Exceção normalizada

Witzel e Bolsonaro em junho de 2019, antes de se tornarem inimigos mortais. Foto: Carolina Antunes/PR

Esta matéria da Folha é uma ilustração precisa da análise que o jurista Pedro Serrano fez na ótima entrevista que concedeu ao Cafezinho (se você ainda não leu, vale a pena). Para o advogado e professor, apesar de banalizada no Brasil, a interferência política em decisões do Judiciário é algo muito grave. No caso do afastamento do governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel pelo STJ, Serrano afirma que, se for comprovada interferência política na decisão, estaremos diante de uma “medida de exceção”, “uma medida ditatorial dentro da democracia”.

Agora, compare a gravidade com que o jurista trata a questão com a naturalidade com que a reportagem Folha discorre sobre as pressões, articulações e conluios entre políticos e membros do Judiciário no caso Witzel. A começar pelo título: “Planalto pressiona STJ a derrotar Witzel e aposta em vice para blindar família Bolsonaro”.

(Não vou comentar a tentativa de “blindagem” da família Bolsonaro – um escândalo continuado gravíssimo – pois não é o foco deste artigo.)

Nos bastidores, interlocutores do governo procuraram ministros [do STJ] e assessores com discurso a favor da retirada do poder de Witzel, inimigo da família presidencial

, diz a matéria. Pois então decisão judicial tornou-se isso, no Brasil? O governo pode enviar “interlocutores” para falar com os julgadores “nos bastidores” e, dessa forma, tentar convencê-los a dar uma decisão que favoreça politicamente o governo?

E a troco de que os ministros do STJ se sujeitariam a isso? A Folha diz que

a aposta [dos aliados do presidente Bolsonaro] é que o STJ, que tem diversos ministros de olho no STF, confirme a decisão [que afastou Witzel].

É tão irônico quanto previsível: os poderosos membros do Judiciário, que tornaram-se os carrascos da classe política “desvirtuada”, agem eles mesmos politicamente, mas de forma torpe e à margem da lei, pois usam das prerrogativas do seu cargo público para atingir fins pessoais.

Alguém poderia alegar que a matéria é quase toda em off, não apresentando a fonte dessas informações. É verdade. Contudo, a prática política do governo Bolsonaro (& Filhos, como diz o Veríssimo), visceralmente autoritária, fala por si. Assim como a atuação do poder Judiciário nos últimos anos, desde o primeiro grau aos mais altos escalões, explicita que a política e a sempre conveniente “voz das ruas” têm mais influência que a lei e a Constituição, essas coisas ultrapassadas.

Mesmo na remota hipótese de que o descrito na reportagem não está acontecendo – vai que o governo Bolsonaro surtou e está agindo de forma republicana diante de mais um escândalo que lhe interessa politicamente – a matéria não deixa de ser chocante, pois demonstra exatamente a naturalização da medida de exceção, do ato “ditatorial dentro de uma democracia”: se os comandos da Constituição fossem levados a sério, notícias como essas mereceriam capa, editoriais, artigos, todos condenando energicamente a interferência indevida do Executivo no Judiciário.

A matéria ainda menciona as críticas ao fato de a decisão ter sido monocrática; contudo, Benedito Gonçalves, ministro responsável pelo afastamento do governador, “se preveniu”:

Primeiro, as evidências expostas e a grande operação da Polícia Federal criaram ambiente favorável ao entendimento adotado em relação à opinião pública.

Aqui temos uma confirmação de que o modus operandi da Lava Jato realmente espalhou-se por todo o Judiciário, como uma praga de gafanhotos (para usar uma peste da moda).

Agora, decisão judicial é uma espécie de Big Brother: é necessário conquistar a “opinião pública” para ter sucesso na competição, cujo prêmio é melhor que o do famigerado reality show – pesquise o salário de um ministro do STF, adicione os benefícios, pegue a expectativa de vida média de um cidadão brasileiro abastado e faça as contas. Sem falar no prestígio e no poder, que são bem maiores para um ministro do que para um ex-BBB (ao menos em determinados círculos).

E a reportagem continua, exibindo lavagem como fosse feijão com arroz:

O ministro [Benedito Gonçalves] procurou colegas e tem costurado nos bastidores a obtenção de uma maioria na Corte Especial. Além disso, tem contado com a ajuda do Planalto, que também atua para garantir o afastamento de Witzel. Para a engenharia política e jurídica traçada pelo governo Bolsonaro dar certo, porém , ainda será necessário o auxílio da PGR.

Que beleza. PIB despencando, salário mínimo estrangulado, desemprego explodindo, corte bilionário no orçamento da saúde para 2021, mas não se preocupe: o governo Bolsonaro está fazendo uma ótima engenharia política e jurídica para eliminar do mapa um possível adversário eleitoral do presidente.

À parte o dantesco show de horrores protagonizado diuturnamente pelo governo federal, é preciso pensar estratégias para debelar a juristocracia que erige-se diante de nossos aparvalhados olhos.

O primeiro passo é deixarmos de tratar o que é grave, o que é exceção, o que é ditatorial, como um inocente passeio no parque em plena primavera. Porque o que está se armando é um cruel e rigoroso inverno.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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