Meu balanço de 2018

Lula nos braços da multidão após seu último discurso antes da prisão. Foto: Francisco Proner.

Chegamos à véspera do ano novo. Nada melhor do que curtir um descanso com a família, uma praia com os amigos ou uma cachoeira com o amor, não é mesmo?

Mais tarde, porque agora é hora de fazermos, nesta errante porém constante coluna, um balanço deste movimentado, se quisermos ser eufemísticos, 2018.

Começo fazendo uma autocrítica – o que é sempre saudável, seja de que atividade humana estejamos falando.

Escrevi um artigo, poucos dias após o 1º turno das eleições, listando os casos de violência com características fascistas que explodiram após a consistente vitória de Bolsonaro, a qual seria confirmada dali a algumas semanas.

Um dos casos que comentei foi o da suástica riscada com um canivete na barriga de uma mulher em Porto Alegre (aqui o artigo). Não tive o cuidado de colocar o caso na condicional, o que se mostraria mais prudente, tendo em vista que o laudo pericial e as demais evidências indicaram, algumas semanas depois, que há uma boa probabilidade de a lesão não ter sido obra de grupos nazistas e sim um automutilamento. As críticas às estapafúrdias palavras do delegado sobre o ocorrido permanecem válidas.

Pela falta de zelo, peço desculpas às leitoras e leitores.

A brutalização da sociedade brasileira, a qual inclui preocupantes semelhanças com períodos fascistas da história da humanidade, é, contudo, uma realidade.

Do contrário, não teríamos eleito para o posto máximo do país um cidadão que admite que não entende nada de economia – detalhe: em meio a uma gravíssima crise econômica – mas, como que para compensar, propõe as seguintes soluções para o grave problema da segurança pública: facilitar o acesso a armas de fogo e dar “retaguarda jurídica”, uma espécie de licença para matar, para a polícia. O fato de que as horrendas declarações do presidente eleito – sobre a ditadura militar e sobre minorias sociais, por exemplo – foram ou referendadas ou ignoradas pela maioria dos eleitores, na hora do voto, é outro indício de que o ranço autoritário e preconceituoso do nosso povo demandará ainda alguns anos para ser debelado.

As medidas aventadas para jogar pesado nessa questão aí da segurança pública estão fadadas ao fracasso, uma vez que, permanecendo as causas da criminalidade, os bandidos eventualmente mortos ou presos serão tranquilamente substituídos por outros. Nada indica que uma das causas profundas para a violência urbana, a desigualdade social, será mitigada.

O programa econômico sacramentado nas urnas é o ultraliberalismo de Paulo Guedes: menos investimento público em áreas fundamentais para a população, como educação e saúde; menos direitos trabalhistas, como Bolsonaro declarava, despudoradamente, durante a campanha; mais venda de patrimônio público, para (tentar) fechar as contas de um orçamento sugado impiedosamente pelo rentismo. Desenha-se, na área econômica, um governo ainda mais radicalmente antipopular do que o de Michel Temer ou do argentino Mauricio Macri, ambos com resultados catastróficos. Tem tudo para dar errado.

O ministro indicado pelo delirante Olavo de Carvalho para a pasta das relações exteriores, bem como o anunciado descaso com a proteção ao meio-ambiente, têm potencial explosivo para a já combalida imagem do Brasil no exterior. O alinhamento canino à política externa de Washington pode trazer, inclusive, prejuízos econômicos ao país: a China e os países árabes não demoraram a dar sinais claros de que não aceitarão passivamente uma postura estupidamente arrogante do novo governo brasileiro.

Na educação, teremos mais um ministro indicado pelo Olavão, com o que poderemos ficar tranquilos. O grande problema educacional da nação será, finalmente, combatido. Para quem não sabe, o que entrava a nossa qualidade eduacional é a… doutrinação marxista nas escolas. Risos.

As perguntas mais importantes que devemos, os militantes de esquerda, fazer neste grave momento, seja para nós mesmos ou nos acalorados debates políticos que aquecem a existência, são duas: como chegamos até aqui e como sairemos dessa. Ou seja, onde erramos e onde podemos atuar diferentemente.

Não falarei, neste breve balanço, da atuação dos dois marombados braços da direita – a mídia e o Judiciário – que desaguou na eleição de Bolsonaro. É muito mais produtivo, neste momento, identificarmos os erros do nosso campo para o atual estado de coisas.

Sob essa ótica, a trajetória do PT, partido que detém a hegemonia na esquerda brasileira desde 1989 e deteve o poder central de 2003 a 2016, é, logicamente, o grande caso a ser analisado.

Não obstante os consideráveis sucessos de seu período de governo, como nas relações externas e nas políticas para a Petrobras, por exemplo, o partido cometeu erros crassos, tanto por limitações do seu próprio programa quanto por limitações impostas pela conjuntura, que acabaram por pavimentar o caminho da extrema-direita até o poder. Vou citar aqui apenas (e fundamentais) quatro: ausência de luta para implementar reformas de base, quando tinha força política para ao menos suscitar o debate na sociedade; ausência de uma política efetiva de comunicação que fizesse frente à máquina do oligopólio midiático; as trágicas nomeações para o STF; a prostração diante da Lava Jato enquanto ainda tinha poderes para fazer o enfrentamento.

Os erros cometidos pelo PT no período eleitoral de 2018 foram tão ou mais decisivos. A estratégia suicida de substituir Lula por Haddad no último momento, com o antipetismo nas alturas e a prisão de Lula sendo vista como justa pela maioria da população, provou-se, de fato, suicida. Muito embora ela fizesse sentido inicialmente como constrangimento ao bloco mídia/Judiciário, uma vez que Lula figurava em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, com o passar do tempo foi ficando evidente que nenhum petista, exceto – talvez – a figura mítica de Lula, poderia derrotar o antipetismo nas urnas.

É claro que retirar a candidatura e apoiar outro candidato do campo progressista – falo, obviamente, de Ciro Gomes – seria uma atitude surpreendente, embora fosse a mais responsável com o país, por parte do PT: partidos políticos tendem a lutar com unhas e dentes para manter uma hegemonia conquistada.

O PT, contudo, levou a arte da irresponsabilidade às raias do absurdo, ao sabotar abertamente a candidatura de Ciro, um aliado histórico, como no constrangimento ao PSB para que não apoiasse o pedetista e permanecesse em uma patética neutralidade na disputa, o que desmanchou alianças estaduais e criou tensões dentro do próprio PT, do PSB e do PDT. Uma bela contribuição para o desagregamento do campo progressista.

Diante de tamanhos erros e hegemonismo irresponsável, é absolutamente saudável a criação de um bloco parlamentar de centro-esquerda fora da asa do PT, do qual fazem parte, por enquanto, PDT, PSB e PCdoB. A declaração de Fernando Haddad, de que um bloco de esquerda sem o PT “não é tão de esquerda assim”, apenas demonstra a necessidade profunda de uma autocrítica petista. Tamanha empáfia não é condizente com um partido que só faz diminuir em número de votos, no primeiro turno das eleições presidenciais (quando o voto é mais orgânico), desde seu ápice, em 2006.

A empáfia, aliás, é contraproducente em qualquer situação. Humildade e autocrítica são as chaves para o desenvolvimento humano ou de suas organizações.

O prognóstico para o PT no próximo período é desanimador, considerando sua primeira grande decisão: não comparecer a posse de Bolsonaro – assim como o PSOL. Se a ideia da esquerda é criar pontes com uma sociedade que, politicamente, endireitou, demonstrar um certo desprezo pela escolha da população, boicotando a posse do escolhido pela maioria, não parece nada promissor.

Ciro Gomes, por sua vez, desempenhou um importante papel no ano que finda. Sua participação no processo eleitoral qualificou enormemente o debate, mesclando a apresentação de um consistente projeto, a crítica às limitações do PT (destaque para a questão da desindustrialização do país), os costumeiros ataques ao rentismo e as contundentes críticas à Lava Jato, Bolsonaro e a direita em geral.

Ciro mostrou-se um arguto observador da política nacional. O candidato dizia, meses antes do início do período eleitoral, que Lula faria um bem ao país se retirasse sua candidatura, para que pudessem ser discutidos os projetos de nação e a eleição não virasse, como virou, um insano e passional plebiscito. Lula tinha o direito de ser candidato e a manutenção do seu nome como concorrente me parecia, à época, correta. A tese de Ciro provou-se, ao final, acertada.

A revolta e a raiva manifestadas por boa parte da militância de esquerda – que tentou desesperadamente remediar o irremediável no segundo turno – com a ausência de Ciro na campanha de Haddad são reações cem por cento emocionais; usando-se a razão, não fazem nenhum sentido. Diante da magnitude dos erros petistas para o atual estado de coisas, a postura de Ciro no segundo turno certamente não é elemento a se considerar, além de ser estrategicamente compreensível.

Foram muitos fatos marcantes nos últimos 365 dias, mas nenhum evento político de 2018 suplantará, em importância histórica, a prisão de Lula.

Sua trajetória inverossímil – retirante nordestino, torneiro mecânico, líder sindical, presidente da República e político mais popular do país – não poderia passar incólume diante da máquina de moer gente composta pela dupla mídia/Judiciário.

Lula está na cadeia sem que tenha sido apresentada uma mísera prova de que cometeu algum crime. Delações arrancadas à base de tortura (prisões preventivas por tempo indeterminado) e manipulação grotesca da opinião pública são os frágeis elementos que sustentam o encarceramento do presidente mais bem avaliado de nossa história. Sergio Moro, o grande expoente dos métodos medievais de atuação da Lava Jato e responsável pela condenação de Lula, facilitou o trabalho das historiadoras ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, o candidato diretamente beneficiado pela exclusão do ex-presidente da disputa. Não há como o viés político e golpista da operação ficar mais escancarado.

A prisão de Lula é mais um episódio triste da história do Brasil e da humanidade. Um ato autoritário, violento e injusto para que nem mesmo um partido moderado como o PT ouse mexer, ainda que superficialmente, nas estruturas de poder históricas brasileiras.

Seu gesto de entregar-se, quando poderia muito bem pedir asilo em uma embaixada, pode ter sido contraproducente no curto prazo. No longo, entretanto, a tendência é que o gesto consolide, no imaginário popular, a truculência da direita brasileira encastelada na mídia e no Judiciário e contribua para a democratização desses dois setores.

Monja Coen, popular monja zen budista, visitou Lula na prisão, no primeiro semestre, e ficou impressionada com o que viu. Em entrevista após a visita, afirmou que Lula não nutria nenhum ódio por seus algozes, muito embora estivesse, por óbvio, indignado com a injustiça que sofreu e que é renovada a cada dia. Muitas vezes é Lula quem tem que tranquilizar seus visitantes, revoltados com a prisão, e não o contrário, como poderia se supor.

Lula cometeu graves erros estratégicos mas, ainda assim, é um dos políticos mais habilidosos do planeta, como a simples descrição da sua trajetória demonstra. Muito embora tenha atingido o status de figura lendária da política nacional, ainda é um ser humano, afinal. Merece toda a nossa solidariedade e admiração pela resiliência diante da brutalidade.

Que em 2019 possamos ter a força psicológica de Lula, mantendo-nos altivos diante da onda reacionária, sem, contudo, perdermos a disposição para a luta.

Que tenhamos também sabedoria, para não insistirmos em erros estratégicos cometidos especialmente pelo ex-presidente e seu partido.

Obrigado a todos os que me acompanharam aqui no Cafezinho durante este duro, porém instigante ano.

Em 2019 tem mais. Até lá.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.