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Quando explodirá o antirracismo brasileiro?

Gilberto, um angolano que residia em Goiás, foi passar alguns dias na casa de uma amiga em Cachoeirinha, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. No dia 17 de maio eles foram para Tramandaí, no litoral do estado, pegar um dia de praia. No percurso de volta, realizado em um […]

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João Mantanaro

Gilberto, um angolano que residia em Goiás, foi passar alguns dias na casa de uma amiga em Cachoeirinha, cidade da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. No dia 17 de maio eles foram para Tramandaí, no litoral do estado, pegar um dia de praia. No percurso de volta, realizado em um carro contratado pelo aplicativo de caronas BlaBlaCar, o motorista começou a acelerar o carro demasiadamente. Ele era foragido da Justiça e estava fugindo da polícia. A certa altura o motorista parou o veículo, desceu e fugiu a pé, enquanto a polícia

Gilberto e sua amiga desceram do carro e foram baleados pelos policiais que faziam a perseguição.

Após isso, já todo ensanguentado, Gilberto foi algemado, enquanto um dos PMs falava: ‘você vai sangrar até morrer’. O homem negro tentou explicar que era inocente mas foi em vão.

O trecho acima está na página da organização Alicerce. A boa matéria do Sul 21 sobre o caso inclui uma entrevista com Gilberto. Ele confirma o relato do Alicerce, afirmando que, após ser baleado e implorar por sua vida, dizendo que não havia feito nada de errado, ouviu os policiais falarem o seguinte:

Tu vai sangrar até morrer. Morre capeta. Morre exu desgraçado.

O G1 também fez uma matéria sobre o caso, onde é informado que, após se recuperar da cirurgia, Gilberto foi enviado a uma penitenciária. Sua amiga ficou 18 dias internadas e depois faleceu.

Gilberto permaneceu preso por 12 dias, acusado de ter atirado nos policiais (embora não portasse arma alguma). O angolano disse o seguinte sobre o período na prisão:

Primeiro eu tava sozinho, numa cela onde era chão de concreto, aí no mesmo local você fazia as necessidades fisiológicas, onde você comia, e nas condições em que eu me encontrava, no pós-operatório, eu tinha medo de pegar uma infecção.

Gilberto foi aprovado para cursar um mestrado em Portugal. “Vamos torcer pra que eu me recupere logo e continue os meus planos”, resigna-se.

Claudio Mor

A história trágica de Gilberto e sua amiga passou quase despercebida. Um evidente caso de racismo de estado e abuso policial, como o que aconteceu nos EUA há pouco, com George Floyd, que morreu asfixiado sob o joelho de um policial branco. Este, contudo, gerou uma onda de protestos e debates que se alastrou por muitos países do globo.

Casos como o de Gilberto são corriqueiros no Brasil. As balas “perdidas” costumam encontrar precipuamente negras e negros, muitas vezes crianças como o Ítalo, de 7 anos de idade, ou João Pedro, de 14. Evidência do que o senso comum sabe: a polícia age de forma muito diferente diante de negros e empobrecidos do que diante de brancos de classe média ou abastados.

Os dois casos referidos acima são recentíssimos. A reportagem do El País sobre a morte do João informa que o aplicativo Fogo Cruzado contabilizava, ao menos até o dia 19 de maio, 20 adolescentes baleados no estado do Rio de Janeiro em 2020.

Assim como os EUA, também temos sufocamento de pessoas negras por aqui. Uma comerciante negra foi pisoteada por um policial militar no último dia 30 de maio. Ela é dona de um bar e foi defender um amigo que estava sendo agredido pelo PM. A comerciante contou, em depoimento, que desmaiou após ser pisoteada.

O também recente massacre de Paraisópolis bem poderia ter sido a fagulha de protestos antirracistas massivos, mas não foi o caso. Quem ficou revoltada foi uma entidade de policiais militares (foi a PM que levou a cabo aquele dantesco extermínio de jovens negros em um baile funk), que chegou a interpelar judicialmente a Folha de São Paulo e quatro cartunistas que fizeram charges críticas à corporação. (Quatro das charges questionadas pelos PMs ilustram este artigo.)

Laerte

Diante do ataque sistemático e violento ao povo negro perpetrado pelo Estado policial e demais mecanismos excludentes inerentes ao capitalismo, a pergunta é inevitável. Por que não temos um levante antirracista massivo por aqui, nos moldes do que incendiou os Estados Unidos e o globo?

Esta é uma explicação difícil de ser obtida a contento, como são, aliás, todas as explicações sobre processos sociais e a vida em geral.

Acho interessante o argumento de que nos EUA a luta racial sempre foi aberta, escancarada, visceral, e por isso a revolta costuma explodir com mais frequência e intensidade. No Brasil muita gente acredita – até hoje! – na balela de que não somos racistas, embora o simples fato de que fomos um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão deponha contra esta lenda urbana. Talvez esse fator contribua para a ausência de explosões como as recorrentes nos EUA.

Embora, e a ressalva é fundamental, tenhamos um belo histórico de luta antirracista por aqui também, a começar pelo Quilombo dos Palmares, que, capitaneado por Zumbi, fez um duro e longo enfrentamento ao sistema escravocrata.

De qualquer forma, se é complicado analisar as razões que levam os processos sociais para um lado ou para o outro, prever uma explosão de revolta contra o racismo por aqui não é tão difícil assim. São muitos casos, muita violência, muita injustiça contra a população negra. Em tempos tecnológicos, os atos de horror são gravados e as notícias se espalham.

Cabe a cada indignada e indignado, em primeiro lugar, debruçar-se sobre o racismo em si própria(o) para torná-lo consciente e, assim, eliminá-lo. Depois, estar atenta(o) ao racismo e participar dos debates antirracistas que ocorram nos círculos dos quais se participa – ou mesmo dar início a estas discussões. Falar sobre o assunto, escrever em blogs, redes sociais ou áreas de comentários, bem como divulgar os absurdos racistas que ocorrem cotidianamente, também são tarefas importantes nessa militância. Assim como ler boas autoras e autores que discorram sobre o tema.

Listo essas coisas, até óbvias, pois acredito que se fizermos nossos deveres individuais e coletivos direitinho, se cada vez mais pessoas e grupos fizerem os seus, o resultado tende a ser um destes dois: ou os mecanismos sociais que perpetuam o racismo são drasticamente alterados, na forma das regras políticas e sociais vigentes, ou serão implodidos quando a revolta finalmente explodir.

Considerando que aqueles mecanismos tendem à autoperpetuação, a questão não é, portanto, se, mas apenas quando explodirá o antirracismo brasileiro.

Benett
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Pedro Breier

Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.

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Comentários

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Alexandre Neres

23/07/2020 - 21h07

Já passou da hora, Pedro. Lembra do músico Evaldo que levou 80 tiros? E o menino Miguel, o que que é aquilo? A mãe dele foi levar o cachorro pra passear e a corte real deixou o menino andar de elevador sozinho. Nem a um animal se dá um tratamento desses. Sugiro que o Miguel do Rosário chame a Djamila Ribeiro pra tratar do seu Pequeno Manual Antirracista e de questões básicas relativas ao assunto. Pelo que observo aqui nos comentários, como sói acontecer em nosso país, tá cheio de racista velado ou enrustido. O racismo no Brasil é estrutural. Nesse ponto, embora o governo do PT tenha tido vários avanços nessa seara, houve uma falha: seguiu essas leis que nos são impostas por organismos internacionais, sobretudo estadunidenses, e houve um aumento ingente da população carcerária, seguindo a metrópole. Se um negro é pego com 10g de maconha, é traficante, se um playboy da zona sul é pego com 500g, é usuário. Estão criando dessa forma um exército sobressalente de criminosos. Aí as mulheres levam drogas para o parceiro preso ou ocupam seu lugar, de modo que também estão sendo presas a rodo e se afastando dos filhos. As prisões da miséria. A guerra às drogas é uma burrice colossal, consegue fazer mais mal do que o mal que pretende extirpar e só põe fogo na fogueira.

    Pedro Breier

    24/07/2020 - 21h00

    Pois é Alexandre, os casos trágicos se acumulam, são cotidianos, quase… Uma mudança drástica na política de drogas pode ser um bom primeiro passo pra mudar essa realidade, mesmo.

Paulo

23/07/2020 - 19h18

Eu já enxergo um panorama racial diverso, com o Brasil marchando para uma fusão racial, que se dará, todavia, por etapas, de forma lenta e progressiva. É nossa vocação natural, de que já falava Darcy Ribeiro, ao comparar o Brasil a Roma clássica…

Paulo Cesar Cabelo

23/07/2020 - 19h12

Talvez quando jornalistas ” progressistas” como Miguel do Rosário pararem de defender policial assassino e chamar a esquerda de policiofóbica.
A maior crítica que tenho aos governos do PT foi a inércia quanto ao tema , muitos policiais que deveriam estar presos estão aí ocupando as casas legislativas e apoiando Bolsonaro.
Os assassinos da Mariele tinham uma enorme lista de homicídios nas costas e a esquerda no poder não fez nada contra pessoas como eles.
A esquerda foi é mole com a polícia assassina , muito diferente da tese de Miguel , digna de bolsominion.
Esperar pelo povo brasileiro é esperar em vão , como a Plebe Rude já nos dizia , tenho esperança que um dia isso exploda em fúria mas é a esperança de um tolo , provavelmente.

Jerson7

23/07/2020 - 18h45

O Brasil e um dos paises mais incivilizados e violentos do Mundo, um ambiente altamente toxico onde ao primeiro sinal de perigo o primeiro que atira é o que tem mais chances de sobreviver.

Os policias sao herois que todos os dias arrriscam a vida em troca de mixarias e tendo que lidar com sujeitos perigosos muitas vezes armados e sem o minimo escrupolo para matar quem os incomodar.

Hilux12

23/07/2020 - 18h41

Os humanistas de ocasiao sumiram durante essa pandemia…mulher enforcada em praça publica, pessoas retiradas a força de onibus e das proprias lojas, de poucos dias atras um homem na praia sozinho contido com arma de choque.,e por aì vai…

Tambem sumiram diante dos arroubos autoritarios e incostitucionais do STF, os defensores da liberdade de expressao, dos direitos humanos e do justo processo legal tambem, por ai vai.

Ridiculos.


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