Comentários à entrevista de Mangabeira Unger

Foto: Marcelo Andrade/Arquivo/Gazeta do Povo.

O companheiro Luis Nassif escreveu uma análise da entrevista de Mangabeira Unger à Folha sobre a qual eu gostaria de tecer alguns comentários.

Nassif critica os erros de Ciro por não ter aceito a proposta de Lula/PT de lhe dar uma vaga de vice numa chapa encabeçada pelo próprio Lula. Diz que isso foi um gesto de “arrogância mortal”.

Na opinião de Nassif, uma chapa Lula /Ciro teria sido a “fórmula ideal”.

Humildemente, discordo.

Uma chapa Lula / Ciro não teria nenhuma lógica.

É impressionante como o alerta de Cid Gomes ainda é atual. Alguns preferem esquecer esse fato constrangedor, mas Lula estava, a essa altura, preso em Curitiba, condenado em segunda instância por corrupção. A maioria da população, segundo pesquisas, entendia que se tratava de uma prisão justa. Mais importante: as instâncias de poder, imprensa, STF, STJ, Ministério Público, todos estavam alinhadas em favor da prisão do ex-presidente.

Ciro seria vice de um presidiário (a palavra é dura, mas é a verdade nua e crua) condenado por corrupção, com apoio da maioria da população à sua condenação e prisão.

A maioria das forças de esquerda não-petistas (incluindo Ciro) sempre defenderam Lula, sempre atacaram a sentença de Sergio Moro, mas a sua prisão é um fato político incontestável. Era preciso, por isso mesmo, preservar o ex-presidente, evitar sua super-exposição, para não atiçar ainda mais a fúria judicial contra ele.

A lógica de apostar em Ciro e não no PT se dava justamente por causa dessas lamentáveis circunstâncias. Aliás, essa era a razão pela qual o próprio PT falava tanto em Ciro. Era uma ideia que contava com o apoio de vários governadores.

Como Lula estava preso, e como o PT não tinha uma outra liderança com capital próprio, faria todo sentido lançar um candidato de outro partido.

Havia outras razões também, tão ou mais importantes. Todas as pesquisas indicavam que o PT não era mais associado a um espírito de mudança, o que explica a sua rejeição. O PT governou o país por 13-14 anos, então para gerações inteiras de brasileiros, o PT é associado ao establishment, ao poder, e, sobretudo, às intermináveis e insuportáveis crises políticas que vem assolando o Brasil com muita intensidade desde 2005, e que, após alguns descansos, voltaram com muita força a partir de 2013.

O eleitorado queria mudança, notava-se forte rejeição ao PT e Lula estava preso (com apoio da maioria à sua prisão).

Esses três fatores apontavam para Ciro Gomes como a “fórmula ideal”, mas na cabeça de chapa, livre, leve e solto.

Se Ciro fosse vice de Lula, ele não poderia participar de nenhuma sabatina, entrevista, debate, dedicados exclusivamente a candidatos a presidente.  E quando conseguisse abrir um espaço na mídia, teria que responder apenas a questões relativas a Lula. Aliás, Ciro nem poderia falar em lugar algum, porque seria logo acusado de pretender “roubar” o lugar de Lula.

Incrível como já se esqueceu que a narrativa do PT, durante todo o tempo em que durou a chapa Lula / Haddad, era de que “não havia plano B”. Era Lula ou Lula. O PCO, nessa época com grande presença dentro dos espaços de debate do PT (com direito ao microfone nos dois lançamentos da candidatura Lula), tinha como mote “Lula ou nada”. Nem Haddad eles aceitaram.

Lula era o candidato a presidente e ponto final. Haddad mantinha um silêncio obsequioso. Não dava entrevistas nem se manifestava em redes sociais, para não parecer que era um “plano B”.

Alguém consegue imaginar Ciro representando esse papel?

Muitos nomes importantes do PT diziam que a fórmula usada seria a de Cámpora / Perón: Haddad no governo, Lula no poder. Eu mesmo presenciei o comício de um importante deputado aqui no Rio, em que ele enfatizou essa fórmula.

No caso, então, a fórmula seria Ciro no governo, Lula no poder?

Se o problema era a prisão de Lula e a impossibilidade dele conseguir o seu registro, porque cargas d´água a “fórmula ideal” seria Lula como cabeça de chapa?

Se o PT queria manter a cabeça de chapa com Lula, então a oferta a Ciro, sobretudo após ele já ter registrado a sua própria candidatura, foi uma tentativa de humilhação, ou uma farsa.

Como é possível pretender que algum outro candidato, que não um petista, se submetesse a esse tipo de humilhação? E para que?

Em que, nesta situação, uma candidatura Lula/ Ciro teria qualquer vantagem sobre uma candidatura Lula / Haddad?

Para um petista, a situação ao menos apresentava a perspectiva de liderar o partido em caso de uma eventual derrota.

Se a ideia fosse Lula / Ciro, toda a energia e novidade de Ciro seriam consumidas e destruídas. Ciro não apenas perderia as eleições, como não teria condições de levar adiante o que era (e continua sendo)  justamente o seu principal capital político: o de possuir uma plataforma progressista própria, independente, alternativa ao PT, partido que, apesar de tantas coisas boas que fez ao país e ao povo (Ciro sempre foi o primeiro a admitir isso), vive imensas dificuldades políticas, soterrado por processos judiciais, delatores, prisões, arrastando uma imagem pesadíssima, que não seria desfeita em poucos meses.

E não foi Ciro quem perdeu a presidência. Quem perdeu a presidência foi o campo progressista.

A fórmula ideal, desde sempre, seria um apoio de Lula a Ciro. Haddad poderia ser o vice. Ou alguém do PSB.  Conseguiríamos fechar uma grande aliança, formal, entre PT, PDT, PSB, PcdoB e centrão. Teríamos o maior tempo de televisão, usado para emplacar na opinião pública uma narrativa antigolpe e desenvolvimentista.

A campanha poderia ficar centrada em projetos, e não num plebiscito sobre o PT e Lula. Aí teríamos muito mais chances de obter apoio do eleitor centrista, cansado do PT, mas que também não se sentia à vontade com as posições extremistas de Bolsonaro.

Não apenas o campo progressista poderia vencer as eleições presidenciais, como a onda Bolsonaro talvez não viesse tão forte, e muitos quadros extremistas não teriam tantos votos na disputa para o legislativo e governos estaduais.

E mesmo que não vencêssemos, a vitória de Bolsonaro seria infinitamente mais frágil, porque teríamos saído mais unidos, com mais governadores, deputados e senadores, além de uma aliança muito grande na sociedade.

Ciro não “diminuiu” a importância de Lula ou do PT. Tanto ele como todo mundo apenas refletiam que havia – isso era notório – uma rejeição muito grande ao partido. O lançamento de um candidato condenado por corrupção era uma provocação perigosa, irresponsável, que atiçava todas as forças golpistas.

É fato que Lula tinha uma enorme força política. É candidato a presidente desde 1989, foi presidente duas vezes, seu partido tinha a maior bancada, um dos maiores tempos de TV e centenas de milhões de reais em recursos públicos eleitorais. Lula sempre teve força para levar quem ele desejasse para o segundo turno.

A grande discussão, antes do primeiro turno, sempre foi a articulação de uma candidatura para a vencer o segundo turno, não o primeiro, e, sobretudo, assentada sobre um conjunto de forças plurais, de esquerda, centro-esquerda, centro, liberais, centro-direita, que tornasse possível a governabilidade do próximo presidente.

Hoje estamos no pior dos mundos. Cabe a nós agora fazer um debate de alto nível, sem linchamentos mútuos, mas também sem jogar nada para debaixo do tapete. Os erros precisam ser discutidos à luz do dia, com transparência, e todos precisamos saber ouvir argumentos de todos os lados, sem bloquear ou apagar comentários críticos.

Não existem verdades absolutas. Ninguém está absolutamente certo. A verdade, na vida, é sempre dialética, ou seja, reside no próprio movimento eterno entre ideias contrárias.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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