Os juros da dívida pública e o diabo no redemoinho

Nas primeiras páginas de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, já aposentado das guerras e aventuras que ele irá nos contar, lança um questionamento que será um dos temas centrais da obra: o diabo existe ou não? A dúvida o angustia terrivelmente por razões que entenderemos mais tarde, ao longo do livro. 

Ele argumenta, diante de seu interlocutor, supostamente um ouvinte culto, que os homens mais sábios do mundo inteiro deveriam se reunir, num grande evento, para decidir, de uma vez por todas, sobre a existência ou não do capeta.

Lembrei dessa história por conta de uma polêmica recorrente sobre a questão dos juros no Brasil. 

Quanto o governo federal gasta, efetivamente, com juros?

Em debate realizado na Globonews, neste sábado, 2 de maio, com Ciro Gomes (PDT) e João Amoedo (Novo), o trabalhista lançou uma de suas críticas contra o que seria, a seu ver, o gasto excessivo do governo com “juros pra banco”.

Ciro dá um número: “44% do orçamento brasileiro é juro pra banco”. 

João Amoedo, por sua vez, contra-argumentou que o governo não paga juros nenhum, zero, por causa do déficit primário. Segundo essa narrativa, o Brasil “rolaria” toda a sua dívida para os anos seguintes, sem jamais pagar nada. 

Ciro estaria exagerando?

Amoedo estaria tentando ocultar o assalto às contas públicas promovido pelo sistema financeiro?

Quem está falando a verdade?

Há muito tempo procuro informações mais precisas sobre o tema, e sempre que essas polêmicas vem à tôna, eu fico realmente feliz com a oportunidade de descobrir, enfim, a verdade sobre o peso dos juros da dívida sobre as finanças públicas.

A confusão sobre o juros começa pela maneira como o Orçamento Federal é apresentado.

Para o orçamento de 2020, por exemplo, o gráfico usado para ilustrar para onde vão os recursos da União, informa que 50,7% do total, ou R$ 1,9 trilhão de um orçamento total de R$ 3,8 trilhões, serão destinados à “dívida pública”. 

Os 44% de Ciro referem-se provavelmente ao percentual que aparecia na LOA (Lei de Orçamento Anual) de 2019.

Em 2020, a pressão do sistema financeiro sobre o orçamento público é ainda maior. 

A fonte desse gráfico é uma reportagem da Agência Senado.

A mesma reportagem que mostra esse gráfico também traz um protesto do deputado Mauro Benevides (PDT), que é economista:

“Não há uma discussão sobre os quase R$ 5 trilhões do total da dívida pública, não há nenhuma discussão sobre o R$ 1,9 trilhão de pagamento de manutenção da dívida pública para 2020. É importante que o Congresso Nacional debata essa que é a maior despesa do Orçamento do país.”

Se o gráfico oficial do Orçamento Federal mostra que 51% do orçamento de 2020 serão usados para pagamento de dívida pública, então qual é o problema da fala do Ciro?

Por que ela estaria equivocada?

Para entender melhor a questão, vamos nos concentrar sobre os números de 2019, que já estão consolidados. 

A melhor e mais atualizada fonte que encontrei foi o Balanço Geral da União, um documento de 226 páginas disponível no site do Tesouro Nacional, publicado em abril de 2020, referente ao ano de 2019. 

Estudando com atenção esse documento, e conversando com economistas, entendi que os gastos efetivos com dívida, ou seja, aqueles que saem dos cofres da União e entram no bolso de banqueiros, fundos de investimento e cidadãos portadores de títulos da dívida pública, são aqueles classificados nas rubricas “juros e encargos da dívida” e “amortização da dívida”. 

A rubrica “amortização da dívida / refinanciamento” refere-se à rolagem da dívida. Esse valor não é pago, mas reconvertido em novas dívidas, a serem pagas no futuro. 

Em 2019, a despesa do governo federal com o pagamento de juros e amortização totalizou R$ 562,6 bilhões, o equivalente a 20% do orçamento federal.  Quanto a esses recursos, não há muita complicação. Eles são pagos pelo governo aos detentores de títulos públicos, 65% dos quais, como veremos abaixo, são “banqueiros”. 

Se Ciro quisesse ser menos polêmico, e considerar apenas os pagamentos que, efetivamente, sangram o orçamento federal, poderia dizer que “20% do orçamento são juro pra banco”. 

Outros 16% foram gastos com refinanciamento da dívida, mas esse dinheiro não sai do orçamento; esse é um valor “rolado”, a ser pago por gerações futuras, quando e se um dia o Brasil decidir zerar sua dívida pública – o que virtualmente nunca acontece, pois os países esticam suas dívidas públicas por décadas, ou até mesmo séculos. 

Entender de onde vem e para onde vai esse dinheiro já requer um pouco mais de abstração. 

A nossa dívida pública estava, em março, em R$ 4,2 trilhões. O tempo médio de vencimento dela é de 7,48 anos. Cerca de 20% desse montante vence em menos 12 meses. Todo ano temos que pagar juros, amortizações e rolar a maior parte. 

Essa parte rolada, no entanto, não pode ser analisada com trivialidade, como se fosse um dinheiro “fácil”. Quanto maior o montante a ser rolado, maiores os juros e os encargos que serão pagos no ano seguinte, e maior a ingerência do sistema financeiro sobre a administração pública. 

Não é correto dizer que estamos pagando dívida com mais dívida. Essa é uma narrativa enganosa. Todo dinheiro público é fruto dos impostos, ou seja, nasce do trabalho dos brasileiros. Há recursos que tem origem mais antiga, em impostos pagos há muitos anos; há recursos que correspondem aos impostos que pagamos hoje; e há os recursos referentes aos impostos que pagaremos no futuro, correspondentes às novas emissões de títulos que fazemos hoje para rolar a dívida. 

As lideranças e partidos políticos devem mesmo protestar contra o enorme peso da dívida pública sobre o orçamento federal, seja na forma de sangramento efetivo, tirando dinheiro da educação, saúde e investimento, seja através de “refinanciamentos” de dívida cada vez maiores.

 

 

O relatório de março do Tesouro Nacional traz a seguinte pizza dos detentores de títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), que compõe o grosso do que chamamos popularmente de dívida pública (a dívida externa brasileira não é mais relevante, sobretudo depois que passamos a ser, em verdade, credores, com reservas bem maiores maiores do que nossa dívida).

Fundos de investimento, instituições financeiras, seguradoras, e não-residentes (provavelmente corretoras internacionais) são o que poderíamos chamar, vulgarmente, de “banqueiros”; estes quatro grupos detêm mais ou menos 65% da dívida pública. 

O Brasil é um dos países que mais pagam juros sobre suas dívidas, entre as economias emergentes.

Entre as economias desenvolvidas, a comparação é ainda mais cruel.

O gráfico abaixo, que consta no site de Tesouro Nacional, mostra que, enquanto os juros nominais pagos pelo Brasil, em 2018, totalizaram 5,6% do PIB, na China, estes representaram apenas 1%. 

Juros nominais correspondem, grosso modo, ao que o governo gasta com o pagamento de juros da dívida pública do setor público consolidado, mas não a amortização.

 

A angústia de Riobaldo quanto à existência do diabo tinha uma razão de ser: no passado, ele tinha ido a uma encruzilhada e pedido um pacto com o diabo, para poder superar sua timidez e se tornar uma liderança dos jagunços. Deu certo. Apesar de nunca ter tido certeza se o diabo apareceu ou não, Riobaldo sente sua personalidade mudar após aquela noite, ganha autoconfiança e se transforma, efetivamente, num líder. 

Com a dívida pública, temos uma situação similar. Na noite escura, os governos brasileiros, incluindo aqueles de esquerda, fizeram pactos obscuros com o sistema financeiro e conseguiram financiar anos de bonança. 

O diabo cobrou a conta. O golpe, a eleição de Bolsonaro e um Estado quebrado foram o preço que pagamos pelo endividamento fácil. 

Entretanto, Riobaldo, apesar de inteligente e sabido, era um sertanejo ignorante. A verdade é que o diabo não existe. O que existe é insegurança e medo.

A dívida pública, da mesma forma, pode ser resolvida através do controle inteligente dos juros básicos. É o que vem apregoando o economista Andre Lara Resende, lembrando que é isso que todos os países desenvolvidos tem feito nos últimos cem anos: o segredo é manter os juros sempre num patamar abaixo do crescimento do PIB, o que permite que o endividamento se reduza naturalmente.

Nenhum país pode gastar 20% de seu orçamento com juros, como faz o Brasil, e apenas 1% com investimento. Isso é loucura, e apenas nos levará ao caos eterno de crises políticas e econômicas.

Esse percentual precisa se inverter. O Brasil precisa liberar recursos para investir em infra-estrutura, qualificação de mão-de-obra, pesquisa, além de financiar um amplo e moderno programa de reindustrialização. 

Para solucionar isso, temos que fazer uma reforma tributária de caráter progressista, mudar a gestão monetária e apostar num projeto de desenvolvimento centrado na ciência e na criatividade. 

A indignação de Ciro está correta. O Brasil gasta demais com “juros pra banco” e quase nada com o bem estar da população. 

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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