Alguns pitacos sobre o coroné

São lamentáveis, constrangedores, esses quiprocós em que Ciro se mete, frequentemente de maneira gratuita, onde parece perder toda a sua compostura.

Se ele não conseguir demonstrar maior controle emocional nessas intervenções, a sua função como liderança política acabará por ser comprometida.

Por outro lado, independente desses vícios, é estimulante – por ser tão raro – assistir alguém se expressar, como faz Ciro, com tanta independência, franqueza e coragem intelectual, sem medo de enfrentar corporativismos sindicais e burocráticos, tabus morais e políticos, mídias conservadoras ou progressistas. É por isso que um número crescente de pessoas, mesmo que às vezes um pouco chocadas com os excessos temperamentais de Ciro, se interessa por seu discurso.

A oposição precisa ter um discurso inteligente, estratégico, firme contra o governo Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, como demonstração de inteligência e humildade, a oposição precisa criticar os erros cometidos pela esquerda desde que ganhou o poder em 2002. Naturalmente, para isso, não pode apelar ao falso moralismo, ao radicalismo oportunista, às falsidades, injustiças e mentiras que se acumularam contra o partido dos trabalhadores.

Por ter ocupado a presidência da república por tanto tempo, o PT acabou por simbolizar, na cabeça do povo, toda a esquerda, com seus vícios e glórias, e por isso a crítica aos erros do petismo é, em verdade, uma autocrítica, uma crítica que lançamos contra nós mesmos, além de ser a  única maneira de resgatar a perdida hegemonia moral na opinião pública brasileira.

Conforme lembrou Ciro no encontro dos policiais antifascismo, precisamos voltar a ler Gramsci!

Mesmo com todos seus defeitos, é indiscutível que Ciro tornou-se uma presença perturbadora, influente e disruptiva no cenário político nacional.

Ciro não virou uma “nova Marina”: não se rendeu ao moralismo, não se deixou empurrar para a direita, estabeleceu-se num partido sólido e ideológico, e, sobretudo, não perdeu o espírito de combate.

Apenas nos últimos dias, Ciro lançou um novo programa em seu canal no Youtube, participou de um debate sobre a reforma da previdência com populares de Fortaleza; veio ao Rio para outro debate sobre a previdência, em Bangu, um dos bairros mais pobres e populosos da cidade; correu para Unirio no mesmo dia, para mais um debate, junto com o vereador Tarcísio Motta (Psol); viajou a Recife, lotando um auditório na Universidade Católica, ao lado do deputado Tulio Gadelha; concedeu duas entrevistas ao Diário de Pernambuco e uma à Folha; e, por fim, esteve presente, ainda na capital pernambucana, com Marcelo Freixo e Maria do Rosário, no encontro de policiais antifascismo, onde sua performance provocou um pequeno terremoto nas redes sociais, com vídeos seus viralizando à direita e à esquerda. Nesta sexta, Ciro volta ao Rio para um debate no Clube de Engenharia.

O saldo midiático de toda essa exposição tem sido curioso. Antes mesmo da polêmica com Maria do Rosário, mas já durante sua passagem por Recife, Ciro havia enfurecido seus críticos quando disse, a um repórter da Folha, que não tinha mais interesse em visitar o ex-presidente Lula na prisão.

Trecho:

Questionado se tinha mágoa do petista após as eleições do ano passado, quando Lula costurou nos bastidores o isolamento do pedetista, Ciro respondeu que não.

“Que mágoa, amigo? Eu faço política. Ele [Lula] que pediu ao Lupi para ir. Não pediu a mim para ir não, embora, se pedir, eu não vou mais”, disse.

O Brasil 247, um dos blogs da esquerda mais críticos a Ciro, reagiu imediatamente, afirmando, em manchete garrafal, que “Ciro decreta seu fim político ao dizer que não visitará Lula”.

Após o ocorrido no encontro dos policiais antifascismo, o DCM, blog importante do campo progressista e costumeiramente muito crítico a Ciro, afirmou, também em manchete garrafal, que “Ciro Gomes não é apenas destemperado: com ódio, se tornou perigoso”. Logo em seguida, o mesmo blog publicou editorial com o título “Ciro está preso”.

O Tijolaço, do companheiro Fernando Brito, ainda sob impacto da declaração do pedetista, de que não tinha interesse em visitar Lula, escreveu que “Ciro se tornou um minion de si mesmo”.

Os influencers mais próximos do PT, por sua vez, tem trabalhado com muita determinação para desconstruir a imagem de Ciro.

Covarde, fujão, oportunista, coronel, truculento, traidor, são alguns dos adjetivos carinhosos com os quais ele é tratado na maioria das bolhas petistas.

Verdade seja dita, essa animosidade contra Ciro junto a alguns setores da esquerda não começou hoje; é um processo antigo, de alguns anos, e que se intensificou de maneira dramática ao longo de 2018, quando o trabalhista deixou claro que seria candidato a presidência da república. 

À direita, vídeos do quiproquó em Recife foram parar nas páginas do MBL e em muitos perfis famosos, e igualmente não de maneira elogiosa, pondo sempre em relevo o temperamento colérico e explosivo do trabalhista.

O MBL, aliás, tem produzido regularmente vídeos destinados a desconstruir Ciro Gomes, e a alertar seus seguidores para o “perigo” que ele representa.

Toda essa falação em torno de Ciro tem elevado, contudo, o interesse por seus discursos e entrevistas.

O apresentador Marcelo Tas, de olho no potencial polêmico de Ciro, e impressionado com o barulho da militância cirista nas redes, chamou-o para abrir a reinauguração do Provocações. O  vídeo do programa com a entrevista do Ciro já tem 355 mil visualizações.

A entrevista de Ciro ao programa Mynews, realizada há duas semanas, já é o segundo vídeo mais visto no canal, com 806 mil visualizações, quantidade rara para um conteúdo de uma hora e meia de puro jornalismo político.

Segundo o Google Trends dos últimos  30 dias, nas categorias Notícias / Youtube, o trabalhista vem superando até mesmo Lula, em quantidade de menções.

É muito interessante que o campo progressista tenha um elenco plural, diverso, de lideranças, capazes de atingir públicos diferentes, e penetrar em espaços até então bloqueados às ideias e valores de um projeto nacional de desenvolvimento.

Não acho que, a essa altura, podemos nos dar ao luxo, como tentam fazer regularmente alguns blogs, de decretar a “morte política” de um líder como Ciro Gomes.

Que Ciro Gomes, assim como Fernando Haddad, Flavio Dino, Freixo, Guilherme Boulos, Sâmia Bonfim, Natália Bonavides, Tábata Amaral, tenham espaço em nossas mídias e vida longa na política!

Que nossas mídias sejam transparentes e tenham, cada uma, sua opinião e suas preferências, mas que permitam aos internautas que formem sua opinião sem manipulação. Ao se comentar uma entrevista de Haddad, que se informe sempre o link original para o internauta assistir ao vídeo por si mesmo, e que valha o mesmo para Ciro, Boulos e Freixo!

Voltando ao “barraco” em Recife.

O discurso de Ciro tem início em 2:18:33.

Depois das intervenções de Orlando Zaccone, anfitrião do evento, Marcelo Freixo e Maria do Rosário, Ciro foi o último a falar. O ex-ministro começou a palestra de bom humor, fazendo a plateia rir com piadas e indiretas, mas logo começou a tensionar e provocar, denunciando o fracasso da política de segurança pública dos governos de esquerda, que ele fez questão – enfaticamente, com gestos, batendo com força no peito – de chamar de “nossos”, para deixar claro que era uma autocrítica em que ele se incluía.

Ciro lembra a evolução espetacular da população carcerária ao longo dos anos Lula/Dilma, que passa de 240 mil presos em 2002 para 727 mil presos em 2016, segundo dados oficiais.

De fato, a política de segurança pública dos governos petistas precisa ser examinada sob uma ótica muito crítica, porque esteve, o tempo inteiro, contaminada de um pesado punitivismo, além de ter contribuído para que houvesse uma perigosíssima transferência (como depois ficou patente com a Lava Jato) de poder para a burocracia jurídico-penal do Estado.

A quantidade de brasileiros encarcerados de maneira apenas “provisória”, ou seja, sem que haja uma simples sentença de condenação e, portanto, sem que tenham tido a chance de se defender, passou de 80 mil em 2002 para 292 mil em 2016.

O aumento do encarceramento ocorreu sem que se notasse qualquer melhora nos índices de segurança pública nas cidades. Ao contrário, o mesmo período testemunhou a consolidação de grandes quadrilhas do crime organizado, a partir inclusive das prisões, de grupos poderosos de milícia, além do aumento dos crimes de morte, estupros e violências de todo tipo.

– Vocês sabem o que mudou na Segurança Pública do país entre 2002 e 2016 ? Nada ! E se mudou, foi para pior”, denunciou o ex-ministro.

O quiprocó teve início quando Ciro se aproxima da conclusão de seu raciocínio. Ele explica que, para o cidadão comum, pobre, as coisas não tinham evoluído praticamente nada no quesito segurança pública. E aí faz uma pequena provocação, dizendo que a política de segurança de Bolsonaro, no frigir dos ovos, não era tão diferente assim daquela praticada pelos governos petistas.

Maria do Rosário, que vinha murmurando, fazendo caretas e se agitando na cadeira, eleva o tom de voz, ao ponto de Ciro interromper sua fala e lhe oferecer o microfone.

A partir daí, Ciro será interrompido mais quatro vezes pela deputada, sempre lhe oferecendo o microfone – que era prontamente aceito.

O ponto alto da fala do ex-ministro é quando ele diz “eu conheço vocês, unidade é o cacete!”, vocalizando um sentimento hoje muito forte no PDT, de que os discursos em favor da “unidade” são destituídos de sentido, pois não há mais nenhuma identificação programática e ideológica entre o trabalhismo e o petismo. Ao contrário, o trabalhismo cada vez mais olha para o período petista como um pesadelo neoliberal, em que a ascensão social das famílias mais pobres foi obtida por meio de programas compensatórios que fazem parte do receituário conservador, sem que tenha havido nenhuma mudança estrutural num regime econômico que concentra renda, destroi indústrias e impede, definitivamente, a realização de um projeto nacional de desenvolvimento.

Para grande parte dos trabalhistas, além disso, o PT cometeu, em 2018, um dos maiores estelionatos políticos da história da esquerda brasileira, ao procurar iludir a população com a candidatura de Lula, mesmo sabendo de sua impossibilidade jurídica.

Na hipótese (quase impossível) de não ser cassado antes do pleito, poderia sê-lo depois, trazendo enorme instabilidade política ao país e sofrimento ao povo. Não há justificativa plausível para o que foi feito.

Mesmo sabendo disso, Lula seguiu em frente com sua candidatura fraudulenta, e ainda fez de tudo para desmontar as articulações que o PDT vinha costurando, com o PSB, o PCdoB e o centrão, que dariam a Ciro tempo de TV, recursos partidários e musculatura política para poder enfrentar Bolsonaro. Ciro agregava o centro, e não apenas tinha mais chances de vencer Bolsonaro (como todas as pesquisas demonstravam, e o bom senso também) – como gozava de melhores condições para montar um governo minimamente estável. Com um governo progressista, moderado, de centro-esquerda, poderíamos iniciar uma transição de volta à normalidade democrática, e ir desativando aos poucos esses mecanismos descontrolados de repressão, muitos deles fortalecidos por erros políticos terríveis cometidos pelo PT, como nomeações descuidadas para tribunais superiores, concessão irresponsável ao corporativismo jurídico-policial e, sobretudo, ausência de uma estratégia de inteligência e comunicação para manter a hegemonia moral e política sobre o conjunto da burocracia do Estado.

É por causa desses fatores que Ciro está “magoado”, embora eu não ache que isso deva justificar ou desculpar suas derrapadas temperamentais. Mas não é apenas Ciro que está magoado com Lula e o PT; as urnas mostraram que dezenas de milhões de brasileiros também estão, e magoados em tal escala que preferiram votar em alguém que não representa seus interesses, apenas para vetar uma eventual volta do PT ao poder.

A propósito, o blog do Lauro Jardim publicou uma nota hoje sobre a visita de Carlos Lupi a Lula:

Carlos Lupi esteve recentemente em Curitiba e quis saber se, com Jair Bolsonaro eleito, Lula não se arrependia de ter brigado pela candidatura própria, em vez de ter apoiado Ciro Gomes em 2018.

Lula disse, convictamente, que faria tudo de novo.

Diante disso, e das entrevistas recentes de Lula, em que ele já deixou claro que não se arrepende de nada, qual o sentido em esperar que Ciro tenha qualquer interesse em visitar Lula?

Lula pode receber cartinha do Papa, que é santo e não conhece o jogo pesado da política brasileira. Aqui na terra da política, da discussão laica e objetiva, o buraco é bem mais embaixo!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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