Os homens que (achavam que) não tinham ideologia

- Vamos ter que vender alguns móveis do Planalto também. - Talkey. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Duas coisas me saltaram aos olhos durante a leitura deste interessante perfil do ministro Paulo Guedes publicado na revista Piauí em setembro de 2018.
A primeira é o mundo estranho à maioria dos brasileiros no qual Guedes vive: negócios envolvendo centenas de milhões de reais, sociedades com magnatas do mundo das finanças, aventuras na bolsa de valores. Em uma destas, na qual Guedes passou um tempo em uma modalidade arriscada de negociação, dois de seus ex-sócios estimam seu prejuízo em R$ 20 milhões.
Tendo em vista este histórico, não surpreendem declarações como a de que “Os ricos capitalizam seus recursos, os pobres consomem tudo”. Se um cidadão que ganha um salário mínimo desse um jeito de guardar todo o seu salário e ainda sobreviver, demoraria mais de mil anos para juntar R$ 20 milhões, valor aproximado que Guedes perdeu em um período infeliz de negócios na bolsa.
O segundo elemento que me surpreendeu foi outra faceta de Guedes, o primarismo, revelado por uma frase proferida em sua primeira conversa com Jair Bolsonaro, conforme a reportagem da Malu Gaspar : “Olha o custo, olha como a ideologia é cara. É burrice ter ideologia”. O ministro se referia à ideia de vender a Petrobras: “Lá atrás, se a Petrobras tivesse sido vendida, a dívida pública teria sido paga. Hoje, paga quarenta bolsas-família! Dava dinheiro de graça para o povo”.
Guedes havia sugerido a Bolsonaro privatizar todas as estatais brasileiras. O então candidato teria ficado chocado, assim como ficaria qualquer interlocutor com o mínimo de bom senso — e olha que bom senso não é exatamente o forte do ex-capitão.
Em uma matéria da BBC sobre empresas estatais e privatizações é citado o seguinte levantamento de um think thank baseado na Holanda: entre 2000 e 2017 houve, no mundo, pelo menos 835 casos de “remunicipalização” de empresas privatizadas. Alguns dos problemas observados durante as gestões privadas foram o não cumprimento de investimentos previstos em contrato, a queda na qualidade do serviço, a falta de transparência e o aumento de preços.
Esse tipo de problema está, me parece, umbilicalmente ligado à lógica que prevalece em qualquer empresa privada: a do lucro. Se for necessário prestar um serviço de má qualidade e ainda aumentar os preços para manter a rentabilidade da empresa, que seja.
Ocorre que há áreas de tal maneira essenciais para a sobrevivência de um ser humano que, penso eu, não podem estar submetidas à lógica do lucro. Saneamento, saúde e educação, por exemplo, devem ser garantidos pelo poder público a todos, sem distinção. É evidente que esta visão é condicionada por minha ideologia de esquerda, a qual tem como uma de suas premissas, grosso modo, a de que todas as pessoas têm o direito de viver com dignidade.
É importante ter clareza sobre as premissas ideológicas que norteiam nossas opiniões. Cada um de nós é um universo único. Somos influenciados inicialmente por nossa criação, depois pelos amigos, mais tarde pelas mídias por meio das quais nos informamos. Nossa herança genética também tem seu papel e até, para quem acredita em reencarnação, insondáveis experiências de vida anteriores a esta.
Pretender flanar acima das ideologias, como se fosse possível um raciocínio totalmente neutro sobre a realidade, sem a influência de quaisquer ideias pré-concebidas, é positivamente estúpido. Todo pensamento é ideológico. A diferença é se você está consciente da ideologia que impregna sua visão de mundo ou não. O louvado ministro Paulo Guedes veste a camisa do segundo time. Para ele, é burrice ter ideologia. Ou seja, o ministro está completamente cego por sua própria ideologia, a ponto de nem percebê-la. A influência do liberalismo econômico sobre a mente de Guedes é tão grande que Guedes não o percebe como uma teoria, baseada em premissas ideológicas, mas como A Verdade Inquestionável.
Daí se compreende sua ideia de que basta vender todas as estatais — todas! — e os problemas do país se resolverão. A fé cega no dogma do “livre mercado” leva o ministro a propor uma medida simplória para dar conta de problemas extremamente complexos. Não há receita pronta. Há países com muitas estatais, há países com poucas estatais. O bom senso indica que devemos analisar as peculiaridades brasileiras e buscar um modelo equilibrado, de acordo com os objetivos da nossa sociedade inscritos na Constituição. Propor que nos desfaçamos de todas as empresas estatais, sem qualquer critério, e esperemos que o mercado resolva tudo é, como costuma definir o Ciro Gomes, maluquice ideológica vendida como ciência.
Para sermos justos, não é só o ministro Guedes que apresenta esta dificuldade de perceber sua própria ideologia no atual governo. Basta relembrarmos das promessas de uma política externa “sem ideologia” e verificarmos que, na prática, em diversas ocasiões, colocou-se a ideologia de extrema-lunática-direita à frente dos interesses estratégicos do Brasil e da mínima razoabilidade. Ou, mais recentemente, de Olavo de Carvalho, o ideólogo máximo da turma do poder, figurando como estrela de um programa da TV Escola, vinculada ao MEC, sobre a história do Brasil. É, suponho, a “Escola sem Partido” em ação.
Talvez esta cegueira ideológica generalizada seja consequência do re-empoderamento da visão de mundo conservadora, cujo objetivo mal disfarçado é que continue mandando quem sempre mandou no mundo — os homens ricos e brancos. Sob essa maravilhosa lógica, o que os Senhores do Planeta pensam é a Verdade. O resto é ideologia.
De qualquer forma, para debater com um destes homens convictos de sua “não ideologia” é necessário um certo treinamento na arte da paciência. Do contrário, ao topar com um desses ceguetas ideológicos, talvez seja melhor sair correndo. Vai que pega.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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