Deixou nosso país acéfalo. De um lado e do outro.

Parte do sentido da alternância de poderes numa democracia é que a parte governante vai perdendo gradualmente sua capacidade de ação, sua ligação natural com as bases que fizeram possível a sua ascensão.

Enquanto isso, a oposição vai se preparando organicamente e ganhando simpatia da população.

Já devo ter dito isso várias vezes, mas repito, a formação de líderes é um processo orgânico. Não acontece de um dia para o outro.

É por isso que o golpe, além de terrível, foi mais que tudo, burro.

Já me explicaram várias vezes que, na época do chamado mensalão, a oposição, em sua versão mais republicana, tentou o ‘deixar sangrar’, certos que a ‘corrupção’ derrubaria Lula.

(In)felizmente para nós, Lula não só sobreviveu, mas emplacou uma presidente DUAS vezes!

Nunca me esqueço da cara dos Mervais e asseclas na Globonews apresentando os resultados das eleições de 2014.

Ouvi inúmeras vezes que o golpe aconteceu porque, depois de Dilma, Lula voltaria.

Se o Golpe nos deveria ensinar alguma coisa é que o futuro não é previsível.

Minha suspeita é que depois de 4 mandatos do PT, principalmente do último da Dilma, que a ninguém agradava, teríamos a tão ‘desejada’ alternância de poder.

Mas não, não puderam esperar. Não confiavam na capacidade do povo brasileiro de ‘saber escolher’ um presidente.

O fato é que estamos onde estamos.

E me indigna a sugestão de certos setores que deveríamos ‘virar a página’. Ou como disse o New York Times ‘achar um novo líder dentro dos seis meses que nos restam até as eleições’.

Voltando de novo às nossas feridas: o país que elegeu a ex-guerrilheira Dilma como presidente, não conseguiu se conciliar com o seu passado.

Me parece que não estávamos preparados para tão grande feito: eleger uma mulher (sim, além do mais, mulher) que afrontou a ditadura ainda representada em setores não só do parlamento, mas de todas as instâncias e esferas de poder do nosso país.

Esconder tudo debaixo do tapete e achar que poderíamos avançar sem analisar o passado, sem dar uma resolução adequada aos acontecimentos, não funcionou.

E agora nos pedem para deixar ‘nossas mágoas’ de lado? Como se houvesse equidistância entre a esquerda e a direita? Como se ambas as partes fossem igualmente culpadas pela destrução do país?

Reclamam que não temos nada mais a oferecer que o ‘velho’ e ‘ultrapassado’ Lula?

Que ‘narrativa nova’ pode sair disso tudo tão abruptamente, tão cedo?

E o que seria exatamente esta ‘narrativa’? Marina da Silva e seu ambientalismo apolítico e importado, de mãos dadas com as grandes corporações? O velho e batido ‘nem esquerda, nem direita’, num país assolado por preconceitos de classe?

Infelizmente para os afobados precisamos de tempo. Mesmo se a decapitação ocorrida pudesse ser chamada de ‘poda’, ela demoraria para dar frutos.

Mariana T Noviello:
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