Pedro Serrano: defender a violência estatal para derrotar Witzel é agir de forma protofascista

Pedro Serrano

Conversamos com o jurista, advogado e professor Pedro Serrano sobre o afastamento de Wilson Witzel do cargo de governador do Rio de Janeiro, determinado pelo Superior Tribunal de Justiça. A seguir, a entrevista:

O Cafezinho: O senhor escreveu que considera inconstitucional e ilegal o afastamento de Wilson Witzel do cargo de governador do RJ. Pode dizer aos nossos leitores, resumidamente, o que o levou a esta conclusão?

Pedro Serrano: Considero inconstitucional o afastamento porque a [ação] cautelar penal para afastamento de servidor é prevista para o servidor público. O espírito dela é de afastar o servidor público como uma medida cautelar protetiva do processo penal. Agora, o servidor público, como ele mantém um vínculo profissional com o Estado, o afastamento dele é reparável. Se você afasta o servidor público do cargo, depois o processo anda e se vê que ele é inocente, você o devolve ao cargo e ele ganha os salários que deixou de receber naquele período. Ele é indenizado, às vezes até afastado com salário, nem chega a ter prejuízo. A medida de afastamento é só uma forma de evitar que ele eventualmente possa prejudicar o processo penal.
O mandato é diferente. Aos titulares de mandato, ao meu ver, não se aplica esse tipo de cautelar. Isso porque esse tipo de cautelar subtrai parte do mandato de forma irreparável. Um mandato tem quatro anos, o que significa dizer que ele é de um número X de dias, e cada dia que você suprime desse mandato, você está suprimindo uma parte do direito do titular e uma parte da soberania popular.
Soberania popular é um valor essencial do princípio democrático, como norma constitucional. A soberania popular é a essência da democracia e a democracia no Brasil não é uma mera opção política, mas um comando constitucional, um princípio constitucional, uma norma constitucional, uma ordem da Constituição. E democracia implica soberania popular. É óbvio que, a partir da concepção de democracia do pós-guerra, passou-se a equilibrar a noção de soberania popular com direitos, mas isso tem limites. No Brasil nós estamos vulgarizando a vulneração da soberania popular. Isso vem ocorrendo desde os governos de esquerda democrática até hoje em dia. O número de decisões que vulneram a soberania popular está aumentando intensamente. Daqui a pouco nós vamos passar a ter uma juristocracia, ou seja, uma ditadura dos juízes, o que é muito ruim. (Juristocracia é uma expressão dos juristas canadenses.) Então nós temos que tomar muito cuidado com isso. E, no caso, acho que a [ação] cautelar de afastamento de cargo público se aplica a servidores públicos e não a titulares de mandato. 

OC: O senhor acredita que há evidências de interesses políticos por trás da decisão do STJ?

PS: Até agora eu vi cogitações na mídia de interesses políticos, mas não vi ainda nenhum elemento concreto, material de que possa haver algum tipo de interferência política real nessa decisão. Eu não estou descartando que haja, aliás, acho que é bem possível que haja, sim, porque a decisão é tão impactante, ela é tão contrária à estrutura constitucional que ela gera esse tipo de indagação, porque nós podemos estar sim perante uma medida de exceção, ou seja, que tem uma aparência de juridicidade e um conteúdo político tirânico. Então, pode haver sim essa intenção política. 
Para mim, a interferência política não é banalizada, como se coloca no Brasil. Quando você fala de uma decisão judicial que caça um mandato popular, por decisão monocrática, e você fala que há intenção política, se está falando de uma medida de exceção. É algo muito grave no sistema. É uma medida ditatorial dentro da democracia. Portanto, algo muito grave. Mas para chegar nessa conclusão nós precisamos estudar o caso, verificar com um pouco mais de cautela e não necessariamente no tempo da notícia; tem que ser no tempo do estudo. Então eu acho muito cedo pra poder fazer essa afirmação.  

OC: O que o senhor pensa sobre a postura de setores do campo progressista, que muitas vezes festejam prisões duvidosas quando o réu é adversário político?

PS: Essa história nós precisamos colocar num campo mais claro. Eu sei que é um ponto contundente, não é muito simpático… Eu também sou progressista, mas eu tenho que falar com clareza pra gente poder fazer as nossas autocríticas devidas também. O campo progressista são forças de centro-esquerda até o que a gente pode chamar de esquerda mais extremada. E parcela desse campo não é realmente garantista. Uma parcela desse campo tem uma mentalidade punitivista. E isso se reflete inclusive em governos de esquerda. Cuba, por exemplo, é o sétimo país do mundo em número de aprisionados proporcionalmente à população. Isso quem fala não sou eu, é o maior índice global desse tipo de aferição. Portanto, existe uma mentalidade punitivista na esquerda também, que acredita num Estado forte e numa visão não constitucionalista de Estado. E a visão constitucionalista de Estado entende que a decisão política e a judicial estão limitadas pelos direitos. Uma forte parcela da esquerda não tem essa visão, tem uma visão punitivista e adere aos direitos humanos de forma oportunista, eu diria. Eles chamam de tática, eu chamo de oportunista.

OC: O senhor pensa ser politicamente viável defender figuras protofascistas, como Witzel, do arbítrio judicial?

PS: Veja, nós não podemos confundir o fato do Witzel ser um protofascista, e ele é mesmo, não há a menor dúvida de que é um sujeito deletério para o ambiente político brasileiro, não deveria ter sido eleito. O pior da humanidade está ali, digamos assim. No plano político é isso o que eu penso. Agora, não podemos confundir, numa democracia constitucional, o plano político com o plano judicial. Uma coisa é disputa política, uma coisa é você derrotá-lo na política, derrotá-lo na cultura, derrotá-lo nos valores. Outra coisa é querer usar da força, da violência física do Estado para poder realizar uma derrota política. Isso é um imenso equívoco, é absolutamente autoritário. Veja, o protofascismo não nos derrota quando ele nos prende, porque companheiros permanecerão livres para poder continuar lutando. Ele também não nos derrota quando ele nos mata, porque o nosso corpo servirá como um alerta do desejo de liberdade da sociedade, e outros seguirão lutando. Ele nos derrota quando ele nos transforma em algo parecido com ele. Defender o uso do aparelho de violência estatal para derrotar Witzel é agir de forma protofascista. É ficar parecido com quem a gente combate. E nisso nós não devemos ceder. A cada momento em que nós ficamos mais parecidos com os protofascistas, nós somos, aí sim, derrotados. E nós não podemos deixar isso acontecer.

OC: Que linhas de ação política o senhor acredita serem efetivas no combate à interferência judicial ilegal na política?

PS: Nós temos que pensar, não é simples. Esse tipo de problema é mais fácil criar, e é um problema grande, do que solucionar. Por isso que a democracia constitucional implica também numa certa postura conservadora, e é bom que seja assim. Porque certas instituições e valores do Estado de Direito e da democracia são difíceis pra burro de construir e muito fáceis de destruir. E uma vez destruídos, é muito difícil reconstruí-los novamente. Por isso conservar os valores da democracia e as suas instituições é muito relevante. Essa interferência judicial inconstitucional na política gerou destruição imensa das nossas instituições democráticas e feriu quase de morte a nossa democracia nascente. Não é um problema fácil. A Argentina está agora experimentando uma tentativa de solução, que é uma reforma parcial no sistema de justiça. Eu não sei se vai funcionar, porque o sistema de justiça é constituído por homens. E esses homens fazem parte de uma estrutura social, e essa estrutura social é contaminada – na Argentina menos que no Brasil.
O nossos sistema de justiça foi constituído a partir de um direito à educação que foi privilégio dos imigrantes brancos que vieram nas ondas de migração do fim do século XIX e começo do século XX. Quando o direito à educação como direito público, como direito social, foi criado, na Constituição de 1934 – foi o primeiro direito social criado na história brasileira, no plano constitucional –, o artigo 138 dessa Constituição estipulava a eugenia como princípio da educação. Ou seja, excluía os negros da educação pública. Obviamente isso gerou uma consequência multigeracional, em que os brancos acabaram tendo acesso à educação, e por isso ocuparam as carreiras do sistema de justiça, do Judiciário, do Ministério Público, da polícia, das procuradorias, e mesmo fora do sistema de justiça, as carreiras diplomáticas, o oficialato das Forças Armadas, os fiscais da Receita etc. Então essa parte da elite eurodescendente, que ocupou os estamentos estatais, tem uma visão colonialista, um paradigma colonialista da democracia e da Constituição. É um paradigma incompatível com uma Constituição democrática moderna e com o capitalismo moderno. Então o que nós temos que resolver, no fundo, é esse problema da sociedade brasileira, que é a fonte de todos os nossos problemas. Nós precisamos modernizar o capitalismo brasileiro, nós precisamos ir à frente. Nós precisamos efetivamente construir uma democracia constitucional, custe o que custar.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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