Boulos: “Ciro escolheu disputar o eleitorado do PSDB”

A entrevista de Guilherme Boulos ao jornalista Bob Fernandes prova que o ativista se tornou uma das lideranças políticas mais bem articuladas do país.

Entretanto, discordo respeitosamente de algumas de suas posições.

Boulos atribuiu o fracasso da “união da esquerda” em São Paulo e Rio de Janeiro à falta de visão dos dirigentes partidários sobre o gravidade do momento.

“Faltou o entendimento do que está em jogo nesta eleição. O maior desafio da esquerda deste ano é derrotar o Bolsonarismo nessas eleições”.

Não acho que seja isso. Acho inclusive que a asserção é um pouco hipócrita, porque se o principal objetivo fosse esse, então a esquerda deveria apoiar Bruno Covas em São Paulo e Eduardo Paes no Rio de Janeiro.

Os líderes da esquerda precisam ser mais francos com seus eleitores. Seus objetivos são fortalecer seus próprios partidos. E não há nada de errado nisso. O erro está na hipocrisia de pretender que existe somente uma estratégia para “derrotar o bolsonarismo”, que é a “minha”. Não. Existem várias estratégias na mesa para derrotar Bolsonaro, e talvez seja bom que seja assim, porque seria perigoso colocar todos os ovos na mesma cesta.

Outro erro desse discurso é tratar “esquerda” como se fosse uma instituição política secreta, da qual alguns partidos ou movimentos sociais (os “meus”, naturalmente) seriam donos. Esquerda não é um partido político secreto. E ninguém é dono dela.

Certos setores políticos, no entanto, fazem um enorme esforço para manter o controle dessa “marca” apenas para si mesmos. Talvez isso não fosse um problema, se esses mesmos setores não quisessem usar esse controle para alijar quem pensa diferente ou tem outras estratégias para “derrotar o bolsonarismo”.

Boulos precisa entender que há um amplo setor político, na verdade bem maior do que a esquerda, que compreende perfeitamente a necessidade de “derrotar o bolsonarismo”, e exatamente por isso acha que a estratégia não pode ser apenas “chegar ao segundo turno”.

Aliás, esse mesmo setor tentou alertar essa mesma “esquerda” que a estratégia adotada em 2018, de levar adiante a candidatura de Lula, mesmo preso, inelegível e com o antipetismo em seu auge, levaria à vitória do… bolsonarismo.

O candidato do PSOL afirma que ele é o único candidato com chance de evitar um segundo turno entre Covas e Russomano. Isso não é verdade. Marcio França pode perfeitamente chegar ao segundo turno. Mas reiteremos: se o que está em jogo é derrotar o bolsonarismo, então não se trata apenas de chegar ao segundo turno, mas de saber quem pode efetivamente vencer o segundo turno. E para vencer o segundo turno, o candidato progressista terá que agregar votos do eleitor de Russomano, no caso do segundo turno ser disputado com Covas. Ou seja, terá de ser alguém com capacidade de receber votos do centro, da centro-direita, captar votos de evangélicos e bolsonaristas. Qualquer um que analise a conjuntura política de São Paulo de maneira desapaixonada, honesta, e com foco justamente na derrota tanto de Bolsonaro como de Doria, sabe que Guilherme Boulos é o pior candidato para receber esses votos.

Outro momento interessante da entrevista é quando Guilherme Boulos responde às provocações de Bob Fernandes sobre o conflito entre Lula e Ciro Gomes.

Como construir um diálogo, pergunta Bob, chamando atenção às críticas duras de Ciro a Lula e ao PT.

Guilherme Boulos toma posição claramente contra Ciro. Para ele, Ciro “atrapalha”.

“Ciro tomou uma decisão política. De disputar um setor da sociedade que há 20 anos vota no PSDB. Aquela classe média urbana foi com Bolsonaro, mas não é bolsonarista. O PSDB perdeu a capacidade de organizar essa turma. O Ciro sentiu o cheiro e decidiu organizar essa turma. Ele fez um cálculo. Eu não acho que isso ajude. Para mim, isso atrapalha. Uma antecipação de 2022! Como vamos chegar em 2022 nesse cenário?”

Em minha modesta opinião, Boulos faz uma análise política profundamente equivocada, influenciado por uma narrativa petista igualmente falsa. A “classe média urbana” não votava em PSDB. Ao contrário, a classe média urbana foi o sustentáculo do movimento das Diretas Já e, em seguida, das vitórias da esquerda, inclusive do PT, até 2002. Foi a classe média que ajudou a eleger, por exemplo, Erundina como prefeitura de São Paulo, em 1989, e levou Lula o segundo turno nas eleições presidenciais daquele ano. Quem diz isso é o próprio Lula, em entrevista concedida no ano seguinte, em 1990, para André Singer, Cícero Araújo e Breno Altman.

“(…) LULA – Acho. Nós temos amplos setores da classe média com a gente – uma parcela muito grande do funcionalismo público, dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora. O que nós precisamos agora é ir diretamente a esse pessoal menos favorecido.”

A narrativa de que a classe média é “tucana”, “reacionária”, e, por fim, “fascista”, emerge quando o PT começa a perdê-la, de fato, a partir do escândalo do mensalão e das escolhas petistas ao assumir o governo federal.

Mas uma parte dessa classe média então passou a sustentar o PSOL. Ou seja, ao estigmatizar a classe média urbana, que é a única categoria onde o PSOL tem voto, Boulos está usando uma narrativa que se choca contra seu próprio eleitorado. A classe média vota em Boulos. A classe média está abandonando Bolsonaro. No momento em que a esquerda tem possibilidade de recuperar o voto de classe média e iniciar, a partir daí, um movimento gradual de conquista da opinião pública, conforme ensinava Gramsci, Boulos apela para a sociologia barata de Marilena Chauí e Jessé Souza?

Ademais, se essa classe média votou no PSDB e depois em Bolsonaro, e agora está se descolando deste último, a estratégia de atrai-la para ideias e valores progressistas é mais que saudável; é necessário. Não temos que tratar ideias e valores políticos como uma “identidade” colada a uma classe inteira; ideias e valores podem ser alterados e influenciados. Essa é a beleza da política. Disputar a classe média urbana sempre foi o grande desafio histórico da esquerda brasileira, desde muito tempo!

Outro equívoco de Boulos é achar que será possível silenciar o debate interno na esquerda, sobre as responsabilidades e erros dos últimos anos. Ciro pode cometer diversos excessos na maneira de conduzir esse debate, mas o debate, em si, é inevitável e necessário. Não se faz política sem polêmica. Não se constrói nada novo sem lançar ao mar o que é obsoleto e velho. A esquerda precisa fazer o debate interno, e de maneira aberta, pública. No mundo de hoje, a ordem é lavar a roupa suja na rua, e não o contrário, o que em geral apenas serve para se acobertar erros, proteger burocratas bem posicionados, e, com isso, deixar tudo como está.

Além disso, há uma contradição gritante na fala de Boulos. De um lado, ele diz que o objetivo central da esquerda deve ser derrotar o bolsonarismo. Ok. Mas em seguida ele critica quem pensa em 2022? Como assim? Ou uma coisa ou outra! Como ele pensa derrotar o bolsonarismo? As eleições municipais, por mais promissor que o resultado seja para a esquerda (e dificilmente o será), não representarão nenhuma “derrota” de Bolsonaro. A história mostra que um presidente pode perder eleições municipais e mesmo assim ganhar novamente uma eleição presidencial, porque as lógicas são diferentes.

E um impeachment está cada vez mais distante, sobretudo agora que Bolsonaro chamou o centrão para seu governo, e entendeu a relação direta entre popularidade entre os mais pobres e programas de assistência social.

A única maneira de derrotar o bolsonarismo, portanto, é desenhar, desde já, uma estratégia para 2022, até porque quanto antes nos preparamos para a batalha, melhor. A esquerda precisa aprimorar suas ferramentas de comunicação, desenvolver um arsenal ideológico capaz de conquistar a maioria da sociedade, e se organizar institucionalmente. A reconquista da classe média urbana é, obviamente, um dos pontos mais importantes dessa estratégia, e se essa classe média se tornou antipetista, a solução não é rechaçá-la, mas entender porque ela pensa assim, e fazer as críticas necessárias.

Nada disso é tarefa fácil. As armadilhas são muitas, e todos nós seguramente cometeremos muitos erros no caminho. O importante, contudo, é reconhecer os erros, corrigi-los e seguir em frente. Não é, sobretudo, tarefa para se deixar para 2022.

É tarefa para agora! Já estamos chegando em 2021. Daqui a pouco faltará apenas um ano para 2022.  E um ano passa voando!

Os trechos citados nesse post podem ser vistos nesse fio do Twitter:

A íntegra da entrevista pode ser vista aqui:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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