Comentários sobre a vitória de Arthur Lira (ou a confusão quântica da política brasileira)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Antes de falar na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, permitam-me um breve digressão.

Steven Weinberg, ganhador de inúmeros prêmios internacionais, incluindo o Nobel de Física em 1979, inicia um de seus livros observando que a “física não é um sistema lógico definido”, e que, “a qualquer momento, ela dissemina ideias contraditórias e confusas, algumas das quais sobrevivem como lendas épicas de períodos heroicos do passado, enquanto outras avançam como novelas utópicas, oriundas de obscuras premonições acerca de uma futura e grandiosa síntese de tudo”.

Eu menciono Weinberg para dar uma ideia ao leitor sobre meu estado de espírito em se tratando de política brasileira, ou da Política de maneira geral. Tenho me tornado cada vez mais cético sobre a nossa capacidade de analisar objetivamente cenários e conjunturas cuja complexidade e variedade são quase infinitas.

Veja o caso das pesquisas de aprovação ou de intenção de voto. De repente, elas começaram a me parecer simplesmente fúteis, e investir tempo fazendo análises mais profundas sobre elas me faz pensar em frágeis esculturas de areias à beira da praia.

Se os mais premiados físicos contemporâneos, com o pescoço carregado de prêmios internacionais, e armados até os dentes das ferramentas mais ferozmente racionais e objetivas inventadas ou descobertas pela inteligência humana, admitem que sabem muito pouco sobre a realidade fundamental que nos cerca, e que a física não é um sistema lógico já pronto, o que dizer sobre a política, um conteúdo que supera qualquer outro em volatilidade e confusão?

A física moderna, por exemplo, afirma que cerca de 95% do universo é composto de “matéria escura” (dark matter). Também sabemos que o vácuo absoluto não existe. O espaço vazio é formado por flutuações quânticas nas quais partículas e antipartículas aparecem do nada, como fantasmas, neutralizando-se umas às outras.

Um dos problemas centrais da nossa jornada rumo ao conhecimento é a sensação de que não estamos ascendendo a nenhum tipo de céu, no qual nos sentiremos mais seguros e confortáveis, mas, ao contrário, estamos nos aventuramos por caminhos cada vez mais sombrios e misteriosos.

Coisas que reputávamos tão simples, que nem mereciam nossa atenção, revelam-se, em verdade, profundamente enigmáticas. Não há nada de óbvio, por exemplo, na gravidade, na atração de um objeto pelo outro. A ciência ainda não conseguiu explicar plenamente, apesar das intuições geniais de Einsten, porque somos atraídos para o centro da Terra, ou porque nosso planeta gira em torno do Sol. Ou porque nosso sistema solar gira, lentamente, em torno do centro da galáxia (onde aparentemente há um gigante buraco negro).

Por outro lado, apesar de tantas incertezas no campo da ciência, e mais ainda no universo da política, precisamos nos organizar. Precisamos de paz, segurança, felicidade, justiça. Mesmo com tantas dúvidas, domamos o selvagem comportamento dos elétrons, convertendo a inquietação infinita dessas partículas em energia para nossas lâmpadas e fábricas. O mesmo vale para a política: apesar de tanta confusão e perplexidade, inventamos instituições e leis, e aqui estamos, no sul do planeta, neste país quente e grande, discutindo as razões que fizeram o nosso candidato à presidência da Câmara dos Deputados, Baleia Rossi, perder as eleições para Arthur Lira, que era o candidato apoiado pelo presidente Bolsonaro.

Para continuar com nossa analogia científica, pode-se usar as leis de conservação de energia para explicar a solução de qualquer disputa política. A energia nunca se perde. Se uma coisa está parada no vácuo, permanecerá parada por toda a eternidade, a menos que uma força contrária seja exercida sobre ela. E se ela for posta em movimento, continuará em movimento eternamente, até que encontre a resistência na forma de outra força. Assim nos ensinam as três leis de Newton.

Quis o “espírito do tempo” que outro gênio, Baruch Espinoza, tivesse expressado, em 1677, em linguagem filósofica, algo parecido ao que Newton publicaria poucos anos depois. Disse Espinoza que  “cada coisa almeja, tanto quanto está em si, perseverar em si mesma”, e que “o esforço pelo qual cada coisa luta por perseverar em si mesma nada mais é do que sua própria essência”. (Proposições 6 e 7, da parte 3 da Ética: Origem e Natureza dos Afetos).

Trazendo para o Brasil de 2021: a energia (ou os votos) que vimos escapulir da candidatura de Baleia Rossi não desapareceu, apenas foi absorvida por Arthur Lira. E Bolsonaro continuará avançando até que esbarre com uma força contrária superior.

Claro que podemos enumerar aqui os “erros” de Baleia Rossi e, talvez, da esquerda, mas essa eleição foi decidida principalmente pelo empenho do governo federal em liberar verbas e cargos para os deputados e partidos aliados.

Lira foi eleito com 302 votos. Não é difícil, para uma organização tão grande como o governo federal, encontrar formas de agradar a cada um desses parlamentares. E se olharmos as coisas com um pouco menos de moralismo, é natural que assim seja, pois é justamente isso que obriga o Exercutivo a estabelecer compromissos com o Legislativo e, com isso, conter o seu próprio poder e arbítrio. A partir desse novo mandato, o governo Bolsonaro estará mais restrito que antes – e justamente nos dois anos em que mais gostaria de estar livre, leve e solto para agradar sua base social.

Quanto aos erros de Baleia Rossi, o mais óbvio foi ter assumido com demasiado entusiasmo a imagem de candidato de oposição. Ele talvez tenha sido levado a isso pelas circunstâncias, pois na medida em que seu adversário tinha livre acesso ao cofre federal, Rossi não podia prometer mais nada que não fosse um parlamento “independente”.

Por outro lado, a candidatura Rossi conferiu imensa dignidade à disputa na Câmara, e acabou obrigando o governo federal a pagar um preço muito mais alto do que pagaria, caso o candidato apoiado pelo governo não tivesse um adversário realmente competitivo.

Em outras palavras, a presença de Rossi na disputa obrigou o governo federal a ceder poder a seu candidato ao legislativo.

É natural que Lira, num primeiro momento, precise se mostrar alinhado ao governo que tanto apoio deu a sua candidatura. Afinal, ele terá que esperar até que seus aliados finquem raízes no Executivo, e recebam o pagamento integral pelo apoio que deram. Assim que as coisas se assentarem, que os partidos aliados se sentirem mais confiantes de que ocuparam espaços de poder no governo, a tendência natural de Lira será ampliar seu espaço de independência e autonomia, até mesmo para que o Planalto precise continuar pagando um valor político alto por seu apoio.

Maquiavel ensinava que lideranças políticas precisam ser amadas ou temidas. No caso da relação de um presidente da Câmara com o Executivo, não faz sentido ser “amado” pelo governo, apenas temido.

Quanto aos erros da esquerda, o caso mais grave, neste caso, é uma reação demasiado emotiva e precipitada de sua militância ao resultado da eleição. Desde 2019, por ocasião do primeiro mandato para a presidência da Câmara, que elegeria Rodrigo Maia, construiu-se uma argumentação bastante sólida (embora isso ficasse claro apenas depois, quando se viu a importância de um legislativo forte e independente frente aos desmandos do Executivo) sobre a lógica daquela disputa, e o principal ponto é que não era um “terceiro turno” das eleições presidenciais. O mesmo ponto passou a ser defendido agora, com mais segurança e com muito mais apoio na esquerda. No entanto, assim que o resultado saiu, a militância esquece o ponto e passa a tratar a derrota exatamente como um “terceiro turno” presidencial, ou seja, uma outra vitória de Bolsonaro.

Até foi uma vitória de Bolsonaro, mas muito relativa, pelas razões que já apresentamos: o governo saiu menor da disputa, com menos poder, pois teve que reparti-lo com um número significativo de parlamentares.

O erro mais grotesco de alguns setores da esquerda, porém, é tirar lições absolutamente irracionais do episódio, como a de que a derrota de Rossi seria a prova de que não se deve mais buscar alianças com o “centro democrático”. Ora, se Rossi perdeu justamente porque, nos momentos finais, não conseguiu convencer o centro democrático a lhe apoiar, isso significa exatamente a importância do… centro democrático. Sem ele, a esquerda tem apenas pouco mais de 150 votos, além dos 16 votos dados a Erundina…

Tem se falado ainda da importância de “marcar posição”, ou seja, de pensar na construção de símbolos, antes de pensar em duvidosas vitórias eleitorais. Claro que marcar posição é importante. Mas o que isso significa não é nenhum consenso. Oferecer uma disputa competitiva ao governo federal, obrigando-o a ceder espaço  e recursos ao legislativo, também é marcar posição.

Se era importante, ao campo progressista, mostrar união, moderação e bom senso, apoiando um candidato com chances de furar a bolha da oposição de esquerda, minoritária, brandindo o argumento de que a disputa pela presidência da Câmara não é um terceiro turno das eleições presidenciais, agora cabe às mesmas forças usar o mesmo argumento para acalmar a militância: uma suposta vitória de Baleia Rossi não mudaria as coisas tanto assim, pois, para ele ganhar, teria que receber os votos dos mesmos parlamentares que acabaram por votar em Arthur Lira. As reformas que viriam seriam as mesmas. E o debate sobre o impeachment não seria tão diferente assim. Além disso, e isso é o mais importante, com ou sem Arthur Lira na presidência da Câmara, as forças sociais e econômicas que se movimentam no país continuam exatamente as mesmas.

Se houver pressão social para impeachment, isso em si já será uma vitória da oposição, com ou sem ajuda de Arthur Lira, porque significa que o presidente terá perdido apoio popular e votos, ou seja, terá dificuldade para se reeleger em 2022.

A esquerda tem de olhar para o impeachment com muita sobriedade. Ele não é nenhuma solução genial pela simples razão de que, ao contrário da situação de Dilma Rousseff, o vice de Bolsonaro não é “nosso” amigo. A oposição a Dilma encontrou em Michel Temer não apenas um aliado tático, mas também estratégico. Michel Temer era aliado sobretudo ideológico das lideranças do impeachment. Mourão, que assumiria o governo no caso de impeachment de Bolsonaro, nunca será um aliado estratégico das lideranças de um eventual processo de impeachment contra o atual presidente.

Apenas por esse raciocínio, já deveríamos olhar para o impeachment com bastante ceticismo.

Outro ponto importante: o fato da maioria da população, ou mesmo da maioria dos parlamentares, não apoiar o impeachment, também não significa que apoiem Bolsonaro, ou que estejam dispostos a reelegê-lo. Tem muita gente que não apoia o impeachment pela razão muito singela de que tem medo da instabilidade decorrente de um processo dessa natureza. E a lembrança do impeachment de Dilma Rousseff apenas ajuda a reforçar esse temor. O tombo da nossa economia em 2016 foi uma verdadeira hecatombe social!

A esquerda ainda tem muito essa cultura de servidor com estabilidade, e costuma apresentar dificuldade para compreender a mentalidade de um pequeno comerciante informal, que apenas anseia por um pouco de sossego, que lhe permita trabalhar e sobreviver. Toda a insegurança econômica causada pela pandemia, com fechamento de centenas de milhares de pequenos negócios, podem ter agravado ainda mais esse desejo primário por um pouco de quietude política – que não signfica, é bom deixar claro, conformismo, mas apenas uma tendência a apoiar uma estratégia de ataque mais certeira, mais fulminante, e, sobretudo, com menos efeitos colaterais sobre a “população civil”.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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