Rodrik discute novos modelos de política industrial

A indústria brasileira vai mal, muito mal, e torna-se cada vez mais claro que ela se tornou uma bola de ferro aos pés da economia nacional (1). O problema não é de hoje; a indústria brasileira vem se deteriorando muito desde meados da década de 80, mas o ritmo deste declínio parece estar acelerando, e mesmo os observadores mais indiferentes à questão agora começam a ficar inquietos.

Não é a toa que até mesmo Paulo Guedes, possivelmente o ministro da Economia mais entusiasta do planeta pelas ideias de Hayek, Friedman, e dos representantes mais radicais do chamado “neoliberalismo”, tem usado, recorrentemente, o termo “reindustrialização”, sempre que procura, em suas entrevistas, parecer otimista em relação ao Brasil (2).

Fernando Haddad, que disputou o segundo turno com Jair Bolsonaro em 2018, farejou a importância do tema e publicou na Folha, na semana passada, um artigo intitulado… “Indústria”. O petista provavelmente decidiu marcar posição no debate ao constatar que, de forma geral, a avaliação dos economistas especializados no tema, sobre as políticas industriais (ou a falta delas) durante os governos Lula/Dilma, é bastante negativa. Por isso mesmo, foi relativamente fácil para os mesmos economistas detectarem, no artigo de Haddad, uma tentativa mal-ajambrada de diminuir a importância do tema, e diluir uma possível responsabilidade política pela forte desindustrialização observada nos últimos anos, atribuindo o problema à falta de uma “burguesia industrial” no Brasil e à uma suposta tendência global.

O jornalista Fernando Dantas, que tem um blog no Estadão especializado em economia, também observando o interesse crescente de seu público pelo tema, fez a resenha de um paper no qual o economista Oder Galor  lança dúvidas sobre o papel da indústria no desenvolvimento dos países.  A argumentação poderia até ser útil ao debate, mas quando os economistas foram ler o paper, descobriu-se que ele se baseava exclusivamente na França, com muita ênfase no século… XIX. Segundo o paper, regiões francesas que se industrializaram há mais de cem anos estariam hoje enfrentando mais  problemas sociais que outras, que não se industrializaram tão cedo.  A tese produziu um momento de perplexidade, seguido de uma explosão de risos, por ser um tipo de argumento tão profundamente contra-intuitivo que se torna difícil rebatê-lo. É como alguém lançar um paper dizendo que possuir bons jogadores de ataque não é pré-condição para um time ganhar um campeonato de futebol. 

Ora, uma nação pode se desenvolver sem indústria: basta ter a sorte de encontrar uma mina gigante de ouro, promover uma distribuição equitativa da renda auferida com a exportação – e ser feliz para sempre, ou até o esgotamento da reserva.  Alguns principados árabes, com população diminuta, fazem isso com petróleo.

Uma região da França pouco industrializada, mas com uma produção de vinhos de altíssima qualidade, vendidos a preços recordes no mercado, pode ser mais desenvolvida que uma outra cheia de fábricas velhas e decadentes.

Alguns municípios fluminenses, nadando em dinheiro oriundo dos royalties do petróleo, podem se desenvolver mais do que cidades industriais que não contam com esses recursos.

Um time de futebol pode ganhar um campeonato mesmo com péssima equipe de atacantes por causa de uma defesa magnífica.

Acontece que, segundo todos os  dados empíricos à nossa disposição, assim como a maioria dos times e seleções vencedores de campeonatos conquistaram-nos por causa de uma equipe com bons atacantes, igualmente todas as grandes nações desenvolvidas, incluindo a França, o são graças a uma indústria forte e moderna, a qual, por sua vez, sempre se beneficiou de políticas industriais.

Essas políticas industriais nem sempre se apresentaram ou se apresentam como tal. Este é o fato que mais distorce o debate. Ao final do ano passado, o Instituto Watson, da Universidade de Brown, divulgou um estudo segundo qual os EUA gastaram US$ 6,4 trilhões desde 2001 apenas com despesas militares no Oriente Médio.

US$ 6,4 trilhões correspondem a 26 trilhões de reais…

Faça um esforço de imaginação, e tente imaginar o quanto o Estado americano deve ter investido em sua própria indústria, apenas considerando o orçamento militar, desde a I Guerra Mundial.

Como esses gastos são destinados integral e exclusivamente às indústrias americanas, eles constituem a maior política industrial do planeta!

Quando se analisa a história das políticas industriais implementadas pelas nações desenvolvidas, e o discurso hegemônico neoliberal contra… políticas industriais, constata-se que o debate sobre a questão é contaminado, frequentemente, por uma desonestidade fundamental.

Entretanto, a informação hoje circula com muito mais velocidade do que em qualquer outra época, facilitando o acesso à literatura especializada sobre o tema, e permitindo que mais gente possa  participar do debate. Neste ambiente, algumas posições hostis a políticas industriais, se mal formuladas, acabam ficando ultrapassadas.

Talvez seja por isso que o professor Samuel Pessoa, conhecido por suas posições fortemente liberais, também resolveu aderir à importância da… política industrial.  Ainda segundo o blog do Fernando Dantes, o pesquisador, que trabalha no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), andou lendo alguns livros sobre a importância de políticas industriais para o desenvolvimento das economias do leste asiático e… mudou de ideia (3). Diferentemente do passado, quando olhava para esses políticas como “neutras” ou até mesmo prejudiciais, hoje ele as entende como uma estratégia de desenvolvimento que efetivamente funcionou.

O professor apelou, ao justificar o sucesso dessas políticas em países como Coréia do Sul, China e Japão, para uma razão curiosa: “disposição de trabalhar”.

No último final de semana, Paulo Gala e outros economistas que estudam o tema indústria, divulgaram entusiasticamente um novo paper de Dani Rodrik, professor em Harvard, e Karl Aiginger, professor na Universidade de Economia e Negócios de Viena, publicado este mês, intitulado “Renascimento da Política Industrial e uma Agenda para o Século XXI”.

O paper começa dizendo que a importância de políticas industriais voltou ao centro do debate econômico mundial, especialmente nos países ocidentais, em virtude do crescimento dramático da participação chinesa no PIB mundial da indústria. Lideranças políticas à esquerda e a direita, nos Estados Unidos e na União Europeia passaram a discutir o tema.

“A questão à nossa frente”, diz o paper, “é qual a forma deve assumir uma política industrial neste período de disrupções políticas e avanços tecnológicos. Como as instituições responsáveis podem elaborar uma política industrial que não apenas sirva para mitigar falhas de mercado, mas que se preocupe também com os desafios ambientais e sociais, sem apelar para o chauvinismo nacionalista?”.

O paper então elenca algumas iniciativas que aparecem evidentes à primeira vista. Eu traduzi alguns trechos:

“A política industrial não deve mais ser uma questão de manufatura ou indústria per si. O declínio do emprego industrial é uma realidade inevitável em economias avançadas e de renda média [Cafezinho: o Brasil é uma economia de renda média].”

“Na medida em que o mundo se inclina cada vez mais para os serviços, está claro que precisamos de uma concepção de política industrial que se preocupe em fomentar e desenvolver atividades econômicas modernas de maneira mais abrangente, incluindo mas não limitada às manufaturas. A expressão ‘política industrial’ pode levar a distorções ao não enfatizar essa abrangência. Outras alternativas como “políticas de desenvolvimento produtivo”, “políticas de transformação estrutural” ou “políticas de inovação”, já existem, mas nós iremos manter a terminologia tradicional, mesmo que essas outras expressões sejam mais apropriadas para o que temos em mente.”

“Segundo, a política industrial do futuro não deve mais parecer com sua concepção tradicional: uma política de cima para baixo, mirando setores pre-selecionados, e empregando uma lista padrão de subsídios e incentivos. Esse é o tipo de política que foi comum em países como Japão, Coreia do Sul, Taiwan e também foi bem sucedida em alguns países europeus; mas cada vez mais o foco deve ser diferente. A concepção e prática contemporâneas de política industrial são muito menos sobre incentivos de cima para baixo e muito mais sobre estabelecer uma colaboração sustentável entre setores públicos e privados, ao redor de vetores como produtividade e metas sociais. Esse tipo de diálogo evita antecipar a seleção de quais atividades deve promover qual instrumentos deve usar; ao invés, o foco deve ser engendrar sistemas institucionais através dos quais essa colaboração pode funcionar da melhor maneira. Políticas públicas, assim como estratégias comerciais, são a consequência desse processo. Essas políticas e estratégias devem ser vistas como provisórias em seu desenho exterior, a ser continuamente monitoradas e revisadas à luz dos resultados.”

“Terceiro, uma política industrial não pode mais ser uma ação isolada, voltada para si mesma e rivalizando com políticas que promovem a competição, políticas regionais e outras políticas de fomento. No contexto da Europa, as metas das políticas de competitividade e das políticas industriais estão frequentemente em tensão, ou vistas como opostas entre si. A política de competição visa principalmente o interesse do consumidor, enquanto a política industrial está preocupada em criar indústrias dinâmicas e produtivas. No longo prazo, as duas metas precisam ser consistentes, mas no curto prazo, maximizar os benefícios ao consumidor pode prejudicar o alcance de outros objetivos, como mais diversidade e dinamismo produtivos. Da mesma maneira, pode existir sobreposição e conflito entre políticas de desenvolvimento regional e política industrial, se não houver uma divisão de trabalho explícita ou coordenação coerente. Até que ponto, por exemplo, uma política industrial deveria mirar em comunidades e regiões deixadas para trás, e assumir a forma de políticas com foco regional?”

“Quarto, o apoio a mudanças estruturais e ao crescimento da produtividade não pode mais existir sem considerar a direção das mudanças tecnológicas. Em países industrializados, a tendência atual de redução da mão-de-obra deve ser questionada, na medida em que isso pode ir na contramão de um crescimento ambiental e socialmente sustentável. Fomentar mudanças tecnológicas na direção que seja mais vantajosa para o trabalho e para o meio ambiente deve ser um elemento chave dessas novas políticas industriais”.

“Em economias emergentes, a questão é se a política industrial deverá copiar as economias ricas ou olhar para saídas mais adequadas ao estágio de desenvolvimento de seus próprios países, assim como manter o foco em novas prioridades, como o suporte a grupos vulneráveis, igualdade de gênero, redução do uso de energias fósseis e o desenvolvimento de tecnologias ‘verdes’ para novos tipos de agricultura, moradia e transporte. ”

***

Notas:

(1) O último número do IBGE para a indústria, divulgado há alguns dias, mostrou uma situação dramática. Em novembro, houve queda generalizada em todos os setores. No acumulado de 12 meses, a indústria geral caiu 1,3%.

Esse desempenho ruim, aliás, vem desde o início de 2010, quando a produção industrial brasileira entrou num período de estagnação, convertida em acelerada deterioração entre 2014 e 2017, e voltando à estagnação desde então, sempre com viés de baixa.

(2) A aposta de Guedes para essa retomada industrial é juro baixo e barateamento do custo do gás natural.

O gás natural, nos EUA e na Europa, tornou-se o combustível industrial por excelência, e, de fato, o Brasil vive o paradoxo de possuir grandes reservas do produto e, ao mesmo tempo, oferecê-lo a preços bem mais altos do que os registrados em outras economias industrializadas, mesmo entre aquelas que não tem reservas, como na Europa (que importa da Rússia).

Puxados pela queda recorde da taxa Selic, os juros oferecidos às empresas estão cedendo, de fato, mas o volume de crédito caiu tanto que o efeito é quase nulo.

Confira os gráficos sobre juros e saldo de crédito, especificamente para a indústria, segundo dados atualizados pelo Banco Central.

O preço do gás, por sua vez, atingiu os níveis mais altos dos últimos anos. A infra-estrutura para distribuí-lo é precária e insuficiente, e a promessa de Guedes de que a “privatização” do setor de refino irá baratear o produto, sem apresentar nenhum estudo convincente sobre isso, é um insulto à inteligência nacional.

Confira a evolução dos preços do gás natural (GLP), segundo a Agência Nacional de Petróleo (ANP).

3) Trecho do post de Fernando Dantas:

(…) O economista Samuel Pessoa, do Ibre/FGV e sócio do Julius Bäer Family Office, explica que uma literatura acadêmica recente vem apontando que a política industrial dos países do Leste Asiático pode efetivamente ter contribuído para o desenvolvimento acelerado destas economias.

Antes de entrar em contato com essa literatura, Pessoa tendia a pensar que a inegável prática de política industrial por aqueles países (o exemplo mais discutido é a Coreia do Sul) teria sido neutro, ou até levemente prejudicial, em relação ao crescimento. O economista considera que os elementos principais do sucesso asiático são alta poupança, muito estudo e disposição de trabalhar, disciplina fiscal e outros itens do cardápio de uma visão ortodoxa de economia.

Entretanto, como já mencionado, há alguns trabalhos recentes que indicam que a política industrial foi eficaz nos países do Leste asiático. (…)

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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