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Foi o chefe mais amado da Nação, por João Valério

Segunda-feira, 24 de agosto de 2020, completam-se 66 anos do suicídio do presidente Vargas. Como de costume, publicaremos a carta-testamento e a carta-despedida. E, como novidade, faremos, ao final sugestões de livros, documentário e entrevistas que discutem o significado da Era Vargas. Embora a contribuição de seu governo seja central para compreendermos o desenvolvimento do […]

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Getúlio Vargas e Villa Lobos. Foto: acervo histórico.

Segunda-feira, 24 de agosto de 2020, completam-se 66 anos do suicídio do presidente Vargas.

Como de costume, publicaremos a carta-testamento e a carta-despedida. E, como novidade, faremos, ao final sugestões de livros, documentário e entrevistas que discutem o significado da Era Vargas.

Embora a contribuição de seu governo seja central para compreendermos o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a construção de uma civilização nos trópicos, nossa proposta consiste em pensarmos o período como objeto privilegiado para capturarmos os limites em que esbarram os projetos reformistas. Não se trata de um inventário de seu legado, mas de interpretar, no processo de formação econômica nacional, os limites com que seu governo se deparou. Inseridos na passagem do capitalismo competitivo para o monopolista, os governos de Vargas (1930-1945 e 1951-1954) revelam a peculiaridade do nosso capitalismo: para se reproduzir, moderniza-se o arcaico e “arcaiza-se” o moderno. 

Do ponto de vista da formação econômica, a construção de uma economia nacional passava pela superação da economia colonial, compreendida não como resquício da história, mas como raiz dos nossos dilemas. Dentro da ordem, a superação do capitalismo dependente, em teoria, passaria pelo aprofundamento dos mecanismos de controle do Estado, suprimindo as debilidades do capital privado nacional, ou pela revolução socialista – na esteira da Revolução de 1917, as colônias e neocolônias só se emancipariam superando a ordem que lhes deu origem. A emancipação nacional, dentro da ordem, confunde-se com o enfrentamento das estruturas do capitalismo dependente pelas economias de passado colonial. Do ponto de vista econômico, essa luta esbarrava no caráter truncado de nosso desenvolvimento, incapaz de produzir um padrão de financiamento compatível com a escala necessária das estruturas econômicas modernas e de barganhar por transferências de tecnologia, à época concentradas nas grandes empresas e constituindo-se enquanto ferramenta de concorrência e de geopolítica. Depreende-se, desse quadro, que não estava colocada a superação radical da dependência: os graus de autonomia dependiam da amplitude do “convite” feito pelo polo ocidental, os EUA, ao desenvolvimento capitalista – o que nos distingue fundamentalmente do caso da Coreia do Sul. Teórico ou historicamente, o desenvolvimento autônomo, num nacionalismo radical, não estava colocado para os países dependentes. A opção por um “desenvolvimento prussiano” constituiu-se, nada menos, que em sonho – ou uma ilusão desenvolvimentista, diriam alguns. 

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Vargas compreendeu perfeitamente essas questões de seu tempo e buscou, alternativamente à solução socialista (cujas limitações não estão no nosso escopo), a todo momento, fortalecer o Estado nacional e barganhar com o imperialismo as condições de financiamento da industrialização em bases nacionais. Para além de uma discussão acerca do caráter direto ou indireto das medidas de recuperação da crise de 1929 sobre o processo de industrialização, importa observarmos que o encaminhamento dos bloqueios colocados pelas oligarquias regionais à reordenação da ordem econômica e social conquistada no Estado Novo permitiu que os conflitos de interesses fossem inseridos nas estruturas estatais, que organizavam o poder. A estrutura montada pelo governo (e com influência de setores da burguesa, para tranquilizarmos parte da historiografia que se dedicou a atenuar a incompetência histórica dessa classe em forjar uma economia moderna, mostrando as contribuições de suas lideranças nas decisões econômicas) no período do Estado Novo – Conselho Federal de Comércio Exterior, Coordenação de Mobilização Econômica, para ficarmos em dois casos -, combinada com a regulação sobre os fluxos de bens e de capitais, concorreu para a industrialização do país. O governo Vargas instituiu uma nova forma de relação e intersecção entre Estado, economia, sociedade, cultura e política que desmantelava a “vocação agrária” e encontrava, na empresa estatal, uma nova forma de impulsionar os saltos de modernização das estruturas de mercado. Foi dessa forma, com ampla intervenção coordenada por uma elite da burocracia, das Forças Armadas e do movimento modernista, seja pela política econômica, pela regulação, seja pela empresa estatal, que o país caminhava, já na década de 1940, para a segunda revolução industrial – a do aço e da eletricidade. Essas são as proporções (históricas, econômicas, sociais, políticas e simbólicas) da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), da Vale do Rio Doce e da Companhia Hidroelétrica do São Francisco.

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Essa insuficiente consideração acerca do Estado Novo ajuda extrairmos um projeto de desenvolvimento nacional: as rupturas com o modelo primário-exportador e a nova institucionalidade, que mediava as relações entre Estado, economia, sociedade, cultura e política, constituíram-se como projeto político alternativo para intermediar a penetração da modernidade, de uma nova sociabilidade. Para parte da literatura, que identifica na Era Vargas a demagogia e o populismo, a inexistência de um plano preestabelecido de metas e objetivos bem delineados fortalecia o argumento do caráter conservador e imediatista do governo, preocupado em se conectar diretamente com as massas, atravessando as instituições políticas da democracia burguesa. Por outro lado, de um ponto de vista mais amplo, da penetração da modernidade na vida brasileira, é questionável representar Vargas a continuidade dos termos da República Velha (1889-1929). A economia do café, do algodão, do mate e do cacau passou a conhecer o aço, a luz elétrica e a produção industrial de bens de capital e bens de consumo, enquanto o monopólio sobre o comércio exterior, com centralização cambial, e a moratória da dívida externa davam a letra antiliberal.

Houve muitas resistências ao marcos regulatórios e a esses empreendimentos: Volta Redonda, a usina siderúrgica, chegou a ser considerada “grande demais”; a consolidação das leis do trabalho ficou restrita ao mundo urbano e aos trabalhos que ajudavam na “construção nacional” (excluindo uma massa de serviçais das classes altas e médias); os controles sobre os fluxos de mercadorias e capitais foram atacados, inclusive por setores industriais. Concebia-se um projeto nacional de desenvolvimento que, implicitamente, trouxe consigo uma determinada intervenção estatal, num sentido amplo: uma particular forma de articulação entre economia e Estado que fazia avançar a corrida pelo cathing-up tecnológico, superando as debilidades financeiras da burguesia brasileira. Dentro dessa forma particular, a empresa estatal mostrava que o setor público poderia ser eficiente na produção, assegurando a soberania nacional sobre a exploração de setores estratégicos. Demais, ficava claro que o controle sobre o câmbio e o crédito tornava-se instrumento indireto de intervenção, mas igualmente necessário para a modernização das estruturas de mercado local. Se essas medidas não constituíram um plano bem acabado, certamente as reações contrárias advogavam por uma alteração nos rumos que o país tomava sob égide do regionalismo paulista. 

Não precisou passar muito tempo para que os destituídos de 1930 se reorganizassem e, diante das transformações observadas, selecionassem melhor os seus alvos. Os liberais brasileiros passaram a aceitar a “indústria natural”, mas não perdoaram o Estado interventor e regulador. A manutenção da ordem, que aqui se exprime na inserção da economia brasileira como mera produtora de bens tropicais e importadora de bens industriais, encontra-se na raiz do liberalismo econômico. Não por outra razão, o regime de câmbio e os órgãos de administração criados durante o Estado Novo foram esvaziados já em 1945, no governo provisório de José Linhares, e, alguns, encerrados pelo governo Dutra (1946-1950), resguardado pela nova Constituição de 1946. O Segundo Governo Vargas (1951-1954) inicia-se não só sob outro regime, a democracia, mas com seus instrumentos de administração reduzidos ao mínimo: daí a necessidade de uma Assessoria Econômica da Presidência, mas que funcionava na penúria, motivada pelo espírito do servidor público daspiano (ainda tínhamos o servidor público, antepassado do funcionário público e do concurseiro). Somam-se a essas “novidades” os desequilíbrios da economia e geopolítica da Guerra Fria, afetada por forte crise cambial e por agravamento das condições de vida proporcionado pelo aumento da inflação. 

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Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt

O Segundo Governo não perdeu tempo e, já na Mensagem de 1951, deu o tom de seu projeto de desenvolvimento, uma versão mais moderna e arrojada em relação ao que se pretendeu no primeiro período. Mas, sob outro regime político e sob o clima de Guerra Fria, o desafio da barganha com o imperialismo e o enquadramento da burguesia brasileira eram mais difíceis. As negociações com o Congresso e o alinhamento irredutível em determinados assuntos (como o intervencionismo na economia) com a política externa dos EUA criavam um novo ambiente para as negociações do projeto de desenvolvimento. Com o fim do governo Roosevelt, os termos dos EUA em relação aos demais países alteraram-se substancialmente. Dentro desta quadra, importa destacar a verdadeira saga de aprovação dos recursos a serem administrados pelo BNDE, então criado por sugestão da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos – e já colocado na Missão Cooke, no período anterior; a obstrução do projeto Eletrobrás e os cortes a que o projeto Petrobrás foi submetido. Do ponto de vista da regulação econômica, destacamos as disputas travadas pelos servidores da CEXIM na concessão das licenças para a importação, bem como a reação contrária à política de criação dos câmbios múltiplos por parte de todas as frações da burguesia brasileira. O projeto nacional de desenvolvimento e a intervenção estatal subjacente eram novamente derrotados na arena política, em que se encontra o centro das decisões sobre as transformações da economia. Daí a necessidade de avaliarmos sempre a constelação de classes que compreendem e cerceiam o Estado nacional para depois examinarmos a economia, o desenvolvimento e a industrialização. 

Merecem, nesse aspecto, considerações mais aprofundadas o regime de câmbio e de remessas de lucros. Numa economia dependente, o projeto de desenvolvimento nacional precisava enfrentar uma questão central: a escassez de divisas, que exigia o controle sobre a sua utilização, garantindo a realização das mudanças estruturais, que permitiriam, em teoria, via diversificação das exportações, maior ingresso dessas divisas, num período subsequente, e, na prática, maior poder de fogo do Estado nacional para a barganha. Com a economia estabilizada do ponto de vista das contas externas, haveria mais segurança e bala na agulha tem o Estado e a própria burguesia para parir a sociedade moderna. O controle sobre as divisas tornou-se objeto de disputa entre as frações da burguesia entre si e, em relação ao Estado, os entraves recairiam sobre os critérios de seletividade e essencialidade das importações e remessas de capital. O Segundo Governo Vargas pretendeu controlar os fluxos de importação e exportação, canalizando as divisas geradas pela economia (basicamente, a economia do café) para a industrialização e, noutra frente, barganhar empréstimos, numa modalidade governo-governo (empréstimos públicos), e financiamentos necessários para ampliar a infra estrutura do mercado brasileiro – e, daí, falarmos em modificação das estruturas de mercado. Não haveria espaço, portanto, para a importação de bens de consumo nem para terceirizar a industrialização ao capital internacional. Daí, nessa frente, a adoção de restrições para a repatriação de capital, que, se liberadas, comprometiam o equilíbrio do balanço de pagamentos. 

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O Segundo Governo Vargas nos ensinou que, diante da opção fácil das importações de bens de consumo para o atendimento da demanda de consumo das classes abastadas e média e da terceirização da industrialização, com as empresas internacionais ingressando no mercado brasileiro e convertendo-se em polo dinâmico de um modelo de desenvolvimento baseado nos bens de consumo (em detrimento de bens de capital), a burguesia brasileira não hesita: em detrimento da soberania, prefere a Volkswagen no Brasil que a Volkswagen do Brasil; instrumentaliza o arcabouço intervencionista e regulador do Estado a favor da modernização dos bens de consumo; e realiza a importação dos bens de capital necessários, ainda que com tecnologia defasada. Os controles instituídos pela Lei 1.807 de janeiro de 1953 e pela Instrução 70 da SUMOC, que flexibilizavam o mercado cambial, mas sem perder os critérios de essencialidade instituídos pelo governo, sofreriam resistências justamente pela sua discricionariedade, definindo as trasações comerciais e de capital de interesse nacional e que se beneficiavam de um câmbio mais vantajoso. Em relação às remessas, especificamente, com a adoção de medidas retroativas (!!!) do Decreto 30.363 de 1952, sobre o cálculo dos lucros e das remessas, estabeleceram-se novos critérios para a apuração dos reinvestimentos, o que, praticamente, reduziu a base de cálculo dos investimentos realizados – e, por conseguinte, os lucros e capitais a serem remetidos. Todos esses elementos comoveram a opinião pública a favor do capital internacional e instituiu uma crise nas negociações dos empréstimos com os EUA, e o governo acabou recuando. 

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Tabela 1 – Investimentos estrangeiros no Brasil – 1947/54 (US$ milhões)
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Tabela 2 – Taxas de câmbio sobre o regime de leilões (10/1953 – 08/1957) (Cr$/US$)
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Quadro 1 – Categorias de importação criadas pela Instrução 70 de 1953.

Da tabela 1, podemos nos aproximar do significado do Decreto 30.363, que alterava a base de cálculo dos investimentos estrangeiros, desconsiderando os reinvestimentos. No entendimento do governo, o cálculo das remessas deveria considera o investimento novo realizado no país, ou seja, as remessas deveriam guardar alguma relação com os aportes. Nesse sentido, reinvestimentos, que seriam oriundos de lucros acumulados, à medida que não significavam novos aportes, gerariam distorções. Numa palavra, o Decreto 30.363 atacava o problema central do desequilíbrio externo em economias dependentes: a realização dos ganhos e a repatriação dos lucros não se dão na mesma moeda, sendo necessária a disponibilidade de dólares para garantir a repatriação de ganhos das filiais que operam em cruzeiros. Importa notar que, no período do Estado Novo, o governo buscou realizar auditorias na contabilidade das empresas estrangeiras, suspeitando haver irregularidades na contabilização de investimentos e reinvestimentos que subcontabilizavam os ganhos e inflavam os aportes – o que ficou comprovado, posteriormente, no caso das operadoras de energia elétrica no Rio Grande do Sul e justificaram a estatização. O Decreto, nesse sentido, buscava enfrentar a questão colocada no período anterior. Como podemos observar nos dados, os reinvestimentos têm peso considerável, se considerados os investimentos líquidos ou totais, constituindo-se como a base do financiamento das empresas estrangeiras. A questão não era, portanto, restringir sua atuação, mas limitar as repatriações que não eram resultados de novas inversões. 

Já os dados da Tabela 2 e do Quadro 1 revelam os critérios de essencialidade e de discricionariedade pretendidos pelo Segundo Governo Vargas. Como podemos observar, as desvalorizações, em relação ao mercado oficial, alcançavam nada menos que 320% para as categorias de bens menos essenciais, o que significava o encarecimento de bens importados, ou seja, uma proteção ao mercado interno. Algumas importações continuavam a ser realizadas pelo mercado oficial, mas já era possível notar uma diversificação considerável de bens nas categorias criadas. Do ponto de vista da utilização das divisas, essas categorias significavam uma diferenciação, por exemplo, para os importadores de veículos (Categoria 3) e os importadores de equipamentos elétricos (Categoria 1), numa clara sinalização pelo fomento da indústria pesada. Para as exportações, o objetivo era a sua diversificação, posto que a pauta ainda era essencialmente composta pelo café. Demais, destacamos que a regulação impedia que os ingressos de capital ganhassem com essas diferenciações cambiais (ingressando num câmbio mais barato e repatriando num câmbio mais caro – sob o ponto de vista da empresa estrangeira), embora houvesse condições especiais, na entrada e na saída, para os capitais considerados de interesse nacional. Todos esses fatores constituem a modificação qualitativa da intervenção estatal, o que torna o Segundo Governo Vargas não apenas uma continuação do primeiro, mas um aprofundamento radical no fortalecimento da industrialização sob bases nacionais: em relação ao mercado de câmbio, o controle e a criação de algumas faixas de bens, durante o Estado Novo, metamorfoseou-se num complexo e amplo regime cambial que, articulado ao projeto nacional de desenvolvimento, pretendia organizar a industrialização pesada e soberana, restringindo a participação do capital estrangeiro em setores estratégicos e garantindo a utilização de divisas escassas para os projetos de infra estrutura e produção de insumos básicos da economia. 

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O fim do SGV, que, neste dia 24, completa 66 anos, é a derrota deste projeto nacional desenvolvimento, voltado para a estruturação da economia nacional na indústria pesada e em fundamentos que atenuassem o caráter dependente. Do nosso ponto de vista, o mais curioso foi a união da burguesia brasileira, da fração industrial à comercial, contra o projeto: mesmo longe de constituir-se como projeto revolucionário, isto é, de superação da ordem, a estratégia varguista de desenvolvimento foi colocada contra a parede pela burguesia brasileira, que não endossou as medidas cambiais e de controle sobre os fluxos de bens e capitais. Dessa decisão política de não sustentar o Segundo Governo Vargas, depreende-se que nossa burguesia opera como artífice do capital internacional, que vinculava a adoção de medidas econômicas “corretas” à liberação dos empréstimos. Nesse sentido, capital internacional distingue-se de capital estrangeiro, pois o modo como opera é o que determina a sua natureza – e não o local de origem. Importa observar que existiam restrições de ordem geopolítica, mas, principalmente, de ordem interna, com a burguesia brasileira optando internamente pela terceirização da industrialização brasileira. 

Do ponto de vista interpretativo, os conflitos entre o projeto varguista de desenvolvimento e a burguesia brasileira colocam-se não apenas nos termos da luta entre o capital e o trabalho, mas também no tipo de intervencionismo econômico. Noutras palavras, tão importante quanto a política salarial do período (que determinou um aumento de 100% no salário mínimo), a política cambial revela um embate entre a burguesia brasileira e as formas de atuação do Estado nacional. A Era Vargas coloca objetos (a política econômica, a regulação, os projetos Petrobrás, Eletrobrás, BNDE etc.) privilegiados para capturarmos os limites da burguesia brasileira em empreender politicamente um projeto nacional de desenvolvimento. Num período anterior ao golpe de 1964, encontramos a opção por uma industrialização desenraizada das necessidades de reprodução da sociedade brasileira sob o capitalismo, voltada aos interesses imediatos, que concorrem para soluções de menor resistência. A burguesia brasileira não abandona o seu ventre mercantil, apesar do desenvolvimento do capital industrial e financeiro nos trópicos. Ela combina arcaico com moderno e moderno com arcaico. Trata-se de uma burguesia particular, cuja revolução, consumada em 1964, assume caráter de contrarrevolução, mantendo o caráter dependente:

Há burguesias e burguesias. O preconceito está em pretender-se que uma mesma explicação vale para as diversas situações criadas pela “expansão do capitalismo no mundo moderno”. Certas burguesias não podem ser instrumentais, ao mesmo tempo, para a “transformação capitalista” e a “revolução nacional e democrática”. O que quer dizer que a Revolução Burguesa pode transcender à transformação capitalista ou circunscrever-se a ela […].

Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil

Não seria estranho, nessa quadra, interpretarmos a industrialização como mais um grande negócio, em que a burguesa brasileira atua como sócia do empreendimento, tomando o controle do planejamento estatal, a fim de reorientar a revolução econômica em curso, e calibrando-o para um modelo associado-dependente que objetivava nada menos que a modernização dos padrões de consumo. Numa palavra, não nos parece equivocado inserir a industrialização como o último milagre brasileiro, na célebre expressão de Sérgio Buarque de Holanda:

Teremos também nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão de milagres há de continuar assim através de todo o período colonial, e não interromperá a Independência, sequer, ou a República. 

Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso

Para além do significado deste 24 de agosto de 2020, importa destacar que a compreensão de nosso processo histórico depende da combinação de sínteses dos clássicos de interpretação do Brasil com os estudos especializados, que dispõe de farta documentação e esclarece sobre eventos relevantes na compreensão do todo. O trânsito entre esses dois tipos de trabalho se impõe para pensarmos a nossa trajetória e os problemas com que nos defrontamos. Por isso, não basta apenas recordarmos um período central de nossa história, mas devemos ir além, resgatando as interpretações de “longa duração”, que nos ensinam a não subestimar a força do velho em se atualizar e a não superestimar a força do novo em se impor, liquidando o passado. No centenário de nascimento de Celso Furtado e Florestan Fernandes, a discussão a respeito dos dilemas da formação, tão escancarados na Era Vargas, é uma discussão sobre o futuro. 

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Livros, entrevistas e documentários

Agosto. Rubem Fonseca.
Artes da política. Diálogo com Amaral Peixoto. Aspácia Camargo.
Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Maria da Conceição Tavares.
A Era Vargas. José Augusto Ribeiro.
A Era Vargas. Pedro Paulo Bastos e Pedro Dutra Fonseca (Orgs.).
Getúlio. Lira Neto.
Getúlio Vargas, meu pai. Alzira Vargas do Amaral Peixoto.
A invenção do trabalhismo. Ângela de Castro Gomes.
Petróleo, energia elétrica e siderurgia. Jesus Soares Pereira.
A política econômica do Segundo Governo Vargas (1951-1954). Sérgio Besserman Vianna.
Quarup. Antônio Callado.
Regionalismo e centralização política. Partidos e Constituinte nos anos 30. Ângela de Castro Gomes.
Rumos e metamorfoses. Sônia Draibe.
Tancredo fala de Getúlio. Valentina Lima.
Vargas: capitalismo em construção. Pedro Dutra Fonseca.
Vargas e a crise dos anos 50. Ângela de Castro Gomes (Org.).

Getúlio (filme de João Jardim).
Imagens do Estado Novo (documentário de Eduardo Escorel).
O longo amanhecer (documentário de José Mariani).
Sonho intenso (documentário de José Mariani).
Getúlio Vargas (documentário de Ana Carolina Teixeira Soares).
Vargas – 50 anos depois (palestras ministradas no IE/UNICAMP).
Entrevista com Celina Vargas (CPDOC/FGV).
Entrevista com José Augusto Ribeiro (Linha Direta).

Dr. Getúlio
(Chico Buarque e Edu Lobo)

Foi o chefe mais amado da nação
Desde o sucesso da revolução
Liderando os liberais
Foi o pai dos mais humildes brasileiros
Lutando contra grupos financeiros
E altos interesses internacionais
Deu início a um tempo de transformações
Guiado pelo anseio de justiça
E de liberdade social
E depois de compelido a se afastar
Voltou pelos braços do povo
Em campanha triunfal

Abram alas que Gegê vai passar
Olha a evolução da história
Abram alas pra Gegê desfilar
Na memória popular

Foi o chefe mais amado da nação
A nós ele entregou seu coração
Que não largaremos mais
Não, pois nossos corações hão de ser nossos
A terra, o nosso sangue, os nossos poços
O petróleo é nosso, os nossos carnavais
Sim, puniu os traidores com o perdão
E encheu de brios todo o nosso povo
Povo que a ninguém será servil
E partindo nos deixou uma lição
A Pátria, afinal, ficar livre
Ou morrer pelo Brasil

Abram alas que Gegê vai passar
Olha a evolução da história
Abram alas pra Gegê desfilar
Na memória popular

Carta Testamento

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.
Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre,não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos.
Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.
Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém.
Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.
Getúlio Vargas. 

Carta Despedida

Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte.
Levo o pesar de não haver podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia.
A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.
Acrescente-se a fraqueza de amigos que não me defenderam nas posições que ocupavam, a felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês e a insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país contra a minha pessoa.
Se a simples renúncia ao posto a que fui elevado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da Pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para, com mais fúria, perseguirem-me e humilharem. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes.
Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue de um inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus.
Agradeço aos que de perto ou de longe trouxeram-me o conforto de sua amizade.
A resposta do povo virá mais tarde…

Getúlio Vargas. 

***

Texto atualizado em 25/08/2020

João Valério é economista de formação (FACAMP) com mestrado em desenvolvimento econômico, área de história econômica (IE/UNICAMP). Torcedor do clube da fé e estudioso da história econômica nacional.

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Comentários

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firmesa sorocaba

26/08/2020 - 18h53

Tamanho fanatismo em cima de uma liderança política. Tomara que algum dia nossa população evolua de modo a nunca mais precisarmos de “salvadores da pátria” populistas como esse aí.

Paulo

26/08/2020 - 17h10

E o único que teve coragem de se matar. Alguém imagina o “durão” Bolsonaro fazendo isso?


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