Comentários sobre a idolatria ao Véio da Havan

Luciano Hang vestido como o personagem "Capitão Brasil", uma espécie de paródia elogiosa de si próprio que virou garoto propaganda da sua rede de lojas.

O que explica a elevação de Luciano Hang ao patamar de popstar? Esta é a pergunta que surgiu em muitas confusas e desorientadas mentes (incluindo a minha) após os recentes episódios em que o famigerado Véio da Havan é aclamado pelo público ao inaugurar (mais) lojas. Em Belém, uma chocante aglomeração repetia, em ritmo de torcida de futebol, “Havan! Belém!” enquanto esperava a abertura da loja. (O momento em que o Véio surge  batendo alucinadamente com as mãos espalmadas nas paredes de vidro da loja é positivamente perturbador.)

Um primeiro ponto a ser apontado é o esquisitíssimo patriotismo que exalta as cores verde e amarelo enquanto coloca réplicas da Estátua da Liberdade na frente das suas lojas. É a versão empresarial do patriotismo de Jair Bolsonaro, que professa seu amor à pátria enquanto bate continência, literal e figurativamente, para Trump ou seus subordinados. Como estamos ainda imersos na onda bolsonarista, é natural que um dos mais midiáticos de seus cabos eleitorais arregimente um séquito próprio de seguidores.

Mas esta ainda é uma explicação superficial. Analisemos o vídeo a seguir, postado recentemente no canal de Luciano Hang no YouTube:

O vídeo começa com imagens externas e internas da loja. A trilha sonora é o grito “Ô Luciano, cadê você? Eu vim aqui só pra te ver!”, acompanhado de um piano pseudoapoteótico. Em seguida é reproduzido um trecho de uma fala de Hang:

Dinheiro pra mim não tem valor. O que me importa é o que eu consigo fazer com dinheiro. O que importa numa pessoa é a bondade. É a generosidade que cada um pode fazer. E eu só posso ser cada vez mais generoso quanto mais dinheiro eu tenho, porque eu vou distribuir toda a minha fortuna em empregos.

De saída, salta aos olhos a falta de coerência lógica na fala “distribuir toda a minha fortuna em empregos”. O emprego é uma relação em que uma das partes vende sua força de trabalho em troca de uma remuneração. É um contrato, portanto. No caso de um megaempresário como Luciano Hang, é um contrato muito mais vantajoso para ele do que para o empregado, pois este fica com uma parte infinitesimal dos ganhos financeiros obtidos pelo seu patrão. Assim, a ideia de que Hang seria “generoso” por empregar pessoas é apenas idiota.

E “distribuir a fortuna em empregos” é uma impossibilidade: ou você distribui sua fortuna ou faz contratos de emprego. A não ser que você distribua a fortuna pagando salários exorbitantes aos seus funcionários, o que, ao que consta, não é o caso da Havan – e não, os funcionários da Havan não estão pulando e gritando de alegria (minuto 0:38 do vídeo) por conta dos seus supersalários.

A ideologia dominante e os empresários “bondosos”

Apesar de não fazer sentido, a lógica de que os empresários devem ser aclamados por “criarem empregos” é martelada há algum tempo na cabeça das pessoas por jornalistas, políticos, influenciadores, por meio de todas as mídias possíveis. Diante disso, não surpreende que a bazófia do Véio surta efeito.

Se você visitar a página de Luciano Hang no Instagram, com 3,3 milhões de seguidores, verá, em cada post, muitos comentários louvando-o e felicitando-o por criar empregos. Talvez o Véio da Havan seja a expressão máxima, o crème de la crème da narrativa que atribui à bondade dos empresários o fato de existirem empregos – como se os empresários não precisassem dos trabalhadores para que suas empresas gerem lucro. É curioso que muitos trabalhadores não se deem conta disso, mas esta é a vantagem da ideologia dominante: ser dominante.

Há que se considerar ainda o crescimento do número de pequenos empresários na população – em abril deste ano o número de microempreendedores individuais (MEIs) no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, a marca de 10 milhões. Estas pessoas são, naturalmente, propensas a comprar o discurso do empresário generoso, e certamente muitos dos que idolatram Luciano Hang pertencem a esta parcela de cidadãos que tenta ganhar a vida tocando pequenos negócios.

O eixo do debate

A vitória comunicacional da direita se deve, em boa medida, ao eixo do debate. Convenientemente se coloca a disputa entre Estado e iniciativa privada como fulcral para os destinos das nações e do planeta. No entanto, qualquer estudo econômico sério aponta para a centralidade de outra disputa neste momento de crise aguda do capitalismo: capital produtivo x capital especulativo.

A especulação financeira, o dinheiro fictício gerando mais dinheiro fictício, vem se tornando cada vez mais insustentável para a economia global, visto que suga o dinheiro que deveria ir para quem trabalha ou investe em produção. Não é que faltem recursos, o problema é que os recursos são apropriados pelo sistema financeiro e não são investidos na produção. É o que aponta, por exemplo, o economista Ladislau Dowbor em seu livro A Era do Capital Improdutivo: “O sistema financeiro passou a usar e drenar o sistema produtivo, ao invés de dinamizá-lo”.

Outro eixo de debate também pode ser interessante para que se reverta a idolatria a ídolos de barro como Hang: pequenos x grandes empresários. É evidente a diferença abissal entre ambos, e o campo progressista deveria desenhar, e rápido, uma política específica para os pequenos empresários. Se não o fizer, o discurso de Bolsonaros da vida, que iguala todos os empresários na sofrência por conta dos “muitos direitos trabalhistas” soa como música aos ouvidos dos peixes pequenos.

Horizontes de curto e longo prazo

É preciso, portanto, concatenar primeiramente os interesses dos que querem investir na produção e dos que dependem dela para trabalhar e sobreviver. Ao mesmo tempo, é preciso criar uma coesão política entre trabalhadores e pequenos empresários, se não por outros motivos, porque todos são igualmente esmagados em momentos de crise. Quem sobrevive, invariavelmente e cada vez mais confortáveis, são os tubarões.

O Estado deve dar suporte financeiro pesado a quem quer começar e manter um pequeno negócio, assim como garantir os direitos e a dignidade dos trabalhadores, tanto os de pequenas quanto de grandes empresas, seja por meio de verbas orçamentárias, seja por meio de novas legislações. Um projeto bem pensado que converse com esses dois setores da população seria realmente poderoso. É esse tipo de coisa que aquece e faz girar a economia real.

Para o longo prazo, o bom senso indica que caminhemos para um mundo onde a tecnologia faça a maior parte do trabalho pesado e onde as pessoas tenham o direito soberano de exercer seus talentos criativos, de desenvolver suas habilidades e de contribuir com a sociedade por meio do seu trabalho, se quiserem. Um mundo em que, portanto, não seja preciso que algum milionário supostamente generoso salve as pessoas “doando a fortuna em empregos”. Um mundo em que as diferenças de renda e patrimônio entre os cidadãos sejam limitadas a patamares civilizados. 

Um mundo onde posar de rico generoso quando na verdade é um sonegador de impostos malandro seja motivo para desprezo e não para idolatria.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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