Análise: o encontro de Ciro e Lula e o que significou para a política brasileira

Reprodução.

Na última quinta-feira, 29 de outubro, os jornais amanheceram com a notícia de um encontro, ocorrido em setembro, entre o ex-presidente Lula e o ex-ministro Ciro Gomes, que não se falavam desde as eleições de 2018.

Imediatamente, o fato se tornou a notícia mais comentada no dia, e criou uma série de especulações. A matéria do Globo que deu o “furo” interpreta o encontro como uma “trégua” entre os dois líderes, diz que eles “selaram as pazes”, e que houve um “início de reaproximação”.

Os protagonistas do encontro, Lula e Ciro, mantiveram segredo sobre o teor da conversa. Após a repercussão do diálogo, Ciro publicou uma nota que é uma dessas pequenas obra-primas de diplomacia política, repleta de mensagens subliminares. Sem citar Lula ou mesmo o encontro, o pedetista procura explicar as razões que o levaram a aceitar se encontrar com o petista. 

“Promover o impeachment desse presidente genocida e irresponsável para proteger a democracia brasileira e punir seus reiterados crimes de responsabilidade; discutir alternativas de mudanças ao modelo econômico para reverter a maior crise socioeconômica da história brasileira; e proteger o patrimônio nacional contra a entrega corrupta a barões locais e potências estrangeiras.

Ao redor desses valores, considero-me mais que autorizado, sinto-me obrigado a construir, no que estiver ao meu alcance, o diálogo possível com quem for necessário para proteger a nação brasileira.

Isso não muda em nada minha compreensão ao redor do atual momento brasileiro. Para além dos gravíssimos problemas estruturais, estamos na eminência de eleições municipais. Dessa forma, trabalho para que o voto do nosso povo tenha um duplo objetivo: escolher bons prefeitos e prefeitas, vereadores e vereadoras, que serão essenciais para mitigar a gravíssima extensão da crise, que se agravará em 2021, data de suas posses. E, também, estou tentando ajudar para que esse voto auxilie na construção de um caminho alternativo, que ofereça ao Brasil as bases de um novo projeto nacional de desenvolvimento, encerrando a confrontação odienta e despolitizada que tem dividido de forma perigosa a nação brasileira.

Na prática, lembro que o meu partido, o PDT, construiu alianças preferenciais no campo do que chamamos de centro-esquerda – cujo núcleo base é formado por PSB, PV, REDE, PDT- , mas também temos alianças, por exemplo, com PSD em Belo Horizonte, DEM em Salvador e São Luís e PSOL em Florianópolis e Belém.”

Por parte do PT, as reações foram díspares, embora previsíveis. O ex-governador Tarso Genro não ocultou seu entusiasmo, qualificando o encontro de “histórico” e “extraordinário”. Para Genro, o Brasil “precisa de uma recomposição de diálogo político civilizado. Isso tem que ser concertado com as lideranças que têm  grande credibilidade política”.

A presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, que sempre foi um dos quadros mais hostis a Ciro Gomes dentro do partido, teve uma primeira reação bastante constrangida. Ao final de uma longa entrevista à Radio Arapuan FM,  concedida ainda no dia 29, o âncora perguntou a Hoffmann se o encontro significava “entendimento entre os dois líderes e os dois partidos para as próximas eleições”. Após enfatizar que não podia confirmar o encontro, Gleisi faz uma declaração não de todo antipática, afirmando que “qualquer gesto de unir as oposições é importante”, mas emenda dizendo que um desses gestos deveria ser, por parte do candidato que os Ferreira Gomes apoiam em Fortaleza, parar de “atacar” a candidata petista Luizianne Lins.  Ela encerra, porém, com uma sinalização de paz: “mas esses gestos a gente tem que ir construindo”.  A resposta é tão breve e seca que os radialistas ficam em silêncio, durante quase meio minuto, à espera que ela acrescente mais alguma coisa. Ela não diz mais nada, e o âncora do programa agradece e se despede. Em seguida, o mesmo âncora comenta que é curioso que Gleisi tenha se negado, de início, a reconhecer a própria realização da conversa, que estava na capa de todos os grandes jornais do país: “estão com medo de assumir que Lula conversou com Ciro?”

Horas depois, Gleisi endurece um pouco o tom e faz a seguinte declaracão ao Globo: “Lula é um homem generoso, de coração grande. Mas eu, particularmente, penso que qualquer aproximação com Ciro Gomes passa por um pedido público de desculpas dele ao Lula e ao PT, pelo que ele disse, principalmente ao Lula”.

O cuidadoso segredo com que o encontro foi realizado, o tom sombrio e enigmático da nota de Ciro, o silêncio do ex-presidente Lula, o entusiasmo de Tarso Genro, a reação inicialmente constrangida e, em seguida, hostil, da presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, nos ajudam a entender melhor o significado dessa conversa. 

É preciso separar duas coisas: uma coisa é o que Ciro e Lula tinham em mente quando aceitaram se encontrar em São Paulo, no Instituto Lula; outra coisa, totalmente diferente, é o impacto político desse encontro na sociedade, sobretudo a partir da informação contida na reportagem do Globo, jamais rechaçada por nenhum dos dois, de que foi selada uma “trégua”, e que eles “fizeram as pazes”.

Sobre os motivos políticos ou pessoais de ambos, não é difícil especular.

Vamos começar falando dos motivos de Ciro.

As eleições em Fortaleza devem ter sido um dos temas do encontro, especialmente se lembrarmos que, ainda segundo a reportagem do Globo, o principal articulador da conversa foi o governador do Ceará, Camilo Santana, que é do PT. Em nenhum lugar do país, a relação entre PT e PDT é tão problemática, tensa, contraditória, como Fortaleza. Igualmente, em nenhuma capital, o bolsonarismo tem mais chances de obter uma importante vitória política e eleitoral como em Fortaleza. A força eleitoral de Capitão Wagner é anterior à onda bolsonarista, embora de alguma forma já fosse um de seus sinais. Com o apoio de Bolsonaro, todavia, Wagner se torna ainda mais forte – e mais perigoso. 

As pesquisas e a observação empírica da situação em Fortaleza mostram duas coisas: se o Capitão Wagner disputar o segundo turno com Luizianne, ele ganha. Já ganhava na eleição anterior, de 2016, e agora ganha com ainda mais facilidade. Se enfrentar o candidato do PDT, José Sarto, por sua vez, Wagner perde o favoritismo. Ele pode até ganhar, mas de maneira muito apertada. As razões políticas são fáceis de entender: numa disputa entre Wagner X Sarto, todo o centro político de Fortaleza vai com Sarto; num embate entre Wagner X PT, todo o centro é atraído para Wagner. 

Para Ciro Gomes, uma vitória em Fortaleza é muito importante. O PDT não esconde que tem grandes planos para 2022: Ciro deve vir novamente candidato a presidente da república, e o trabalhista Roberto Claudio, atual prefeito, será o candidato a governador no Ceará, com boas chances de vitória.  Para Ciro, será fundamental ter um palanque firme no Nordeste, a região onde é mais conhecido e onde, segundo todas as pesquisas, obtém sua melhor performance eleitoral.

Mas em que Lula poderia “ajudar” Ciro em Fortaleza? 

Bem, basta olhar para a reação de Luizianne Lins ao encontro. A petista reagiu com perplexidade, indignação e por pouco não abandona a sua campanha. Para debelar a crise, o PT sentiu-se obrigado a publicar uma “carta” em apoio a sua candidatura, o que é um tanto bizarro. A troco de que um partido manifesta apoio a um candidato de seu próprio partido senão diante da suspeita de que a candidatura estaria sendo abandonada?

Por que a revolta de Luizianne? A imprensa cearense matou a charada num minuto, explicando que a divulgação do encontro entre Lula e Ciro ajudaria Sarto a neutralizar uma das principais “armas” de Luizianne, que seria pintá-lo como “inimigo” de Lula, e, com isso, evitando que o eleitorado simpático ao ex-presidente, expressivo na cidade, desse seu voto de confiança no pedetista. 

Além disso, o encontro ajudaria o governador Camilo Santana a enfrentar a terrível saia justa em que se encontra. Ao mediar um encontro entre Ciro e Lula, Camilo abre mais espaço a seu redor, neutralizando os militantes mais estridentes de ambos os lados.

O sucesso da aposta de Ciro (que para ele foi de alto risco) pode ser medido pelas pesquisas de intenção de voto em Fortaleza. O seu candidato, José Sarto, conseguiu atravessar o momento mais perigoso da campanha, aquele em que aparecia atrás de Luizianne Lins, durante o qual havia o risco da petista receber o “voto útil” do eleitor antibolsonaro. Hoje, Sarto está à frente de Luizianne e as pesquisas trazem cenários de segundo turno que deixam bem claro que apenas ele, Sarto, tem condições políticas de vencer o segundo turno contra o Capitão (e mesmo assim, não será fácil). O “voto útil” agora tende a se concentrar em Sarto. 

Só isso já teria valido o encontro. Mas esses são os motivos mais imediatos, e, por assim dizer, menores, de Ciro. Há outras razões, mais universais, de mais longo prazo, sobre as quais falaremos mais adiante. 

E Lula, o que ganha com esse encontro?

Para Lula, o encontro com Ciro foi muito importante. Na verdade, se pusermos de lado a questão de Fortaleza, foi ele quem mais ganhou com sua divulgação. 

O principal ganho político de Lula é aparecer como principal articulador das oposições a Bolsonaro.

Possivelmente, Lula já antevia que a candidatura de Luizianne não tinha muito futuro e por isso entendeu que, mesmo que o encontro pudesse prejudicar o PT na disputa em Fortaleza, ele valia a pena, porque amplia sua própria liderança e influência sobre todo o campo progressista. Se fôssemos usar a linguagem do xadrez, poderíamos dizer que Lula, antevendo que não podia mais salvar uma peça importante mas não essencial (um peão, por exemplo), resolve sacrificá-la para ganhar um posição mais estratégica no jogo.  

Entretanto, seria injusto com ambos falar apenas de seus interesses políticos pessoais. Independente dos defeitos, excessos, equívocos, de cada um, não se pode negar que ambos são lideranças profundamente nacionalistas. E são nacionalistas aqui no sentido verdadeiramente autêntico do termo, de compromisso com os interesses nacionais, incluindo aí a soberania e o bem estar da população. 

Neste sentido maior, o encontro de Ciro e Lula, independente dos cálculos políticos locais e imediatos de cada um, teve um significado realmente histórico, cujas ondas permanecerão vibrando durante muito tempo. 

A militância cirista reagiu ao encontro com ceticismo, irritação e até mesmo frustração, por razões políticas muito evidentes: ela percebeu imediatamente os riscos e os danos que isso poderia trazer a Ciro, visto que uma das principais virtudes do trabalhista tem sido conquistar, a duras penas, sob ataque cerrado diário de outras forças de esquerda, o status de uma liderança progressista independente de Lula e do PT, disposta a fazer todas as críticas que sejam necessárias, sem papas na língua, aos erros cometidos ontem e hoje pelo campo que o próprio Ciro tem chamado, num tom não muito carinhoso, de “lulopetismo”. 

A militância petista, por sua vez, pelos mesmos motivos, reagiu com satisfação ao encontro: ela entendeu que o gesto foi uma vitória política de Lula. Afinal, Ciro veio ao encontro de Lula, e não o oposto. E Lula é que volta a aparecer, como já dissemos, como o Grande Articulador.

Entretanto, é um grande erro analisar qualquer fato político a partir da interpretação da “militância”.

Quando olhamos para fora dessas duas bolhas “adversárias”, lulopetismo versus trabalhismo, constata-se rapidamente que o encontro foi bem visto pela maioria das pessoas, sobretudo aquelas identificadas como oposição a Bolsonaro, de esquerda ou não. 

O que a militância cirista vê, por exemplo, como um dano político a Ciro, que é se aproximar justamente daquele a quem o trabalhista critica duramente, a maioria das pessoas entendeu como um gesto acima de tudo democrático, além de demonstrar a humildade de quem colocara o interesse nacional acima das divergências partidárias. 

Por sua vez, o que a militância petista entende como vitória de Lula, ou a prova de que ele é, de fato, a única liderança capaz de unir o campo progressista, a maioria das pessoas viu como a disposição do ex-presidente de dividir essa responsabilidade com outros quadros e outras forças, igualmente por entender que o Brasil é mais importante que uma legenda. 

Olhando para o que os americanos chamam de  “big picture”, o grande quadro, constata-se que as duas lideranças saíram muito maiores do encontro. A disposição para o diálogo, o esforço para dar uma forma mais civilizada e madura às divergências políticas, e, sobretudo, a sinalização para um entendimento futuro fundamentado nos grandes interesses nacionais, tudo isso oferece uma diferença tão radical com o modus operandi do bolsonarismo, que já representa, por si só, uma poderosa demonstração de força da oposição a Bolsonaro. O fato do gesto ter sido protagonizado por duas lideranças do campo progressista consiste, por sua vez, numa vitória moral de todo o campo.

O gesto oferece ainda uma lição política: as divergências são saudáveis, necessárias até. Se não houvesse a divergência entre Ciro e Lula, o encontro dos dois não teria tido impacto nenhum. Neste sentido é que se deve interpretar a decisão de Ciro de se afastar do processo eleitoral no segundo turno de 2018: para deixar claro que, a partir daquele momento, o PDT não queria mais fazer parte do que o povo entendia como uma coisa só, o petismo. E a razão desse gesto não era egoísta, mas um cálculo político visando a preservar, para o campo progressista, um espaço de liberdade não contaminado pelo antipetismo. É importante que o campo progressista tenha forças autônomas, independentes. Que impacto teria uma possível “união” do campo progressista se já estivesse junto num bloco só? Nenhum! O impacto de uma eventual união dos diferentes é proporcional ao grau de força e autonomia de cada partido ou movimento. Quanto mais independentes e diferentes entre si, maior será a força que terão ao se unirem, justamente porque terão ampliado seu alcance para além das bolhas individuais. Se Ciro tivesse associado sua imagem ao PT no segundo turno de 2018, ele seria visto hoje como uma subliderança petista, e teria perdido a capacidade de costurar alianças com setores sociais críticos ao PT. E se ele entendia, assim como muitos outros, que o antipetismo foi a força dominante nas eleições de 2018, era essencial que o campo progressista tivesse uma estratégia para se reconciliar com todo esse eleitorado crítico ao PT. Em 2022, essa reconciliação com o eleitorado crítico ao PT será determinante para a derrota de Bolsonaro.

Essa união dos campo progressista, porém, não pode ser artificial ou forçada. Não é uma união que se faz com uma fotinha nas redes sociais, ou uma canetada. Até porque, para fazer sentido, ela não pode representar prejuízo para nenhum dos lados. O PCdoB, em especial, costuma pregar uma união que, ao cabo, acaba prejudicando a si mesmo, e, ao se enfraquecer, prejudica a esquerda como um todo. Pensar em si mesmo, em sua própria imagem, é tão importante quanto pregar a união. Nos avisos de emergência dos aviões, a instrução é pôr o respiradouro antes em si mesmo, e apenas depois em seu próprio filho, porque não se pode ajudar ao outro se você mesmo não consegue respirar. 

Os que pregam uma união dessa maneira, na verdade contribuem para ampliar ainda mais a cisão de todo o campo, na medida em que obrigam as diferentes forças a provarem, com mais ênfase que antes, que são diferentes e independentes. 

As pesquisas para as eleições municipais deste ano indicam que o antipetismo não arrefeceu. A decisão de Ciro e do PDT, de terem mantido uma distância crítica do PT, tanto nas eleições de 2018, como nas municipais deste ano, tem se mostrado, até aqui, correta, e – se as urnas assim o confirmarem – terão evitado um terrível desastre eleitoral para o campo progressista. 

Ao mesmo tempo, o encontro de Ciro e Lula é sinal claro de que há necessidade de retomada do diálogo.

Ciro cometeu excessos lamentáveis em seus ataques ao PT e a Lula. Com isso, afastou não apenas quase todos os eleitores petistas, como também perdeu muita gente que não simpatiza com esse tipo de ataque. Algumas frases de Ciro flertaram com a calúnia política, e, neste sentido, a presidenta do PT tem razão ao dizer que o pedetista deve alguns pedidos de desculpas ao PT e a Lula. Ciro deveria fazê-lo.

Além disso, Ciro parece ter ajudado Lula e PT a reforçarem a narrativa de que são apenas vítimas e perseguidos (e, em certa medida, são mesmo, embora a narrativa também seja útil para esconder todos os seus erros políticos). 

Mas é preciso também admitir que poucas vezes se testemunhou uma campanha de destruição de imagem e reputação mais insidiosa do que a feita pelo petismo contra Ciro. A narrativa de “fuga para Paris”, por exemplo, é uma invenção do PT, visto que Ciro deixou claro, no próprio dia da eleição, a sua opção política. 

A decisão do PT de não usar o vídeo de Ciro dizendo “Ele não” após saber do resultado da votação no primeiro turno, e usar todas as suas forças, em plena campanha, para estigmatizar a sua decisão de não participar diretamente da campanha petista (quando era óbvio que Ciro se resguardava para manter um espaço de oposição a Bolsonaro que não fosse tão facilmente neutralizável como “petista”), visou exclusivamente destruir a imagem do pedetista. E quase o conseguiu. 

O PT igualmente deveria pedir desculpas a Ciro por isso.

O encontro de Ciro e Lula, por fim, é uma sinalização também para que amigos e conhecidos petistas e pedetistas parem de levar as divergências políticas para o lado pessoal. É possível ser amigo, é possível conversar, mesmo com diferenças, especialmente se há um objetivo em comum, que é derrotar o obscurantismo político, o ultraliberalismo plutocrático e a milicianização institucional representados pelo governo Bolsonaro!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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