A inconstitucionalidade da “PEC dos Recursos”, ou “PEC Peluso”
Por Eronilton Cavalcante de Araújo Silva
Após o julgamento das ADC’s 43, 44 e 54, que foram julgadas procedentes por 6 votos a 5 no plenário do STF, muitos acharam que o problema estaria resolvido. Ou seja, que a Constituição seria de fato respeitada e que o princípio da presunção de inocência estaria resguardado.
Mas não houve tempo sequer para comemorarmos. O voto do presidente Dias Toffoli, ainda que favorável às ADC’s, deixou os punitivistas esperançosos. Aliás, o que foi aquele voto de Toffoli? Falei no Twitter logo após: “Voto híbrido: a favor e contra as ADC’s.” Explico: voto importante para garantir o cumprimento da Constituição, mas altamente perigoso pelo fato de abrir brecha para supressão da garantia através do Poder Legislativo. Não deu outra.
Vários congressistas e juristas iniciaram, imediatamente, uma discussão voltada ao ressurgimento da chamada “PEC Peluso”. Para os que estão alheios à essa Proposta de Emenda à Constituição, faz-se necessária uma contextualização rápida.
A “PEC dos Recursos” foi apresentada em 2011 pelo então presidente da Suprema Corte, Cezar Peluso. Ela traz como ponto principal a imediata execução de decisões judiciais após pronunciamento dos tribunais de segunda instância, ou seja, dos TJ’s e TRF’s, com a finalidade de dar mais agilidade às decisões judiciais, segundo o ex-ministro.
A PEC incluiria os seguintes artigos no corpo constitucional:
“Art. 105-A: A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte.
Parágrafo único: A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento.
Art. 105-B: Cabe recurso ordinário, com efeito devolutivo e suspensivo, no prazo de 15 (quinze) dias, da decisão que, com ou sem julgamento de mérito, extinga o processo de competência originária:
I – de Tribunal local, para o Tribunal Superior competente;
II – de Tribunal Superior, para o Supremo Tribunal Federal.”
Em linhas gerais, o objetivo desta PEC é garantir a execução da pena, nos processos criminais, após a condenação em segunda instância. Ou seja, não se está querendo alterar o conceito de trânsito em julgado em sua totalidade, mas apenas antecipá-lo. E aí está o busílis, pois há graves incoerências nessa proposta de emenda. Senão vejamos.
Os recursos extraordinários e especiais perderiam suas naturezas de… recurso. Seriam meras ações autônomas. Como a ação rescisória, por exemplo. Alegava Peluso que nestes recursos não se debate mais a questão das provas, mas apenas questões puramente de Direito. O mesmo argumento utilizado pela minoria no julgamento das ADC’s mencionadas acima.
Hoje, o acusado tem direito a quatro instâncias, por assim dizer: Juízo de primeiro grau, e aqui entra também o Tribunal do Júri; segunda instância, os TJ’s e TRF’s; STJ por meio do Resp; STF através de RE. A PEC propõe eliminar duas instâncias para concretizar-se o trânsito em julgado.
O artigo 60, parágrafo 4, inciso IV, da CRFB/88, diz que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. O princípio da presunção de inocência é garantia individual pois está expresso no art. 5, inciso LVII da nossa Carta Magna.
Os juristas favoráveis à PEC insistem em sua constitucionalidade, pois entendem que na Constituição não existe conceituação expressa do “trânsito em julgado”. Logo, não seria inconstitucional. Mas o conceito desse instituto é algo que vem sendo construído e aceito por todos indistintamente. Só se caracteriza o trânsito em julgado de uma decisão quando desta não cabe mais recurso.
José Carlos Barbosa Moreira dizia que “por trânsito em julgado entende-se a passagem da sentença da condição de mutável à de imutável.” Logo, se há, ainda que mínima, a possibilidade de alterar uma sentença, não há que se falar em trânsito em julgado.
E mesmo que houvesse dúvida quanto a isso, deveria ser efetivada a interpretação que melhor proteja o princípio da presunção de inocência, por ser um direito fundamental do indivíduo.
Há ainda o fato do STF perder sua prerrogativa de exercer o controle da justiça criminal nas instâncias inferiores.
O legislador titular do poder constituinte derivado reformador não pode alterar a Constituição para abolir direitos fundamentais, pois estes são cláusulas pétreas. A presunção de inocência deve prevalecer até a palavra final dada pelo STF.
Assim sendo, entendo ser inconstitucional a “PEC Peluso”, ou “PEC dos Recursos”, como queiram, pois estaria ferindo de morte a garantia trazida pelo art. 5, LVII da Constituição, por estar suprimindo duas instâncias jurisdicionais, fazendo com que o trânsito em julgado se caracterize após decisões dos Tribunais de segunda instância.
Estejamos vigilantes, pois o oportunismo político e o moralismo sem moral farão esforços hercúleos para emplacar narrativas sensacionalistas e mentirosas, além de interpretações descabidas para passar um ar de constitucionalidade ao que é flagrantemente inconstitucional.
Eronilton Cavalcante de Araújo Silva
Advogado, formado em Direito pela Faculdade Estácio de Sergipe. Inscrito na OAB/PE sob o n.º 44.338. Extremamente garantista, defensor dos Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito.