Porque não se deve matar o sabiá (análise das eleições americanas)

Eleitores da Filadélfia festejando a vitória dos democratas

Direto ao ponto: a vitória de Joe Biden foi muito importante para a oposição brasileira ao governo Bolsonaro.

A primeira razão, mais óbvia, é que o presidente Jair Bolsonaro fez uma aposta altíssima na eleição de Trump. E perdeu.

Jair Bolsonaro elogiava Trump o tempo inteiro, forçando uma intimidade que, obviamente, nunca teve, até porque Bolsonaro nem fala inglês.

Jair tentou emplacar seu próprio filho, Eduardo Bolsonaro, como embaixador nos EUA. Disse que ele tinha fritado hamburgueres nos EUA e falava bem inglês. Descobriu-se que o inglês de Eduardo é risível. Nem português ele sabe falar direito.

Fracassado no intento de virar embaixador, Eduardo Bolsonaro conseguiu se tornar presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, e o resultado foi obviamente o esvaziamento completo desse órgão.

Eduardo Bolsonaro, quando ia aos EUA, posava com bonezinho do Trump.

Num gesto de amor extremo pelos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro deu o nome do estado americano da Georgia à sua filha, nascida há poucos meses. Ele explicou que era uma homenagem a um estado americano conservador e republicano. Pois bem, os eleitores da Giorgia deram vitória ao democrata Joe Biden.

Naturalmente, o partido democrata não é feito de santos, tampouco de revolucionários, e muito menos tem um histórico de grandes feitos em prol da América Latina e do Brasil. Infelizmente, temos visto o contrário.

Esperar coisa boa vinda de Biden é ingenuidade. Julio Cesar foi um grande líder popular para os romanos, mas só para os romanos. Os gauleses tinham outra opinião.

Napoleão foi muito popular entre os camponeses da França, a quem distribuiu terras e emancipou economicamente, mas sua generosidade se restringia aos franceses.

Por outro lado, é bom saber que a vitória de Biden é também uma vitória, em parte ao menos, dos eleitores negros, dos latinos, das mulheres, dessa emergente geração de jovens de esquerda que vem avançando tanto no país (vide a força de Bernie Sanders, que por pouco não foi o escolhido pelo Partido Democrata como candidato a presidente), e, por fim, da maioria absoluta dos eleitores de bom senso, inimigos da mentira e preocupados com o exercício de um debate democrático sério, fundamentado na troca honesta, sincera e respeitosa de ideias.

Neste sentido, a derrota de Trump é uma vitória dos amantes da democracia em todo mundo!

Agora, se o governo Biden será mais do mesmo, se terá atitudes agressivas ou imperialistas com o Brasil, isso apenas a prática irá dizer.

Mas acho que não fará mal arriscarmos termos algumas poucas, modestas e prudentes esperanças. É possível, por exemplo, que os Estados Unidos fiquem mais receptivos a denúncias contra algumas práticas do governo Bolsonaro, em especial na esfera ambiental e dos direitos humanos.

É o momento, portanto, da oposição construir, desde já, articulações inteligentes e assertivas com setores da sociedade americana. É preciso que a esquerda brasileira faça isso antes que nossos liberais o façam.

Não se combate o imperialismo com gritaria, ou teorias de conspiração, e sim com inteligência. Os Estados Unidos são uma sociedade complexa, de múltiplos interesses. Um dos erros políticos mais grosseiros – erro que lideranças astutas de esquerda, como Chávez ou Fidel jamais cometeram – é confundir o povo americano com seus representantes políticos.

Um dos equívocos mais ingênuos e sectários da esquerda brasileira é não estudar a história das lutas sociais dos Estados Unidos. Ao não fazê-lo, dispensa o que seria uma poderosa arma na guerra híbrida.

Quando um liberal brasileiro defender o capitalismo norte-americano como modelo de sucesso, o cidadão progressista poderia rebater com facilidade, usando o velho e implacável método socrático. Podia começar concordando, para desmontar o interlocutor, e dizer que admirava muito a política dos americanos, especialmente algumas decisões estratégicas tomadas já na década de 30 do século XX, como a criação dos impostos sobre herança mais altos do mundo, e das leis antitruste que evitaram ou mitigaram, durante a maior parte de sua história moderna, a formação de monopólios bancários, midiáticos e petrolíferos.

Os EUA tem, há muitas décadas, uma das leis de regulamentação midiática mais rígidas do mundo, que proíbe propriedade cruzada e combate a formação de sistemas hegemônicos de comunicação. É correto ponderar, todavia, que boa parte desses valores antitruste vem ruindo com o aparecimento dos gigantes da tecnologia, que inauguraram uma nova cultura política pró-monopólio no país. Mas é um problema que apareceu agora, depois do país ter construído a mais rica e vasta infra-estrutura física, cultural, acadêmica e científica do mundo.

Os Estados Unidos real não é o país que os bolsominions imaginam, uma espécie de Miami gigante, com uma sociedade despolitizada, rica e fútil, mas também não é a distopia proto-fascista de esquerdistas paranoicos que não conhecem nada da história das lutas sociais, políticas, culturais que forjaram o país.

Estamos falando de uma nação com 325 milhões de habitantes, a democracia mais antiga e longeva do mundo, o berço do cinema moderno, um país de grandes escritores, artistas, filósofos e cientistas.

A história da revolução americana, aliás, o movimento que deu independência ao país, e que antecede em três anos a revolução francesa, deveria ser melhor estudada no Brasil, assim como alguns governos progressistas, como o de Andrew Jackson e Franklin Roosevelt, além da revolução cultural dos anos 60. São momentos e personagens que mostrariam, aos brasileiros de esquerda e direita, que os americanos experimentaram muitas lutas sociais para chegar aonde chegaram.

Assim como o império romano, para se tornar a maior potência do mundo antigo, teve que experimentar séculos de terríveis lutas sociais (que resultaram em muitas conquistas e liberdades para os plebeus romanos, embora muitas vezes às custas de outros povos), assim o império americano apenas se tornou poderoso e estável porque suas elites tiveram que ceder às demandas de seu povo (igualmente às custas de operações de rapinagem em outros países).

Ou alguém acha que foi fácil Roosevelt implementar um imposto sobre herança cuja alíquota máxima de mais de 80% era, na prática, um confisco revolucionário das grandes fortunas?

O imperialismo não deve ser interpretado com moralismo, pois trata-se de um processo econômico de grande escala cujos movimentos ultrapassam o entendimento e o interesse de seus protagonistas individuais. Além disso, o imperialismo apenas consegue estender seus tentáculos sobre as periferias se contar com a cumplicidade de suas elites. E essa cumplicidade nunca faltou no Brasil.

Para combater o imperialismo, temos que construir plataformas de inteligência, think tanks independentes, autônomos, capazes de produzir, em larga escala, vacinas culturais que protejam nossos jovens e inclusive nossas elites, contra valores e ideias, especialmente no campo da organização econômica, que prejudiquem os interesses nacionais e apenas beneficiam a metrópole.

Para não ficar em termos abstratos, falemos claro: precisamos ter políticas monetárias, cambiais, fiscais, industriais, culturais, científicas, que protejam os interesses brasileiros, e isso não significa aderir a nenhum tipo de nacionalismo tosco e fechado. Ao contrário. Nossa relação com o resto do mundo poderá ser muito mais livre, produtiva, rica e sofisticada, quando conseguirmos construir, para nós mesmos, um arcabouço institucional mais adequado ao nosso desenvolvimento.

A escritora Harper Lee, em sua obra prima “To Kill a Mocking Bird”, traduzida no Brasil para “O Sol é para todos”, mas cuja tradução literal seria algo como “Para matar um sabiá”, procura nos ensinar como boa parte dos sofrimentos que assolam a humanidade nascem antes da ignorância do que da maldade, e como a inocência, em sua pureza terrível, se torna às vezes uma arma tão poderosa. O título original do livro vem da advertência de Atticus a seus filhos, depois de lhes presentear com armas de chumbinho: ele diz que eles podiam caçar pequenos animais e pássaros à vontade, mas que era pecado matar um sabiá, por ser um passarinho inofensivo, que só vivia para cantar.

A luta pela emancipação do povo brasileiro passa, naturalmente, pela superação dialética, antropofágica, do imperialismo. Para isso, devemos conhecer o império por dentro. Dante Alighieri já entendia que, para atravessar o inferno, não lhe fez mal a companhia de Virgílio, autor da obra mais imperialista e chapa-branca da história da literatura mundial (e mesmo assim, um de seus monumentos mais grandiosos).

Por isso devemos comemorar a derrota de Donald Trump! Ela nos permitiu conhecer um pouco mais as angústias e esperanças do povo americano. A inocência reconhece a inocência. A democracia reconhece a democracia.

Temos que forjar as armas culturais necessárias para nos defender, e mesmo para atacar, quando for preciso. Mas sempre tomando cuidado para não ferir um sabiá, ou seja, para não adotarmos uma postura sectária, que aniquile a sensibilidade necessária para compreender a beleza e o horror das contradições do imperialismo que desejamos superar.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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