Freios e contrapesos: decisão do STF que impediu posse de Ramagem foi acertada

Presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem (Foto: Valter Campanato/ABr)

Os últimos anos nos ensinaram o perigo extremo de transferir poder político excessivo ao judiciário e ao ministério público, e a falta de atenção a esse ponto, crucial em qualquer democracia representativa, foi um dos principais erros políticos cometidos pelos ŕecentes governos social-democratas; erros cujas consequências foram trágicas para o Estado Democrático de Direito.

A bem da verdade, boa parte desses erros nasceram antes da ascensão desses governos, e são derivados dos traumas da ditadura militar.

O medo de um Executivo autoritário fez o legislador estruturar poderes de contenção extremamente autônomos e independentes.

Com o ascensão do PT ao poder, em 2003, a política de fortalecer o judiciário e o ministério público passou a ser usada também para cooptar apoio de setores sociais refratários à esquerda. E foi pensando assim que a primeira nomeação de Lula para o STF, decepcionando a todos (e abrindo caminho para o abismo que viria a seguir), não foi um ministro progressista, comprometido com valores democráticos, como um Nilo Batista, que todos entendiam ser a pessoa ideal naquele momento, mas Carlos Alberto Menezes Direito, cujas principais “virtudes” eram: profundamente reacionário, militante anti-aborto, e “terrivelmente católico”.

É irônico, por isso mesmo, que a esquerda se horrorize que Bolsonaro afie os dentes para indicar, na próxima vaga do STF que se abrir, um ministro “terrivelmente evangélico”.

Posse de Carlos Alberto Menezes Direito, ministro ultraconservador e “terrivelmente católico”: primeira nomeação de Lula para o STF. Crédito: STF.

Entretanto, a preocupação do legislador de 1988 com a possibilidade de uma possível reemergência do autoritarismo se revela hoje profética. E quando, enfim, nos deparamos com esse risco, antecipado pelos constituintes, de um Executivo saudoso do poder militar, me parece incompreensível que a mesma esquerda que, no poder, apenas inflou o poder judiciário, de maneira desnecessária e irresponsável, com objetivos puramente fisiológicos,  não veja a importância de termos um judiciário forte, independente, autônomo, capaz de conter os abusos do Executivo.

Refiro-me, naturalmente, aos setores da esquerda, Lula à frente, que estão criticando o STF pela derrota inflingida a Bolsonaro.

Ou seja, na hora em que o petismo tinha poder para conter os abusos do judiciário, fez o oposto: cevou-os ano a ano. Em toda a crise política que envolvia questões jurídicas, a esquerda tentava cooptar o judiciário dando-lhe mais poder, até o ponto culmimante de propor e sancionar as leis da Ficha Limpa, da Delação Premiada e da Organização Criminosa, excrescências jurídicas que produziram o desequilíbrio fatal que matou a república, produzindo um impeachment sem provas e levando à eleição de um louco autoritário para a presidência da república. 

E agora, quando é hora de cobrar do judiciário que exerça a independência que ganhou do constituinte em 1988, e contenha os abusos do Executivo, o petismo se posiciona contra a instituição por medo de “lavajatismo”? 

No caso da decisão do ministro Alexandre de Moraes, impedindo a nomeação de um capanga de Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, os seus fundamentos são sólidos e sinalizam uma jurisprudência profundamente saudável do ponto-de-vista democrático e, sobretudo, do pluralismo político.

Esse é, aliás, o fundamento principal da decisão do STF:

“Reafirmo que, a supremacia absoluta das normas constitucionais e a prevalência dos princípios que regem a República, entre eles, a cidadania e o pluralismo político”.

No raciocínio jurídico do ministro, o presidente não é um imperador, e os partidos políticos com representação no congresso nacional, tem o direito de denunciar (e terem suas denúncias ouvidas pelas justiça) abusos e desvios de conduta do governo.

Para entender isso, é preciso atentar que a iniciativa para impedir a posse de Ramagem não foi do STF, mas sim do Partido Democrático Trabalhista (PDT). 

Por ocasião da decisão de Gilmar Mendes contra a posse de Lula, estávamos tão absorvidos numa crise política em sua fase agônica que o fato dela ser basear no mandado de segurança de um partido político nos pareceu completamente insignificante. E naquele momento, pelas circunstâncias, era mesmo, porque nem o mandado do PPS nem a decisão de Gilmar puderam apresentar um elemento fundamental em qualquer denúncia: uma testemunha ocular.

E agora temos! Não estamos falando de bandidos presos, sob pressão do Ministério Público e de seus advogados para fazer um acordo, mas da mais alta autoridade política em matéria de justiça: o próprio Ministro da Justiça!

Em sua coletiva, ainda no cargo, Sergio Moro fez uma denúncia que, em outros países, teria derrubado todo o governo: o presidente da república vinha conspirando, há tempos, para substituir o diretor da Polícia Federal por alguém que aceitasse violar os princípios de autonomia técnica que a instituição deve guardar com tanto zelo. Uma denúncia vinda do próprio ministro da Justiça, com todo o risco e toda a responsabilidade que ela traz, tem evidentemente um enorme peso!

Não podemos deixar que a justa irritação política que temos contra Sergio Moro nos cegue para esse fato: sua denúncia é gravíssima!

E mais: ele apresentou provas!

Não foi uma “reportagem da Globo”.  Não foram mensagens “roubadas” por um hacker. Não digo isso para desvalorizar a “vaza jato”, mas para acentuar a diferença fundamental: mensagens roubadas, por mais autênticas que sejam, não podem ser usadas em tribunais; mensagens vazadas por um dos  participantes do diálogo, podem.

Moro apresentou mensagens trocadas com o presidente da república, e com uma deputada do núcleo duro do governo, Carla Zambelli. O presidente não negou; ao contrário, sua reação deixou claro que as mensagens eram verdadeiras. E a deputada não apenas admitiu a autencidade das mensagens, como divulgou mais trechos, numa tentativa meio patética de mudar a narrativa. 

E o que dizia Bolsonaro, numa das mensagens trocadas com o ministro da Justiça?

“Mais um motivo para trocar”, pressionou Bolsonaro, referindo-se ao diretor da Polícia Federal, reclamando que a PF havia aberto uma investigação, a pedido do PGR e do STF, contra deputados que participaram de uma manifestação em favor da ditadura, do AI-5 e contra o congresso nacional. 

Na mensagem trocada com a Carla Zambelli, que é do núcleo duro do governo, e que deixou claro que falava em nome do presidente (a ponto de prometer uma vaga no STF para Moro, além de tentar marcar um “jantar” entre Moro e esposa com Bolsonaro), a deputada tenta forçar o ministro a aceitar a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF.  Toda a articulação do presidente Bolsonaro visava constranger e forçar a demissão de Maurício Valeixo, para poder interferir politicamente em investigações em curso na PF: essa é a denúncia de Moro. 

Sim, o presidente tem a prerrogativa de nomear um delegado para o cargo de diretor da Polícia Federal. 

Mas se há provas e testemunhos de que o presidente forçou a demissão do antigo diretor da PF apenas para nomear um amigo da família, com objetivo de interferir em investigações em curso, e transformar a PF numa agência de inteligência para seus próprios fins políticos e eleitorais, então estamos diante de um caso claríssimo de desvio de finalidade. 

Estão certos os que cobram uma postura coerente em nossa posição perante o judiciário. Não podemos, num dia, denunciar abusos, e, no outro, aceitá-los contra nossos adversário. Mas não podemos esquecer os abusos do Executivo. Ou a “ameaça fascista” agora não existe mais? Quando o judiciário finalmente começa a conter os abusos de um governo autoritário, a esquerda jurídica vai se voltar contra o judiciário porque agora o elegeu como “inimigo político”?

Tudo isso se baseia num erro de origem, e que persiste até hoje.

A esquerda jurídica errou no início, quando tentou cooptar o judiciário e o MPF dando-lhes mais poder; errou no meio, quando elegeu o judiciário como “inimigo político”, ao invés de usar a ciência jurídica para desmontar a crise institucional; e erra no fim, quando repete, às avessas, o mesmo republicanismo tosco que usou enquanto esteve o poder: antes, esse republicanismo se caraterizava pela pusilanimidade de encher as cortes superiores de figuras reacionárias; o republicanismo invertido de hoje posa de horrorizado com um judiciário que tenta pôr um freio nos abusos do Executivo.    

O judiciário nunca foi “inimigo político”. O judiciário foi antes vítima da inação de governos e partidos, que não propuseram reformas democráticas de concursos públicos e cursos de Direito, que não organizaram a luta intelectual contra os excessos judiciais (os quais começaram bem cedo, lá em 2004, então não há como alegar que não houve tempo), e que indicaram para tribunais superiores nomes de escassa coragem cívica para enfrentar as ondas de linchamento político geradas pelo consórcio mídia-oposição. 

Se a esquerda não soube organizar um Executivo forte (forte em termos de capacidade de articulação política junto a outros poderes), capaz de conter os abusos do poder judiciário, agora não venha atrapalhar os movimentos necessários de um Judiciário forte, um dos últimos bastiões da república, junto com o legislativo, em defesa do interesse democrático contra os arreganhos autoritários do governo Bolsonaro.

Fiz um vídeo de 2 minutos resumindo minha opinião:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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