O que o fracassado e patético “putsch” de Trump representa para o Brasil?

Donald Trump e Bolsonaro, durante visita do presidente brasileiro em março deste ano Foto: JIM WATSON / AFP

Donald Trump recuou.

Seu último vídeo, postado ontem à noite, traz um discurso inteiramente novo. Não fala de fraude. Lembrando que os EUA é o país da lei e da ordem, condena os ataques ao Capitólio. E, admitindo pela primeira vez sua derrota, afirma que é preciso garantir uma transição de poder pacífica e tranquila (nesse momento, ele chega respirar mais pesado). 

A postura de Trump se explica pelo impacto profundamente negativo na opinião pública, doméstica e internacional, das cenas de manifestantes, alguns deles armados, invadindo o Capitólio, sede do Senado americano.

Os principais blogs e jornais dos EUA amanheceram repletos de editoriais furibundos, falando em golpe, autogolpe, putsch, e atribuindo a responsabilidade do que aconteceu inteiramente no presidente da república, que passou as últimas semanas usando suas redes sociais para atacar o sistema eleitoral americano, ameaçar inimigos e aliados, e por fim, mobilizar seus apoiadores para virem a Washington fazer o que fizeram.

Twitter, Facebook e Instagram suspenderam a conta de Donald Trump e apagaram suas últimas mensagens. Alguns analistas ironizaram que isso representaria um “impeachment virtual” de Trump – e é mesmo. No caso do Facebook e Instagram, o seu proprietário, Mark Zuckeberg, fez uma postagem explicando que as contas do presidente permanecerão banidas indefinidamente, ou ao menos até a transição do poder para o novo presidente eleito, Joe Biden, a ser consumada, no dia 20 de janeiro.

Uma grande contradição veio à tôna: a defesa, por parte de republicanos, conservadores, e do próprio Trump, de uma dura repressão, policial e judicial, contra manifestações populares críticas a seu governo, como a do Black Lives Matter, e o papel do próprio Trump nos acontecimentos de quarta, incitando apoiadores a invadir o Capitólio.

Mesmo as mensagens de Trump na quarta-feira, no calor do momento, pedindo a seus apoiadores que “respeitassem” a polícia do congresso, ou que fossem “para casa”, voltavam a falar de fraude eleitoral e, com isso,  inflamavam ainda mais os ânimos.

Tudo isso gerou muita discussão sobre as responsabilidades jurídicas, possivelmente criminais, que recairão sobre o presidente Trump e seus aliados, quando o poderoso establishment político e judicial do país processar tudo que aconteceu.

O receio de consequências criminais, ou seja, o medo de ser preso, com certeza ajudou a convencer Trump a mudar seu discurso e a admitir sua derrota.

Não podemos esquecer, porém, que na própria quarta, Trump fez um discurso para seus apoiadores, em frente a Casa Branca, em que reiterava seus delírios, afirmando que as eleições presidenciais foram “roubadas por democratas radicais, e que “nós nunca iremos admitir a derrota, porque não se admite isso quando há roubo envolvido”. E ainda acrescentava que “nosso país está farto, não vamos aguentar mais”.

O que aconteceu na quarta-feira foi uma consequência natural da propaganda antidemocrática do presidente da república, e não há nada mais revoltantemente antidemocrático, a meu ver, do que a postura de Trump, de lançar falsas suspeitas, sem provas, sobre o processo eleitoral, ao invés de admitir que perdeu. 

Para o Brasil, quais são as consequências de todo esse imbróglio?

Se não tivéssemos um presidente da república politicamente tão ligado ao trumpismo, os acontecimentos nos Estados Unidos seriam apenas uma curiosidade distante. 

O próprio Bolsonaro fez questão de importar a crise para o Brasil, não apenas chancelando as conspirações trumpistas de que houve fraude eleitoral nos Estados Unidos, como afirmando que as eleições presidenciais no Brasil também foram fraudadas. Para Bolsonaro, não fosse a fraude da qual foi vítima, ele teria vencido no primeiro turno.

Bolsonaro não apresenta nenhuma prova do que afirma, naturalmente. Afinal, prova é para fracos. O advogado de Trump, Rudolph Giuliani, ao constatar que todas suas contestações judiciais à eleição estão sendo derrotadas, afirmou que partiria para o “julgamento por combate”. Giuliani usa uma figura jurídica que existia na idade média (inclusive, é citada por Montesquieu), que deixa claro um outro aspecto do populismo conservador, que é a hiperpolitização de tudo, da moral, da Ciência, do Direito, das eleições. Não pode haver nenhum tipo de consenso ou harmonia entre diferentes agentes políticos. A filosofia de Carl Schmitt, segundo a qual a política é um conceito fundamentado na relação amigo versus inimigo, é levada a um paroxismo dramático. Se os fatos favorecem o inimigo, então os próprios fatos viram inimigos!

É sempre um grande prejuízo à democracia quando os agentes políticos desistem do debate de ideias e apelam para o “julgamento por combate”. A esquerda tem sua parcela de culpa, ao oferecer uma interpretação de mundo calcada na moral, mesmo que mal disfarçada no discurso de “luta de classes”, ao invés de usar as ferramentas do debate racional.

Quando nos recusamos a debater com o adversário, ou a sequer olhá-lo como um agente político digno do diálogo, porque ele é “de direita”, então abrimos espaço para que a direita também se recuse a dialogar com quem ela considerar “de esquerda”. Muitas vezes, esse sectarismo é erigido numa das principais características de uma cultura política, como testemunhamos às vezes no Brasil, onde um grupo da própria esquerda se recusa a estabelecer qualquer diálogo com adversários da própria esquerda. Temos visto influencers “esquerdistas”, por exemplo, que não apenas recusam qualquer diálogo com aqueles que vêem como “conservadores” ou “golpistas”, mas também rechaçam conversar com outros setores da própria esquerda.

O chamado movimento identitário é um caso típico. É muito difícil debater a questão, porque tudo é hiperpolitizado, ou antes, hipermoralizado. Não podemos sequer falar em identitarismo, porque os próprios nomes das coisas são moralmente problematizados de tal maneira que o debate fica travado. E, ao cabo, o debate se despolitiza na prática, porque o inimigo deixa de ser um interlocutor com o qual podemos travar um diálogo racional, mas um “monstro”, um inimigo que tem de ser imediatamente demitido, destruído, humilhado, eliminado da face da Terra.

Em sua luta contra esse conservadorismo messiânico, identitário, irracional, representado pelo trumpismo nos EUA, e pelo bolsonarismo no Brasil, o campo progressista precisa olhar para o seu próprio arsenal: está usando as armas corretas, está usando da melhor forma as armas de que dispõe?

Voltando a Bolsonaro, a ameaça do presidente, de que as eleições de 2022 poderão ser fraudadas, e que o Brasil pode testemunhar episódios de insurreição golpista, caso o país mantenha a urna eletrônica, serve ao menos para que as instituições nacionais se preparem, desde já, para esse ataque do bolsonarismo à democracia. A urna eletrônica será usada em 2022, e Bolsonaro, se perder, já antecipou que irá imitar o comportamento de Donald Trump. Os partidos políticos devem pressionar para que as eleições contem com a presença de auditores externos internacionais, e para que essa auditoria seja conduzida com muita transparência e publicidade.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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