Questões morais sobre a Lava Jato

“O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”, Pascal.

O vazamento de conversas ilegais travadas entre procuradores da Lava Jato e Sergio Moro, revelado por reportagem do Intercept, oferece oportunidade para infinitas reflexões, sobretudo para a relação sempre turbulenta entre o direito penal e a democracia.

A solidez e autenticidade das democracias sempre estiveram intimamente relacionadas à qualidade de seus sistemas penais.

Nas antigas democracias gregas, o juiz era escolhido por sorteio, pois este era visto como um método ainda mais democrático do que o voto, onde influências externas (leia-se suborno) sempre poderiam falar mais alto. O mandato durava apenas um ano, ao cabo do qual o desempenho do magistrado era avaliado por seus pares com muito rigor: se a maioria concluísse que alguma das decisões daquele juiz tinham causado prejuízo à cidade, ele era duramente punido.

Mesmo assim, dizem estudiosos contemporâneos, havia corrupção no processo, porque havia um “mercado negro” ao lado da ágora, onde os sorteados vendiam sua posição, ou seja, renunciavam a seus cargos, para que houvesse outro sorteio, ou se ofereciam como lobistas de interesses escusos de algum poderoso de então.

Já escrevi vários posts aqui sobre as primeiras leis escritas. Os capítulos iniciais do Código de Hamurabi, a constituição babilônica que estabilizou o Mediterrâneo por séculos, fazem referência aos castigos impostos à falsa denúncia e aos maus juízes.

Essas coisas nos levam a pensar que o Direito Penal nunca tratou, objetivamente, de Justiça, tampouco de Moral, mas antes foi um esforço da inteligência humana para reduzir os riscos enormes contidos no arbítrio, ou seja, nas decisões tomadas com base nas paixões individuais dos poderosos.

Tanto Pascal, o grande filósofo francês, como, séculos mais tarde, Hans Kelsen, um dos fundadores do direito liberal moderno, tratarão de distinguir claramente Direito e Justiça.

Pascal lembra, citando Montaigne, que “as leis são respeitadas não porque são justas, mas porque são leis”. Ou seja, se o povo ficar sabendo que um juiz ou governante, em nome da “justiça”, violou as leis, qual a razão para que ele, o povo, também as respeite, ainda mais considerando que as leis custam sempre mais caro ao povo do que aos juízes e governantes?

Já um dos pontos centrais do pensamento de Kelsen é justamente a necessidade de separar Direito e Moral, ou Direito e Justiça; porque, segundo ele, a “tese de que o Direito é, segundo sua própria essência, moral (…) conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estatal”.

Aliás, a distinção já estava no Antigo Testamento: afinal não era isso que Eclesiastes queria dizer quando alertava: “não sejas demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo?”

Essa distinção não se dá porque a Justiça seja um conceito negativo ou inútil, que não deveria ser associado ao Direito. É o contrário. A Justiça é um conceito alto demais, puro demais, inatingível demais, livre demais, para que o homem comum possa se tornar seu proprietário exclusivo.

Ao homem cabe lutar e aspirar por justiça, mas com a humildade de quem sabe que não poderá jamais associar a sua luta e seus anseios pessoais com a própria Justiça. E isso pelo simples fato de que é apenas um homem – ou uma mulher – sujeito aos vícios, paixões e confusão que caracterizam a todos. E aquilo que consideramos justiça muitas vezes não o é.

Por exemplo, para Sergio Moro e Dallagnol, condenar Lula era um ato de Justiça, um imperativo moral.

Ignorantes, vaidosos, ébrios pelos holofotes da mídia, não refletiram que não cabia a eles fazer um julgamento moral ou político, tanto no caso Lula como em todos os outros.

Os trechos vazados mostram o que denunciamos inúmeras vezes neste espaço, que Moro combinava o ritmo das operações com o Ministério Público. A agenda política de 2014 a 2018 foi inteiramente controlada pela Lava Jato.

Na verdade, o modus operandi vem de antes, vem desde o julgamento do mensalão.

Aliás, justamente por vir de antes é que não considero nem PT nem Lula como “vítimas”.

Lula, para mim, não é propriamente um “preso político”, mas um político preso injustamente, por um processo judicial profundamente viciado, seguido de uma sentença frágil, onde não se apresenta provas de seu crime.

Para mim, a vítima é a nossa democracia, e, sobretudo, a população brasileira, exposta à crise econômica, ao desemprego, à fome, por causa dos erros e crimes de nossas elites políticas.

Lula e PT, no entanto, são politicamente culpados porque foram alertados, por muita gente, de que havia um processo golpista e autoritário em curso, cujo epicentro eram justamente essas conspirações midiático-judiciais.

Como diz Pedro Serrano, um dos juristas que, junto com Rubens Casara,  vem há tempos alertando para o acelerado avanço do estado de exceção dentro das nossas instituições judiciais, em comentário enviado por whatsapp:

“O que era uma crítica teórica feita por acadêmicos, crítica jurídica feita por juristas, e crítica política realizada por ativistas se transformou em prova de que parte do Sistema de Justiça brasileiro se tornou fonte da exceção, não do direito”.

E o que fizeram nossas lideranças de esquerda? Alimentaram ainda mais o autoritarismo do Ministério Público: cederam à famigerada lista tríplice na escolha do Procurador Geral da República; escolheram nomes para os tribunais superiores baseados em critérios pouco refletidos; e, por fim, apoiaram e sancionaram leis penais de exceção, como a da delação premiada, a de organização criminosa, e a da ficha limpa, sem as quais a Lava Jato não seria possível.

Naturalmente, você poderia dizer: não tinha como ser de outro jeito. Bem, se formos pensar assim, então ninguém mais terá responsabilidade política por nada. Tudo que for feito na política, será sempre o que não podia ser de outra forma. Esse fatalismo é profundamente antipolítico.

Entretanto, a culpa de Lula e do PT é puramente política. Ninguém merece ser preso por elas, mas apenas perder eleições.

São erros, não crimes.

A culpa de Moro, Dallagnol, e de todos operadores jurídicos e midiáticos no entorno da Lava jato, não é apenas política. É de uma ordem mais grave: crimes, violações éticas, traições imperdoáveis ao Estado Democrático de Direito.

Vamos olhar um dos diálogos vazados, entre Moro e Dallagnol,  na parte 4 da reportagem do Intercept.

Moro aconselha Dallagnol a “agilizar” o julgamento de um réu porque este teria sido absolvido (na segunda instância, pelo que entendi).

Estamos falando aqui de liberdade.

Os liberais, os conservadores, os americanófilos, tão empoderados nos últimos tempos pela eleição de Bolsonaro, deveriam entender o valor real do conceito de liberdade.

Segundo Kelsen, o príncipe do liberalismo jurídico, “a democracia é um regime justo somente sob a premissa da liberdade individual ser o fim maior”.

Se temos um magistrado, um servidor federal da instituição mais onerosa aos cofres públicos, conspirando com o Ministério Público, ao arrepio da lei, para tolher a liberdade de um cidadão, então este servidor é um inimigo da democracia, é um delinquente, e deve pagar caro por isso.

Quais as outras vítimas de Sergio Moro?

Quais as vítimas de outros magistrados que seguem o exemplo de Moro?

É sabido que a punição tem um efeito didático. Como é impossível punir todos os criminosos de uma só vez, vale o argumento de que estes se sentirão intimidados se virem que o tipo de crime que eles cometem está sendo investigado e punido. E daí o criminoso em potencial desistirá de cometer o crime, e o país e a sociedade serão poupados do mal que seria cometido.

Por isso, urge punir Sergio Moro e Dalton Dallagnol.

Urge libertar Lula, preso num processo viciado e sem provas. Urge paralisar todos os outros processos em curso contra ele, para que sejam analisados por outros magistrados, outros tribunais, e outros procuradores, sob vigilância severa da sociedade e de órgãos judiciais superiores.

Urge iniciar um debate profundo sobre os erros da Lava Jato e os prejuízos incalculáveis – sociais, econômicos, políticos – que a operação trouxe ao país. Como não é possível voltar no tempo, precisamos encontrar meios para corrigirmos os erros cometidos.

O combate à corrupção precisa continuar, mas sem Lava Jato, sem essa grife escandalosamente golpista, que agiu politicamente o tempo inteiro, sem nenhum apreço pela verdade, pela lei, pelo país.

As operações da Polícia Federal precisam ser específicas, focadas, autônomas, enxutas. Megaoperações concentram poder e geram distorções, além do risco de instabilidade jurídica e política se forem descobertas irregularidades no processo.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) precisam funcionar como instâncias externas, independentes, e coibir, na raiz, qualquer abuso ou excesso de seus membros.

Pascal, numa de suas tiradas mais belas e misteriosas, aborda as contradições inerentes à força e à justiça. Para o pensador, “é justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o mais forte seja seguido. A justiça sem força é impotente; a força sem justiça é tirânica”.

Sim, o Brasil precisa de uma justiça forte; se esta justiça, porém, não estiver aferrada rigorosamente ao código penal e aos valores democráticos que o fundamentam, ela não será justa, nem democrática, nem forte; será apenas um devaneio autoritário e instável, de breve duração.




Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.