A prisão para “violência política” contra deputadas e as cascas de banana do identitarismo

O projeto de lei 349/15, aprovado hoje na Câmara, criminaliza com pena de cadeia de quatro anos quem ofender uma parlamentar mulher ou candidata.

O texto criminaliza uma série de condutas como “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidatas ou detentoras de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com o objetivo de impedir ou dificultar a sua campanha eleitoral ou desempenho de mandato eletivo”.

Se me permitem uma opinião leiga, achei o projeto muito vago e punitivista. Se ele tivesse como foco a criação de ferramentas de investigação contra autores de ameaças contra candidatos e parlamentares, como as que vem recebendo a vereadora transsexual Duda Salabert, me pareceria mais consequente.

Mas oferecer ao ministério público e ao judiciário a possiblidade de jogar na prisão quem se utilizar de “menosprezo” contra uma parlamentar, pode ser outra armadilha que se voltará contra o setor popular, contra suas lideranças e contra pessoas simples.

Os casos da “ficha limpa”, da “delação premiada” e tantos outros instrumentos que deram poder excessivo ao judiciário já deveriam ter acendido a luz amarela do campo progressista.

O projeto em questão, que visa combater a “violência política” contra a mulher, foi aprovado com unanimidade pelas lideranças de todos os partidos.

A deputada Samia Bomfim tentou emplacar uma emenda ao projeto, com o seguinte pedido:

Onde couber, substitua-se as expressões “em virtude de sexo”, “em virtude de seu sexo” e “em razão do sexo” por “em razão de a vítima ser mulher”.

Na justificativa de sua emenda, a deputada faz a seguinte observação:

O substitutivo apresentado pela Relatora ao PL nº 349, de 2015, e seus apensados, a despeito do inegável aprimoramento do texto, ainda apresenta uma pequena incongruência que, no entanto, pode gerar a privação dos direitos que a lei garante a uma parcela especialmente vulnerabilizada nas forças políticas no Brasil: as mulheres transexuais. O uso da expressão “sexo feminino” pode facilmente ser interpretada a partir de uma lógica inadequada de que a lei apenas protege mulheres cissexuais, o que seria uma limitação indesejada no âmbito e no objetivo da lei que está sendo discutida, uma vez que as mulheres transexuais eleitas em 2020 nos municípios brasileiros são algumas das mais afetadas pela violência política que buscamos coibir, recebendo mensagens ofensivas e ameaças de violência e de morte.

A emenda causou polêmica e foi rejeitada por 308 X 132 votos. Segundo a  autora da proposta, Rosângela Gomes, a emenda seria um “jabuti”.

“É preciso respeitar o nosso posicionamento, eu sou conservadora, e isso não fez parte do acordo”, declarou.

Margarete Coelho (PP-PI) afirmou que o texto não exclui nenhum segmento em razão do gênero, que é autodeclarado. “Temos de fazer a opção por um texto médio e deixemos para a interpretação jurídica preencher essas lacunas”.

O próprio texto da emenda dá margem a essas dúvidas, porque não afirma categoricamente que o projeto deixa de fora os transsexuais, mas apenas que “pode gerar a privação de direitos” e que a expressão “sexo feminino pode facilmente ser interpretada a partir de uma lógica inadequada”. Ao não deixar claro se o projeto pode ou não prejudicar os transsexuais, a emenda abriu o flanco para que os condutores do debate argumentassem que o projeto os inclui.

O PDT acabou se envolvendo na polêmica, porque a apesar da maioria dos parlamentares terem votado em favor da emenda de Samiam Bomfim, a liderança do partido “liberou” a bancada e, dos seus 28 deputados, 8 votaram contra, provocando uma onda de fúria na militância de esquerda.

Alguns parlamentares ou quadros transsexuais do PDT se manifestaram em suas redes, com duras críticas ao partido, como a já citada Duda Salabert, vereadora em Belo Horizonte, e Atena, militante em Porto Alegre.

O presidente nacional do partido, Carlos Lupi, tentou minimizar as críticas somando-se também a elas e assegurando que o posicionamento de alguns parlamentares não representa as ideias da legenda.

Aqui temos uma situação complicada onde a esquerda deve tomar cuidado para não se isolar e também para não usar alguns temas delicados para jogar cascas de bananas para seus colegas.

O acordo dos parlamentares era o voto no substituto. A emenda do PSOL, trazendo termos como “mulheres cissexuais”, deve ter assustado os parlamentares com bases menos escolarizadas. Os defensores do projeto apresentaram um argumento contra a necessidade de fazer a substituição pretendida pela parlamentar: segundo eles, o texto já incluiria, implicitamente, os transsexuais. É o que diz a deputada do PP: “o texto não exclui nenhum segmento em razão do gênero, que é autodeclarado”.

É preciso um pouco mais de generosidade no trato de alguns assuntos delicados, em especial quando se entra no campo dos costumes.

Em sua obra mais recente, Capitalismo e Ideologia, o cientista político Piketty alerta para o perigoso fenômeno dos partidos de esquerda estarem se tornando partidos da elite educada, e perdendo o voto popular para legendas conservadoras.

Tenho alertado para a importância das pautas identitárias na organização dos movimentos e partidos progressistas, mas também para seus excessos e armadilhas.

Alguns parlamentares às vezes podem ter dificuldade para se posicionarem num tema sensível como a política pública voltada para os transsexuais, e não porque sejam “contra” eles, mas porque precisam trabalhar o assunto junto a seus eleitores com uma linguagem diferente daquela usada pelos partidos dos “educados”.

Se os parlamentares mais à esquerda estiverem realmente comprometidos com as causas dessas minorias, então devem se esforçar para conquistar o apoio de outros deputados e de outros partidos, em especial mais ao centro (visando a maioria), e não usar o tema como uma armadilha, uma casca de banana, um pretexto para “cassar a carteirinha” de todos os parlamentares que apresentarem qualquer tipo de hesitação em relação a uma emenda apresentada de última hora.

A esquerda já é minoria no congresso, com cento e pouco deputados. O seu desafio é ampliar o seu campo de influência, e não reduzir a pouca força que já tem. Ampliar o número de deputados e partidos dispostos a dialogar sobre temas sociais e identitários requer generosidade e abertura de espírito.

Quanto aos partidos, como o PDT e o PSB, que tem um grau menor de coesão ideológica, e isso nem sempre é um defeito, pois apenas reflete o fato de abrigar representantes políticos menos habituados aos jargões sindicais e ideológicos, e atender um eleitorado menos escolarizado, devem tomar cuidado para não caírem nessas armadilhas. Se forem expulsar todo parlamentar que sentir desconforto com a maneira com que alguns temas são tratados, eles vão se autodestruir. É preciso reagir com um mínimo de altivez e estratégia.

O PDT é um partido com um movimento forte de Diversidade, com muitos militantes e quadros vinculados às questões identitárias, e com uma história bonita nesse campo (foi o primeiro partido a eleger indígenas e negros).

No caso da votação da emenda da deputada Samia Bomfim, a maioria esmagadora de seus deputados votou a favor. Aqueles que votaram contra, oito, não são necessariamente reacionários; apenas não puderam ser convencidos em tempo hábil, ou não concordaram com a maneira como a emenda foi apresentada, tanto na forma como no conteúdo. Às vezes esses parlamentares tem assessores ou bases eleitorais evangélicas. Às vezes não entenderam a importância de substituir a expressão “em razão do sexo” por “em razão de a vítima ser mulher”, ou então concordaram com a tese de que os transsexuais já estariam incluídos implicitamente no texto.

O campo popular precisa começar a construir, com muita inteligência, paciência e humildade, uma ponte entre movimentos identitários e os setores mais progressistas do centro político. Essa ponte é essencial para a formação de uma frente minimamente ampla, capaz não apenas de derrotar o presidente Bolsonaro em 2022, mas também de neutralizá-lo agora, e oferecer um pouco de estabilidade política ao país nos próximos anos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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