Lula e a disputa pela narrativa de 2018

O jornalismo de hoje tem uma praga: títulos e manchetes que não correspondem ao conteúdo das matérias.

Eis aqui um exemplo.

Em entrevista à TV Democracia, o ex-presidente Lula (PT-SP) deixou claro que são praticamente nulas as chances dele apoiar um candidato de outra legenda nas próximas eleições presidenciais.

A maioria das matérias sobre a entrevista, porém, traz no título de que “é possível que o PT não tenha candidato a presidência”. Os redatores confiaram demais no título dado pelo próprio canal da TV Democracia, e não examinaram a íntegra da fala do ex-presidente. Com isso acabaram por lhe distorcer o raciocínio, transformando em afirmação o que seria apenas uma declaração retórica.

A intenção de Lula é bastante clara. Ele procura reduzir a irritação de alguns setores políticos com o hegemonismo do PT, e, sobretudo, desconstruir a crítica de que o partido deveria ter apoiado uma outra legenda em 2018.

A estratégia adotada por Cristina Kirchner, que se retirou do pleito e apoiou um candidato com um histórico de pesadas críticas a seu governo (ou seja, seguindo o caminho exatamente oposto ao do PT em 2018), obriga Lula a um certo contorcionismo retórico para explicar sua decisão de ter sido candidato dentro da cadeia, condenado em segunda instância, e barrado por uma lei que ele mesmo sancionou.

Lula não é muito sutil. Quando diz que é preciso um candidato “com habilidade de tratar os partidos com o respeito que merecem”, ele passa o recado de que a legenda nunca apoiaria Ciro Gomes em 2018, não vai apoiá-lo em 2022, e não vai apoiar nenhum outro candidato que levante críticas ao PT.

Quando Lula diz que o PT é o “maior partido de esquerda da América Latina”, e que a condição para se apoiar um candidato não-petista é que ele seja “maior do que o PT ou não tem chance”, isso enterra, definitivamente, qualquer possibilidade da legenda não ter o seu próprio candidato presidencial em 2022. Ou pelo menos se isso depender dele, de Lula.

O petista dá ainda um outro recado a partidos aliados, em particular aqueles que defenderam a candidatura de Ciro Gomes por causa das análises e pesquisas que indicavam que ele teria uma performance melhor no segundo turno.

“Se alguém quer ir para o segundo turno, tem apenas um problema: tem que passar do primeiro turno”, diz Lula.

Abaixo, trecho de sua fala.

“É preciso ter um candidato a presidente que tenha habilidade de tratar os partidos com o respeito que os partidos merecem. Não adianta as pessoas quererem brigar com o PT, porque o PT aceita a briga mas as pessoas têm que levar em conta que o PT é o maior partido de esquerda da América Latina. As pessoas têm que levar em conta que esse PT, apenas com 7 anos de existência, foi o segundo colocado em 1989, em 1994, em 1998, o primeiro colocado em 2002, em 2006, em 2010, em 2014 e o segundo em 2018. As pessoas não podem querer que o PT abra mão dessa grandeza que o povo lhe deu a troco de nada. Ou apresenta um candidato maior do que o PT ou não tem chance. As pessoas falam: ‘Olha, eu fiz uma pesquisa que no segundo turno, e o ‘Pannuzio’ [referindo-se ao repórter] tem mais voto do que o Lula’. Ótimo! Mas, o Pannuzio, para ir para o segundo turno, tem que passar antes pelo primeiro”

Lula, em 20/08/2020, à TV Democracia.

A fala de Lula demonstra que ele ainda se recusa a admitir um fato singelo da política. As pesquisas que mostravam o mau desempenho do PT num eventual segundo turno eram apenas mais um sinal, dentre tantos outros, de que o partido permanecia (e permanece até hoje) isolado politicamente, com grande dificuldades de construir alianças. Isso significava não apenas que o partido seria derrotado no segundo turno, como teria insuperáveis dificuldades para governar, e esta seria a razão pela qual seria infinitamente mais sensato, seguro e inteligente, que escolhesse um candidato de outra legenda, que tivesse trânsito também fora da esquerda. Em 2018, esse candidato era naturalmente Ciro Gomes, que vinha costurando excelentes relações tanto com legendas progressistas, como PSB e PCdoB, como também com diversos partidos de centro e centro-direita, como prova as declarações reiteradas de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara dos Deputados, de que defendeu o apoio desses partidos ao pedetista.

Apesar disso tudo já ser passado, as declarações de Lula provam que ainda há uma disputa pela narrativa do que houve em 2018. Essa é a grande ferida aberta dentro da esquerda, desde então. Declarações de lideranças da Rede, do PSB, e de inúmeros quadros do PCdoB e até mesmo de alguns do PSOL, mostram que todas as grandes divergências dentro do campo progressista giram em torno dessa “disputa narrativa” dos eventos em 2018.

Dificilmente, haverá qualquer convergência dos campos progressistas sem que se chegue a um consenso mínimo em torno desse tema. O ideal, porém, é que o debate se desse com franqueza, sem “cancelamentos”, sem ódio, sem ataques pessoais, e que todos colocassem o interesse nacional acima das veleidades e afetos.

A importância dessa disputa narrativa é que dela sairão as estratégias para 2022… E das estratégias, por sua vez, emergirá uma nova derrota da esquerda ou uma vitória sensacional contra o neofascismo de Jair Bolsonaro.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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